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Vínculo

Print version ISSN 1806-2490

Vínculo vol.1 no.1 São Paulo Dec. 2004

 

ARTIGOS

 

Ícones russos ilustrando a relação mãe-bebê
desdobramentos clínicos

 

Russian icons illustrating the mother/baby relationship
clinical unfolding

 

Iconos rusos ilustrando la relación madre/hijo
desdoblamientos clínicos

 

 

Maria Valéria Pelosi Hossepian Salles Lima1

Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares - NESME

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Uma visita à exposição “500 ANOS DE ARTE RUSSA” resultou de início em uma crônica e posteriormente em uma reflexão sobre a relação mãe/bebê a partir da observação desses dois objetos culturais: os ícones e a crônica. Nesse trabalho, tais objetos serão tomados como ilustrações de uma relação que está nos alicerces da teoria do desenvolvimento emocional infantil, segundo Winnicott, e cujos desdobramentos estão presentes na clínica. A apreensão desse fenômeno a partir desse olhar determinará a postura terapêutica.

Palavras-chave: Arte Russa, Relação mãe/bebê, Teoria e técnica.


ABSTRACT

A visit to the “500 YEARS OF RUSSIAN ART” show initially resulted in a chronic and afterwards in a reflection about the mother/baby relationship from the observation of these two cultural objects: the icons and the chronic. In this peace of work, these objects will be taken as illustration of a relationship that is at the bases of the children’s development theory, as per Winnicott, and its unfolding is clinically presented. The perception of this phenomenon under this point of view will determine the therapeutic posture.

Keywords: Russian Art, Mother/baby Relationship, Theory and technique.


RESUMEN

Una visita a la exposición “500 AÑOS DE ARTE RUSA” resultó en una crónica y posteriormente en una reflexión a cerca de la relación madre/hijo a partir de la observación de estos dos objetos culturales: los iconos y la crónica. En esto trabajo, tales objetos serán aprehendidos como ilustración de una relación que esta en la base de la teoría del desarrollo emocional infantil, conforme Winnicott, y sus desdoblamientos presentes en la clínica. La aprehensión de éste fenómeno a partir de éste mirar será determinante de la postura terapéutica.

Palabras clave: Arte Rusa, Relación Madre/hijo, Teoría y técnica.


 

 

Vamos observar algumas imagens, e, a seguir, a crônica:

Fig. 1

 

Fig. 2

 

Fig. 3

 

A CRÔNICA

Nasceu fulva em terra de morenos. A bem da verdade, não se poderia dizer fulva; foi a explicação que a mãe encontrou para aquela promessa de cabelos dourados que foi a primeira parte dela a chegar ao mundo. Promessa que nunca se realizou em cabelos, mas que a acompanhou por toda a vida mesmo quando os cabelos escuros nasceram. Assim, tinha duas cabeleiras, uma que balançava com o vento e outra que era de vento.

Como fulva não era palavra que conhecessem, chamaram-na Russinha.

Além da cabeleira de vento, havia muitas coisas em Russinha que os pais não entendiam.

Porque velhos, os pais estranharam sua chegada. A mãe estranhou mas logo se derramou e não quis explicações. Foi ela que inventou a palavra “comunhão”, palavra que depois muitos usaram, mas nunca mais foi a mesma. O pai estranhou mas desconfiou porque confiar é coisa para poucos; perde-se muito fácil.

Assim, Russinha chegou sob o signo do estranhamento e logo, logo, ela era o próprio estranhamento.

A mãe velha não brincava muito com Russinha, ou talvez brincasse melhor, porque podia ficar longas horas ao lado da filha, brincando com seus próprios pensamentos enquanto a menina brincava de estranhar.

Brincar de estranhar é fácil. Basta olhar muito bem para qualquer coisa, principalmente as pequenas, até que você e a coisa fiquem um só.

De tanto brincar disso, os olhos da menina de redondos de espanto passaram a ovais de estranhamento.

O que ela mais gostava de olhar era o vento brincando com qualquer grãosinho de areia, empurrando ele de um lado para outro. Outra coisa bonita de se ver era a chuva fazendo riozinhos e caverninhas na terra molhada. Gostava também das labaredas bailarinas, aquelas miudinhas com as saias fulvas quase iguais à sua cabeleira de vento.

O tempo passando e Russinha se especializando em “conhecer” o mínimo, as essências. Tanto, tanto, que lá pelas tantas deles nasceu-lhe um filho.

Veio com a mesma cabeleira dupla da mãe e os olhos nem passaram pela fase redonda, já nasceram alongados e através deles é que as essências das quais era filho procuravam suas parceiras aqui nesse mundão. (Todos os que dele descendem continuam procurando).

Russinha deslumbrou-se. Aquela criança era a essência das essências. Tê-la junto a si, peito com peito, quase fundidos, deu a seu corpo um outro sentido só possível porque ele estava ali, mas, ao mesmo tempo, ele ia tomando a forma de seu corpo. Era um colo-ninho para ele poder ser criança.

Bem lentamente, quase como as plantas, o filho foi procurando, e o colo deixando ele procurar, outros rostos que não o da mãe. Aí era um colo apoio e a criança era homem.

Depois o colo ficou trono e ele era rei.

Perseguido pelos reis das ninharias, cumpriu-se o destino do rei das essências e nessa hora Russinha desesperou mas, foi só um átimo onde ela conheceu a última das essências que lhe faltava: a essência da dor.

Aí ela buscou lá atrás seu colo ninho e colocou nele sua criança, mas aí ele já era de novo a essência da essências.

 

ARTE E CIÊNCIA

Essa crônica nasceu logo após uma visita à exposição “500 ANOS DE ARTE RUSSA – DOS ÍCONES À ARTE CONTEMPORÂNEA” realizado na Oca - Parque do Ibirapuera, de 11 de junho a 6 de setembro de 2002.

Durante a visita chamou-me a atenção alguns ícones representativos da Virgem com o Menino em que a relação corporal entre ambos apresentava algumas características distintas. Os ícones que ilustram esse trabalho são um exemplo.

Tocada por essa peculiaridade e mesmo antes de refletir sobre ela, emerge o texto que iniciou este trabalho. Logo vou percebê-lo em seus diversos desdobramentos. Afinal, essa crônica escrita quase aos moldes do surrealismo era uma versão laica da história de Maria e, ao mesmo tempo, uma alegoria sobre a teoria winnicottiana do desenvolvimento emocional infantil.

É nesse sentido que ela será utilizada nesse trabalho: como uma ilustração. em que se poderá observar uma teoria e consequentemente uma técnica determinante do lugar do terapeuta na relação analítica.

 

O TERAPEUTA

Desde meus primeiros contatos com o pensamento de D.W.Winnicott pude experimentar a grande tranqüilidade de ter encontrado um pensador com o qual poderia dialogar. Encontrei nele a resposta para questionamentos e inquietações que envolviam minha prática psicanalítica e dificultavam o encontro de meu “si-mesmo” terapêutico. A partir dele conheci outros autores que valorizam o encontro humano como a matriz ética fundante, e seu conseqüente efeito terapêutico.

Ao falar de “encontro humano”, dentro da situação clínica, estamos tocando em uma importante questão técnica. Pensamos em um terapeuta atento às necessidades do paciente; necessidades que não são redutíveis a um mapeamento de seus processos mentais. Um terapeuta presente não só como destinatário dos processos transferenciais, mas que estivesse ali para recebê-los a partir de um lugar histórico. Histórico porque se apresenta em suas dimensões de tempo e espaço reais.

Um paciente em sua primeira sessão diz: “Tenho um amigo que se formou em psicologia e ele me disse que tudo nos consultórios é arrumado com algum propósito. Por isso demorei muito tempo para vir. Tinha a impressão que iria ser manipulado.” Bruno buscava alguém real. Temia a máscara, aquilo que simula o humano, mas ao qual falta a essência. É coisa. Coisa que pode tomar o lugar do encontro humano necessitado e buscado na transferência.

Quando alguém se apresenta nos afeta em diferentes níveis e um deles é o estético. Estético aqui entendido em seu sentido original, isto é, uma noção de percepção, a possibilidade de apreensão do mundo com os sentidos. O indivíduo constrói esse nível no espaço e no tempo.

Gradativamente Bruno vai se tranqüilizando à medida que ia unindo as características da terapeuta ao ambiente. Não estava mais em um cenário contracenando com um personagem. Mais para o fim da sessão diz: “Não tenho contato com a família de meu pai, não se pode confiar. É diferente daqui.”

Havíamos conseguido estabelecer a condição essencial para o trabalho terapêutico: a confiança. Esse seria o terreno onde suas necessidades e angústias poderiam ser depositadas porque não seriam tratadas como excrescências, mas como experiências compartilháveis com o outro humano.

Em seu texto “O sonho e a estética do self”, Safra enfatiza: “O ser humano tem uma natureza tal que ele reverbera, ele surge a partir da presença de outros significativos. ( ) . É preciso um encontro com pessoas significativas, que possam reconhecer a singularidade desse outro ser.”2

As questões transferenciais e contratransferenciais envolvidas são evidentes. O terapeuta como esse “outro significativo” precisa abrir-se para a alteridade de seu paciente, para aquilo que ele traz de inédito, acompanhá-lo em seu próprio registro existencial, em sua história. Freqüentemente somos tentados a reduzir tudo ao familiar, às nossas idéias pré-existentes, sejam teóricas ou práticas, no entanto o outro não se reduz à elas. A cada paciente uma linguagem própria. Amoldarmo-nos a seu tempo, a seu espaço, à sua história e consequentemente à sua cultura. Metaforicamente reproduzindo Russinha: ”Bem lentamente, quase como as plantas, o filho foi procurando, e o colo deixando ele procurar, outros rostos que não o da mãe.” Uma relação terapêutica que vai se transformando de acordo com as necessidades e possibilidades do paciente, tendo em mente que muitas vezes partimos da dependência absoluta em direção à possível independência, do objeto subjetivo ao estabelecimento do objeto objetivamente percebido.

Dois pacientes. O primeiro, um jovem de 16 anos que vem para as sessões de “skate” , com a aba do boné virada para trás e traz a letra manuscrita de sua música preferida. Ele estabelece e desenha o campo onde vamos conviver nos próximos minutos e ainda me “presenteia” com um valioso instrumento para que eu possa chegar aos pontos em que ele pressente suas necessidades.

A outra. Uma senhora de 73 anos, estrangeira, falando mal o português e que habitualmente utiliza suas sessões para contar-me histórias de sua infância. “Ouço” o convite para habitarmos um outro tempo e lugar; utilizo-me de algum conhecimento de sua língua materna para darmos prosseguimento à sessão. A transformação em seu semblante é imediata, sorri. Ela encontrou uma companhia para visitar um tempo em que muita dor estava presente e aí as elaborações são possíveis.

 

CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

As reflexões vão se desdobrando e agora cabem algumas considerações teóricas tomando como ilustração o texto literário e como base científica o pensamento de Winnicott a respeito de desenvolvimento emocional infantil.

É interessante notar uma certa precedência da obra de arte sobre as teorias científicas. Já é sobejamente conhecida a importância dos romances de Machado de Assis para o estudo de traços psíquicos que, à sua época, nem haviam sido ainda sistematizados por Freud. Na cultura russa os textos de Dostoiévski são base para estudo de pedagogia, filosofia e teologia. Os autores dos ícones russos precederam em muitos anos ao pensamento de Winnicott, no entanto é possível captar neles toda a relação mãe/bebê que esse pensador viria a desenvolver como um conceito teórico fundamental. Cabe a nós fazermos essa religação, nos deixarmos tocar por ela, e dela extrairmos o conhecimento das expressões humanas onde quer que estejam.

Quando falo que a mãe de Russinha inventou a palavra “comunhão” estou dizendo que ela havia entrado no “estado de devoção” que deveria acompanhar as maternagens com chances de bons resultados.

A mãe velha que ficava longas horas ao lado da filha sugere o texto de Winnicott “A capacidade para estar só”. O próprio autor nos diz:

“Embora muitos tipos de experiência levem à formação da capacidade de ficar só, há um que é básico, e sem o qual a capacidade de ficar só não surge; essa experiência é a de ficar só, como lactente ou criança pequena, na presença da mãe. Assim, a base da capacidade de estar só é um paradoxo; é a possibilidade de estar só quando mais alguém está presente” (1984, p.32-33).

Nesse tipo especial de relação pressupõe-se a presença de uma mãe “confiantemente presente” e que, segundo meu ponto de vista, virá a ser o paradigma do sentimento de confiança, da segurança, que garantirá ao ser humano a possibilidade de buscar conhecer, de encontrar o que estava ali para ser encontrado (mais um dos paradoxos winnicottianos), enfim recriar o mundo.

Essa mesma confiança é fundamental na clínica. Através desse sentimento o paciente vai se apoderando de experiências que não fizeram parte de seu repertório, mas que poderão ser assimiladas a partir da relação terapêutica. Ancorado na confiança, pode também apoderar-se de sua história, inclusive de suas dores. Ele passa a “ter” uma dor e não “ser” uma dor.

Nossa menina teve essa mãe e por isso ela pode estranhar e buscar as essências das quais o mundo e o homem são feitos. Em nossa história falamos de uma jovem redescobrindo os quatro elementos, o ar, o fogo, a água e a terra, sentindo-se parte desses elementos, preparando-se para gerar. No caso ela gera um filho como poderia ter gerado o próprio mundo. Estou me referindo ao gesto criativo do homem que, segundo o pensamento de Winnicott, caso as condições sejam adequadas, poderá criar aquilo que estava ali para ser encontrado.

Os parágrafos que se seguem falam de Russinha sendo mãe. Em “O relacionamento inicial entre uma mãe e seu bebê” (1993,p.26), Winnicott fala das funções maternas fundamentais: “holding”, manuseio, apresentação de objeto. Para entendermos a real dimensão dessas funções é importante que se compreenda como o autor pensa o psíquico.

“Para ele o psíquico não é pré-existente. Ele define o psíquico como a elaboração imaginativa do corpo. A criança nasce com um soma que vai se transformando em corpo através da elaboração imaginativa e esse processo, proporcionado pelo manuseio, permite que a corporeidade possa ser figurada, elaborada imaginativamente. O psiquismo é fruto da intercorporeidade do corpo da criança com o corpo materno.”

Assim, o “holding” está relacionado ao cuidado necessário à integração no sentido de unidade; o manuseio é o que possibilita o alojamento da psique no corpo e o início do processo de personalização e a apresentação de objeto está relacionada ao início do sentido de real.

Russinha e seu filho dramatizaram essa teoria. Os ícones que ilustram o trabalho mostram mãe e filho em três posturas sutilmente diferentes. No primeiro, mãe e bebê estão enlaçados, é o colo ninho. No segundo, o menino já se volta para fora e a mão dela o apoia, parece que ele pressente seu destino e ainda não está pronto. No último o colo sustenta o peso da responsabilidade dele. Essa é uma história universalmente conhecida e através dela ilustrei um processo também universal. O colo mutante é o responsável inicialmente pela saudável organização do mundo interno, pela solução pacífica dos conflitos entre pulsões e sanções, pela possibilidade de aquisição de relações completas com o mundo externo e futuramente pela possibilidade de que o ser humano realize sua tarefa no mundo.

O enlaçamento entre mãe e bebê que podemos observar nos ícones e as metamorfoses que vão sofrendo ao longo do tempo, são, ao mesmo tempo, metáforas do processo de constituição do humano e de um processo terapêutico. O que foi corpo será mente. O experimentado no corpo, nos momentos iniciais, decisivos, deixará marcas psíquicas.

O drama humano eternamente reencenado tem um início indiscriminado (mãe e bebê fundidos); como segundo ato, uma desejada discriminação entre mãe e filho (eu/outro) viabilizada pela saudável posição materna, que gradativamente deve ir retornando ao seu lugar de pano de fundo; o terceiro ato, deveria ser o “gran finale” com um novo ser representando com maestria seu papel no mundo. A clínica nos mostra que muitas vezes o indiscriminado se confunde com um nó que impede que se chegue a ser “nós”. Penso que nosso papel como terapeutas não se resume a de meros espectadores desse drama, mas de interlocutores que, após se retirarem do teatro, deixem o ator principal com a certeza de que tinham algo a dizer para alguém e que portanto ele existe.

Penso que o sentido último dessas reflexões representam a religação do homem com o simples, com o natural, com as essências e a partir disso a possibilidade de um caráter especial de trabalho clínico. Que ao ouvirmos as histórias de nossos pacientes, mesmo que escritas à moda surrealista, não perdêssemos de vista todos os registros que as compõe. Que pudéssemos encontrar o sentido último de seus discursos e a partir da descoberta de seu idioma pessoal estabelecer a relação terapêutica como um encontro entre humanos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

D.W.Winnicott, in “O Ambiente e os Processos de Maturação”, Porto Alegre, Artes Médicas, 1984.        [ Links ]

D.W.Winnicott, in “A Família e o Desenvolvimento Individual”, São Paulo, Martins Fontes, 1993.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Maria Valéria Pelosi Hossepian Salles Lima
E-mail: iovaleria@ig.com.br

 

 


1 Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Membro efetivo do NESME - Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares
2 SAFRA, G.,Psychê,ano3,número4,S.P.,1999,p.79

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