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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo v.1 n.1 São Paulo dez. 2004

 

ARTIGOS

 

“Mulheres plenas de vazio": os aspectos familiares da anorexia nervosa

 

“Women full of emptiness”: the familiar aspects of nervous anorexy

 

“Mujeres plenas de vacío”: los aspectos familiares de la anorexia nerviosa

 

 

Manoel Antônio dos Santos I1; Érika Arantes de Oliveira I2; Murilo dos Santos Moscheta I3; Rosane Pilot Pessa Ribeiro II4; José Ernesto dos Santos III5

I Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto. Núcleo de Ensino e Pesquisa em Psicologia Clínica
II Universidade de São Paulo. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto. Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública
III Universidade de São Paulo. Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Departamento de Clínica Médica

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho propõe-se a investigar elementos característicos da dinâmica familiar de adolescentes que procuram por atendimento especializado no campo dos transtornos alimentares. São discutidas as bases teóricas e os estudos que justificam e fornecem respaldo científico a uma concepção sistêmica da anorexia. Por fim, enfatiza-se a necessidade de inclusão da família no planejamento da assistência terapêutica.

Palavras-chave: Anorexia nervosa, Família, Transtornos alimentares.


ABSTRACT

This work intends to investigate common characteristics in the familiar dynamic of adolescents who look for specialized attendance for eating disorders. It is discussed the theoretical bases and the studies that justify and offer scientific support for a systemic comprehension of Nervous Anorexy. Finally, it is emphasized the necessity of inclusion of the family in the planning of the therapeutic assistance.

Keywords: Nervous Anorexy, Family, Eating disorders.


RESUMEN

Este trabajo se propone a investigar los elementos característicos de la dinámica familiar de adolescentes que buscan atendimiento especializado en el campo de los trastornos alimentares. Son discutidas las bases teóricas y los estudios que justifican y ofrecen respaldo científico a una concepción sistémica de la anorexia nerviosa. Para terminar, se destaca la necesidad de inclusión de la familia en la planificación de la asistencia terapéutica.

Palabras clave: Anorexia nerviosa, Familia, Trastornos alimentares.


 

 

PRATO CHEIO, FOME ZERO: ASPECITOS SÓCIO-CULTURAIS DOS TRANSTORNOS ALIMENTARES

A prevalência dos transtornos alimentares tem aumentado intensamente nas últimas décadas. Essa prevalência crescente está associada a fatores sócio-culturais, como o culto obsessivo ao corpo esbelto (imperativo do corpo magro como padrão estético universal de beleza) e o excesso de regras visando a promoção de saúde e adoção de hábitos saudáveis, tais como: proibição de fumar e comer alimentos com alto teor de gordura, preocupação com a forma física e severa disciplina alimentar.

O culto à saúde pode facilmente se degenerar em uma ênfase exagerada nos exercícios físicos regulares, na “malhação” em academias que se estendem por horas a fio, na ingestão altamente seletiva de alimentos naturais, produtos dietéticos e comidas lights, no anseio de submeter-se à cirurgias plásticas corretivas (lipoaspiração, lipoescultura, fio de ouro, botox) na busca onipotente pelo corpo perfeito e imortal.

A anorexia nervosa se insere nesse caldo de cultura em que o corpo, altamente valorizado, reificado e convertido em fetiche-mercadoria preferencial pelo capitalismo contemporâneo, apresenta-se como a medida do valor próprio do indivíduo. Só que na anorexia isso adquire um caráter muito peculiar: à medida que o quadro se instala, o corpo é constantemente negado, a tal ponto que se exime de ser um corpo vivo e desejante (DITOLVO, 1999).

Desse modo, a anorexia nervosa (assim como a bulimia) é considerada um transtorno psiquiátrico (ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA, 1994), e não apenas exagero de valores sociais dominantes, identificados como expressão anti-vida que permeia ações e adições contemporâneas, responsáveis pela fabricação em massa de superatletas, modelos glamourosas e profissionais da mídia.

A anorexia e a bulimia nervosa são transtornos da conduta alimentar cuja prevalência tem crescido nas últimas décadas, atingindo principalmente adolescentes e jovens mulheres (SANTOS et al., 1998). Estes transtornos mobilizam, de forma marcante, aspectos emocionais, físicos e sociais da vida do paciente. São moléstias que trazem um sofrimento intenso não apenas para o portador, mas também para seus familiares.

A complexidade e gravidade do quadro clínico apresentado pelas pacientes exigem intervenção multidisciplinar e integral. A literatura enfatiza a necessidade de inclusão da assistência à família no planejamento terapêutico, incluindo-se a psicoterapia familiar (SANTOS, 2002). Nesse sentido, Santos et al. (2002) preconizam a necessidade de disponibilizar um serviço de atenção e apoio aos familiares, dado o intenso desgaste emocional que mobiliza a organização familiar, considerando o curso crônico da doença e os altos índices de insucesso terapêutico alcançado.

 

O CONTEXTO FAMILIAR NA ANOREXIA: HAVERIA ALGURA RELAÇÃO?

Com o propósito de investigar a influência dos fatores familiares sobre o transtorno alimentar, Castro (2000) entrevistou mães de jovens portadoras de anorexia. Considerando-se que a etiopatogenia desse transtorno é multifatorial, isto é, que existe uma interação de fatores psicológicos, sócio-culturais, familiares e biológicos em sua manifestação, o referido estudo focalizou o contexto familiar que envolve a anorexia da perspectiva do discurso materno, investigando como a mãe entende o transtorno alimentar. Além disso, como percebe o ambiente familiar antes e depois do aparecimento dos sintomas anoréxicos da filha e como a dinâmica familiar é influenciada por esse acometimento.

A autora concluiu que o funcionamento familiar é drasticamente afetado com a eclosão do transtorno e que nesse processo a família passa a viver em função do membro afetado, que mobiliza a todos no sentido de buscar ajuda. Há alterações nas interações familiares: os relacionamentos com os pais e irmãos se modificam, emergindo sentimentos ambivalentes (maior tolerância, por um lado, mas também ciúmes, por outro).

O ambiente familiar antes da instalação do quadro é percebido como “normal” e o filho portador como “saudável”, “inteligente” e “perfeccionista”. O perfeccinismo é um traço de caráter que, nesse contexto, remete à necessidade de aceitação social que os pacientes anoréxicos têm (precisam agradar o outro e continuamente buscam reasseguramento de que estão sendo aceitos). Dentre as mudanças observadas após o adoecer, destaca-se o aparecimento de rituais e exigências excessivas do filho, relacionados ao comportamento alimentar.

Os pais percebem mudanças acentuadas de comportamento do filho e a regressão a padrões infantis (“Ela não queria crescer. Voltou a ser criança.”). Notam uma tendência ao isolamento e à introversão social, além de sintomas como amenorréia (uma evidência de imaturidade sexual e de regressão, do ponto de vista hormonal). Há uma percepção de que nada será como antes. Os sintomas têm um caráter incompreensível e paradoxal: por um lado, notam uma “carência afetiva”, um “vazio interno” que acompanha as filhas permanentemente; por outro, se vêem às voltas com um “excesso” de rituais alimentares e um aumento das exigências e demandas de atenção. As mães se sentem tiranizadas pela maior exigência de cuidados afetivos.

Com o desenvolvimento da doença, as mães procuram conhecer melhor a anorexia, apresentam um alto nível de informação sobre o transtorno, o que parece favorecer a aderência ao tratamento. Concluindo, as mães demonstraram ter uma percepção dos aspectos médicos da doença, mas desconheciam o papel dos fatores familiares envolvidos no quadro.

Os resultados do estudo de Castro (2000) indicam que o contexto familiar que permeia a anorexia é claramente modificado pelo transtorno, o que sugere a necessidade de que o processo de intervenção leve em consideração o ambiente familiar.

 

DFLAGRADA A CRISE. EM QUE PONTO SE ENCONTRA A FAMÍLIA?

Segundo Rolland (1995), a doença deflagra uma situação de crise, que atinge não só o indivíduo afetado, como as pessoas mais próximas que o cercam. O ambiente familiar se vê frente a uma situação vital nova e potencialmente transformadora. Doente e familiares sentem a necessidade de se adaptarem à nova realidade que se instaura, e mobilizam seus recursos defensivos para enfrentá-la. As necessidades afetivas são intensificadas e é comum a regressão emocional, acompanhada de manifestações de sentimentos, tais como impotência, medo, raiva, culpa e agressividade. São reações à situação de crise, mas também tentativas de adaptação à nova situação vital criada pelo adoecimento e suas decorrências. Diante da situação de crise, o doente necessita reorganizar-se em nível psicológico. Esse processo de reorganização é o que possibilita seu enfrentamento adequado ou não.

Na anorexia e bulimia, o comprometimento familiar é bastante evidente. O sofrimento não fica limitado à pessoa portadora. A doença crônica prende toda a família em sua teia. O sistema familiar como um todo precisa se reorganizar para enfrentar a nova realidade e se adaptar às condições de vida engendradas pela doença e pelo tratamento. O contato com procedimentos médicos, tais como consultas, exames e abordagens terapêuticas diversas, assim como a necessidade de se recorrer eventualmente ao ambiente hospitalar em momentos de agravamento do quadro, tudo isso gera mudanças na rotina doméstica, gerando desorganização e angústia frente ao desconhecido.

Segundo Bruch (1972), há um padrão inadequado de relacionamento interpessoal, caracterizado por uma aparente harmonia na família, mas que na verdade oculta graves conflitos latentes. Além disso, a experiência clínica mostra que os traços narcísicos predominam na personalidade dos pais. Eles valorizam muito mais o sucesso do que a realização pessoal dos membros da família, muito mais o jogo de aparências do que a posse de uma identidade interna.

 

A PLENITUDE DO VAZIO

Bruch (1972) estudou a interação familiar relacionada com a anorexia nervosa, sendo a primeira autora a investigar cuidadosa e sistematicamente os tipos de famílias das quais provinham suas pacientes anoréxicas. Esta autora não só observou as famílias no presente, como tentou também reconstruir o relacionamento entre pais e filhos quando estes eram pequenos. Mais especificamente, rastreou as origens do desenvolvimento da anorexia nervosa até um relacionamento perturbado entre a criança e a mãe.

Bruch concluiu que as mães de mulheres que vieram a se tornar anoréxicas tinham sido “boas demais”. Muito cuidadosas, corretas e talvez excessivamente ansiosas quanto ao bem-estar de seus filhos. A autora descreveu mães que se adiantavam às necessidades dos filhos, parecendo cuidar deles de acordo com suas próprias necessidades e não em função das necessidades deles. Sugeriu, também, que os bebês que mais tarde se tornarão jovens anoréxicas talvez jamais tenham realmente aprendido a atender as exigências de seus próprios corpos.

Em outras palavras, a criança nunca tem oportunidade de sentir fome porque a mãe a alimenta antes que o desejo possa ser esboçado. Ela aprende que a alimentação está associada, de alguma forma, ao seu relacionamento com a mãe, que é algo que a mãe decide por ela e que não está vinculada a sua própria necessidade física de comida (LAWRENCE, 1991).

Bruch acredita que a dificuldade que a anoréxica tem de identificar sensações físicas e, em particular, a fome, está relacionada com um fracasso nesse processo anterior de aprendizado. Observou que a preocupação com comida e peso é uma ocorrência relativamente tardia, representando um distúrbio maior do autoconceito. As pacientes têm uma total convicção de que não possuem qualquer capacidade e de que são ineficientes. O corpo é vivenciado como separado do self, como se pertencesse aos pais.

Minuchin, Rosman e Baker (1978) descreveram um padrão de confusão nas famílias de pacientes anoréxicas. Nessas “famílias psicossomáticas” geralmente há uma ausência geral de limites entre gerações e pessoas. Cada membro parece estar muito envolvido na vida de todos os outros familiares, ao ponto de ninguém ter um senso de identidade separada da matriz familiar.

A jovem pré-anoréxica, através da sua inteligência, vivacidade, obediência, perfeccionismo e dedicação ao estudo e ao trabalho, satisfaz essa rígida expectativa e colabora para manter a aparente harmonia da vida familiar, em detrimento da sua própria personalidade em formação. Contudo, o advento da adolescência, com seu impressionante cortejo de mudanças biológicas, psicológicas e sociais, faz com que essa jovem aparentemente bem ajustada seja inundada por sentimentos de ineficiência, desamparo e descontrole sobre o seu corpo e a sua vida. Na seqüência, a busca desesperada da magreza, que implica na manutenção da forma pré-puberal, representa um derradeiro esforço para readquirir o controle e a harmonia perdidas (BRUCH, 1972; BRUCH, 1978). A jovem anoréxica não desenvolve um sentido de valor próprio, como uma pessoa independente capaz de dirigir sua vida, e quando chegar a hora de mostrar independência e autonomia, ela provavelmente vai se sentir incapaz de enfrentar o que se exige dela (LAWRENCE, 1991).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRUCH, H. Eating disorders, obesity, anorexia nervosa, and the person within. New York: Basic Books, 1972.        [ Links ]

BRUCH, H. The golden cage: the enigma of anorexia nervosa. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1978.        [ Links ]

CASTRO, F. M. Mães de adolescentes portadores de anorexia nervosa: Percepção da doença e dos fatores familiares envolvidos. Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso). Programa de Bacharelado em Pesquisa da FFCLRP-USP. Ribeirão Preto, 2000.        [ Links ]

LAWRENCE, M. A experiência anoréxica. Summus: São Paulo, 1991.        [ Links ]

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SANTOS, R. K.; MOURARIA, C. G.; SOARES, I. V. B.; PRIZANTELI, C. C.; BIGHETTI, F.; GODOY, R. S. P.; RIBEIRO, R. P. P.; SANTOS, M. A. Grupo de apoio psicológico aos familiares de portadores de anorexia e bulimia nervosa. Revista da SPAGESP, v. 3, p. 68-73, 2002.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Manoel A. Santos
E-mail: masantos@ffclrp.usp.br

 

 


1 Psicólogo, docente da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - USP. Coordenador do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Psicologia Clínica (NEPP) da Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras de Ribeirão Preto - FFCLRP-USP.
2 Psicóloga do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Psicologai Clínica da Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras de Ribeirão Preto - FFCLRP-USP. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da FFCLRP-USP.
3 Psicólogo voluntário do GRATA, mestrando do Programa de pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - USP. Membro do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Psicologia Clínica da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto.
4 Nutricionista. Professora Doutora do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto - EERP-USP.
5 Médico. Professor Associado do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, médico responsável pelo Ambulatório de Distúrbios da Conduta Alimentar e do Peso da FMRP-USP.

 

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