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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo v.2 n.2 São Paulo dez. 2005

 

ARTIGOS

 

Relato de uma experiência de atendimento psicoterápico com grupos de obesos1

 

Story of an experience of psychotherapic attendance with groups of obeses

 

Relato de una experiencia de la atención psicoterápica con los grupos de obesos

 

 

Ana Beatriz Wanzeler Tura2

Laboratório de Psicopatologia Fundamental da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A obesidade é atualmente considerada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), um problema de saúde pública, devido às diversas doenças associadas ao aumento de peso, dentre elas a diabete mellitus, hipertensão arterial e doenças reumáticas. Para além de uma questão estética, tornou-se importante determinar qual o percentual de gordura corporal está associado a uma morbi-mortalidade elevada. Considerada uma afecção crônica, com recidivas, de significativa prevalência e poder de morbidade, a obesidade etiologicamente é vista como multifatorial. Ao psicólogo é solicitado uma compreensão, acerca dos aspectos emocionais associados ao aumento de peso, bem como ao processo de emagrecimento. A inclusão dos sujeitos em grupos ditos “homogêneos”, como, por exemplo, grupos de pacientes com doenças crônicas parece ocorrer através de uma identificação em torno da doença. No caso da obesidade, o ideal do grupo parece estruturar-se em torno do ideal do corpo magro e à série de identificações subseqüentes. Abordaremos uma experiência de atendimento psicológico a grupos de pacientes com obesidade, trazendo fragmentos de sessões para pensarmos nossa prática grupal a partir de teorias e técnicas fundamentadas na psicoterapia de orientação psicanalítica.

Palavras-chave: Psicanálise, Psicopatologia, Obesidade, Grupo, Psicoterapia.


ABSTRACT

The obesity currently is considered by the World Health Organization (WHO), a problem of public health, had to the diverse illnesses associates to the weight increase, amongst them the diabetes mellitus, arterial high blood pressure and rheumatic illnesses. For beyond an aesthetic question, one became important to determine which the percentage of corporal fat is associated with a high morbid-mortality. Considered a chronic illness, with returns, of significant prevalence and power of morbid, the obesity is caused by diverse factors. To the psychologist an understanding is requested, concerning the emotional aspects associates to the weight increase, as well as to lose weigth process. The inclusion of the subjects in said "homogeneous" groups, as for example groups of patients with chronic illnesses it seems to occur through an identification around the illness. In the case of the obesity, the ideal of the group seems to structuralize itself around the ideal of the lean body and to the series of subsequent identifications. We will approach an experience of psychological attendance the groups of patients with obesity, bringing fragments of sessions to think group practical ours from theories and techniques based on the psychoanalytic psychotherapy.

Keywords: Psychoanalysis, Psychophatology, Obesity, Group, Psychotherapy.


RESUMEN

El obesidad es considerada actualmente por la Organización Mundial de la Salud (OMS), un problema de salud pública, debido a las diversas enfermedades asociadas al aumento de peso, entre ellas la diabetes mellitus, hipertensión arterial y enfermedades reumáticas. Para además de una cuestión estética, se hizo importante determinar cual el porcentual de grasa corporal está asociado la una morbi-mortalidad elevada. Considerada una afeccion crónica, con vueltas, de significativa prevalencia y poder del morbidad, la obesidad se considera como teniendo origen en diversos factores. Al psicólogo es solicitado una comprensión, acerca de los aspectos emocionales asociados al aumento del peso, así como al proceso de adelgazamiento. La inclusión de los sujetos en los grupos dichos "homogéneos", como por ejemplo grupos de pacientes con enfermedades crónicas parece ocurrir a través de una identificación en torno a la enfermedad. En el caso de la obesidad, el ideal del grupo parece estructurarse en torno al ideal del cuerpo flaco y a la serie de identificaciones subsecuentes. Abordaremos una experiencia de atención psicológica a grupos de pacientes con obesidad, trayendo fragmentos de sesiones para pensemos nuestra práctica grupal desde teorías y técnicas fundamentadas en la psicoterapia de orientación psicoanalítica.

Palabras clave: Psicoanálisis, Psicopatologia, Obesidad, Grupo, Psicoterapia.


 

 

“Em todos os lugares, onde há seres humanos existem grupos e temos de ir até eles”.
José Bleger

 

O atendimento psicológico a grupos é uma prática usual nas instituições de saúde, enquanto possibilidade de dar conta de crescentes demandas associadas, por exemplo, a afecções crônicas que terminam por fragilizar o sujeito psiquicamente. Desenvolvemos nossa prática clínica atendendo pessoas com obesidade. O status epidêmico desta psicopatologia nos remete ao caráter de urgência com o qual vem sendo considerado o seu tratamento e profilaxia. Conforme Henrique Figueiredo Carneiro,

"uma enfermidade, para adquirir a dimensão de mal-estar social epidêmico, deve alcançar um status de mal popular, isto é, ocupar o lugar de uma enfermidade com as características de propagação relativamente duradoura, atingindo a um grande número de pessoas" (CARNEIRO, 2000, p. 13).
Podemos notar essas características na obesidade, sendo de conhecimento público o crescente aumento de peso das populações de todo mundo.

Considerada desafiadora para os profissionais que lidam com ela, a obesidade atualmente é questão de saúde pública, tornando-se importante desse ponto de vista, determinar qual o percentual de gordura corporal está associada a uma morbi-mortalidade elevada (MUNDIM, 1996, p. 20). Esta experiência com a clínica do social, levou-nos a refletir sobre o encontro dos sujeitos do grupo com seu phatos, termo grego que comporta a dupla expressão de paixão e sofrimento experimentado passivamente. Segundo Mário E. Pereira “É nesse sentido que o pathei mathos do ‘Agamemnon’, de Ésquilo, a aprendizagem que pode advir do sofrimento assume o estatuto de protótipo de uma tradição trágica na concepção do psicopatológico” (PEREIRA, 2004, 52). Para Pereira, “a psicopatologia fundamental, assenta-se, antes de mais nada, no reconhecimento da existência de diferentes lugares, de diferentes posições discursivas face ao sofrimento humano”( IDEM, p. 50).

O presente trabalho objetiva compartilhar uma experiência de atendimento a obesos, utilizando fragmentos de sessões para pensar nossa prática psicoterápica grupal, em uma clínica particular da cidade de São Paulo, dedicada ao atendimento de pessoas com dificuldades de alimentação, especialmente a obesidade. À equipe de psicólogos, foi solicitado o atendimento grupal de pacientes em tratamento para emagrecer, onde pudessem compartilhar experiências sobre os aspectos emocionais suscitados por este processo. Segundo Alexandre Kahtalian (1992), na década de 1930 era usual atribuir à obesidade a denominação de "distúrbio das glândulas endócrinas", tendo sido dada somente a partir de 1940 e 1950 uma maior ênfase em sua natureza psicológica, graças aos trabalhos de Bruch (1943), Fenichel (1966), Rascovsky (1950) e outros (cf. Kahtalian, 1992, p. 274). Para este autor em relação ao tratamento psicoterápico da obesidade: “Nas instituições hospitalares, a forma grupoterápica é a mais adequada”(KAHTALIAN, 1992, p. 277).

Procuramos, desde o início, oferecer um atendimento terapêutico, baseado nos princípios da psicoterapia em grupo de orientação psicanalítica, a partir das teorias e técnicas oriundas da Psicanálise e da Psicologia Social. Uma questão importante que nos interpela, nesse sentido, refere-se ao manejo clínico do atendimento grupal, uma vez que, dar conta de uma demanda cada vez maior significa atender mais pacientes num tempo menor, correndo-se o risco de comprometer a técnica grupal que norteará o trabalho. A utilização da psicoterapia de grupo de orientação psicanalítica no atendimento a obesos segue o dilema ao qual Gregório Baremblitt chama-nos a atenção quanto ao trabalho com grupos de modo geral: “O aumento do número de usuários das técnicas grupais seguramente atinge os grupos manejados sobre bases psicanalíticas, mas é sensivelmente mais acentuado no caso das outras orientações” (BAREMBLITT, 1986, p. 16).

À psicanálise tem sido dada uma menor credibilidade, em detrimento das abordagens cognitivo-comportamentais no atendimento ao obeso. Para Eduardo Mundim: "(...) por não ser uma ferramenta de trabalho que se submete às estatísticas, toda forma de psicanálise parece ser rejeitada, negando ao médico um modelo teórico extremamente útil para compreender suas dificuldades e a dos obesos" (MUNDIM, 1996, p.22). Particularmente, somos totalmente favoráveis à utilização de bases psicanalíticas no trabalho com grupos de obesos, fundamentais, a nosso ver, no seu manejo. Consideramos a técnica psicanalítica possível e suficientemente boa para esse propósito.

Sem a pretensão de aprofundar esta questão no presente trabalho, julgamos pertinente reacendê-la constantemente, buscando contribuir com o avanço da clínica dos grupos psicanalíticos; afinal, ainda podemos notar a resistência dos próprios analistas em legitimar a técnica da psicanálise nos trabalhos grupais.

“Tanto o procedimento grupal quanto os analistas dedicados a esta especialidade como usuários da mesma sempre foram vistos como ‘cidadãos de segunda categoria’ por relação aos monstros sagrados, os didatas, e aos consumidores da bem cotada análise individual” (BAREMBLITT, 1986, p. 19).

Demarquemos então, nossa posição, recordando com Baremblitt, a conhecida fórmula classificatória utilizada por Grinberg, Langer e Rodrigué, para situar a psicanálise, enquanto técnica capaz de nortear o trabalho do grupo:

“Na história das técnicas grupais, após um período inicial de psicoterapia pelo grupo (uso de mecanismo de sugestão tipo alcoólatras anônimos) paulatinamente se foi impondo uma modalidade no grupo (psicanálise individual de cada membro na presença dos demais), até se generalizar, nos ambientes de usuários, a psicoterapia do grupo (psicanálise do ‘inconsciente’ grupal, composto de fantasmas concernentes ao grupo enquanto unidade)”. (BAREMBLITT, 1986, p. 16).

Assim, ao mantermos a regra fundamental da livre associação, podemos facilitar o aparecimento destas construções fantasmáticas intersubjetivas, de ordem inconsciente, que vão se desvelando durante o processo grupal. Entendemos que a compreensão do vínculo é fundamental para nos ajudar a operacionalizar a tarefa no coletivo, bem como a construir uma metapsicologia dos processos grupais. Segundo Pichon-Rivière "o vínculo é um conceito instrumental em Psicologia Social que assume uma determinada estrutura e que é manejável operacionalmente" (RIVIÈRE, 1982, p. 31).

Isto nos leva a pensar na inclusão dos sujeitos em grupos ditos “homogêneos”, como, por exemplo, grupos de pacientes com doenças crônicas, onde parece ocorrer uma identificação em torno da doença. Segundo Breno Ramos, o que embasa a existência desses grupos são os critérios médicos, especialmente os de seleção e cura, a partir dos diagnósticos psiquiátricos e psicológicos. Ainda, conforme Ramos: “Tratando-se de grupos ‘analiticamente orientados’, o referencial médico deve ter menos importância, cedendo lugar a outras preocupações como estabelecimento do setting, empatia, critérios de desenvolvimento etc” (RAMOS, 1997, p. 235).

Buscar uma aproximação com o aspecto vincular nesses grupos, a nosso ver, implica pensar a noção de ideal de ego, enquanto substituição para o ideal do grupo, presente na teoria freudiana. Segundo Renato Mezan, o outro, na teoria freudiana, aparece em quatro posições possíveis, dentre elas, a de modelo. Para ele "a identificação, é em síntese, um processo pelo qual o sujeito assimila um ou mais traços de um outro indivíduo, integra-os a seu ego e, portanto, se modifica de acordo com o ou os modelos em causa." (MEZAN, 1985, p. 455).

No caso da obesidade, interessa-nos o modelo que se estrutura em torno do ideal do corpo magro e a série de identificações subseqüentes que passam a compor o ideal do grupo, como, por exemplo, a idéia de que ao emagrecer o sujeito esvaziaria junto com seus quilos extras os seus conflitos psíquicos: “Nós temos cabeça de gordo, não aprendemos a lidar com as nossas emoções assim como não aprendemos a comer, mas quando formos magros saberemos”. Segundo Freud “A identificação é conhecida pela psicanálise como a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa” (FREUD, 1925, p. 115). Nela estaria presente a idéia de laços libidinais, que permitem aos indivíduos abandonarem seu ideal de ego individual substituindo-o pelo ideal do grupo, permitindo uma vinculação:

“Nos grupos efêmeros, encontramos o prodígio do desaparecimento completo, embora apenas temporário daquilo que identificamos como aquisições individuais...Interpretamos esse prodígio com a significação de que o indivíduo abandona seu ideal de ego e o substitui pelo ideal do grupo.” (FREUD, 1921, p. 163).

Para Freud, o ideal de ego desvenda um importante panorama para a compreensão da Psicologia de grupo, por possuir também esse lado social. Os laços emocionais unificadores do grupo ao redor de uma idéia dominante, podem servir como ideal para o grupo. “Alivia-me saber que não sou só eu que passo por isso, que têm outros com ‘cabeça de gordo como eu’. Queremos aprender a ser magros com você (analista), que é magra”.

Freud afirma que:

“os grupos humanos apresentam mais uma vez o quadro familiar de um indivíduo de força superior em meio a um bando de companheiros iguais, quadro que também é abarcado em nossa idéia de horda primeva"( 1921, pág. 155)... "o líder do grupo ainda é o temido pai primevo; o grupo ainda deseja ser governado pela força irrestrita e possui uma paixão extrema pela autoridade; o pai primevo é o ideal do grupo, que dirige o ego no lugar do ideal do ego.”(IBID, p. 161).

Segundo Renato Mezan, o outro, na teoria freudiana, aparece em quatro posições possívies, dentre elas, a de modelo. Para o autor "a identificação, é em síntese, um processo pelo qual o sujeito assimila um ou mais traços de um outro indivíduo, integra-os a seu ego e, portanto, se modifica de acordo com o ou de modelos em causa." (MEZAN, 1985, p. 455)

No caso da obesidade, interessa-nos o modelo que se estrutura em torno do ideal de corpo magro e a série de identificações subseqüentes, que passam a compor o ideal do grupo, como, por exemplo, a idéia de que ao emagrecer o sujeito esvaziaria junto com seus quilos extras os seus conflitos psíquicos: "Nosso pensamento é de gordo, não aprendemos a lidar com as nossas emoções assim como não aprendemos a comer, mas quando formos magros saberemos." Segundo Freud "A identificação é conhecida pela psicanálise como a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa" (FREUD, 1925, p. 115). Nela estaria presente a idéia de laços libidinais, que permitem aos indivíduos, abandonarem seu ideal de ego individual, substituindo-o pelo ideal do grupo, permitindo uma vinculação:

"Nos grupos efêmeros, encontramos o prodígio do desaparecimento completo, embora apenas temporário daquilo que identificamos como aquisições individuais (...) Interpretamos esse prodígio com a significação de que o indivíduo abandona seu ideal de ego e o substitui pelo ideal do grupo" (FREUD, 1921, p. 163).

No artigo Sobre o Narcisismo (1914), ele comenta a respeito da falta de satisfação que brotaria da não realização deste ideal, transformando-se em sentimento de culpa, assim como, podendo levar a perturbações psíquicas. Esse é um aspecto relevante para nós, já que ao tratamos de obesidade, perpassamos constantemente o terreno da insatisfação, que vai se manifestando na fala do conjunto grupal, desvelando um conflito contido no emagrecimento, que termina por frustrar as expectativas tanto com relação à ponderação esperada, quanto a relacionada à transgressão infligida na prescrição dietética médica: “Eu sabia que não deveria, mas comi, não consegui me controlar”. O desejo de emagrecer pode encobrir outros, de ordem inconsciente, que vão se desvelando durante o trabalho em grupo.

Utilizamos o termo dietética a partir dos estudos de Henrique Figueiredo Carneiro, segundo o qual, enquanto traço mais antigo da ética, revela no mundo antigo os cuidados que o sujeito imprimia a si, tendo sido atualmente incorporada pelas ciências médicas, que se encarregam de ditar as regras para uma preservação do nosso capital biológico. O autor nos leva a refletir sobre o quanto a dieta prescrita pela medicina pode fracassar neste sentido:

“O que fracassa na dieta propugnada pela medicina, com respeito à manutenção do corpo biologicamente eficiente, é o fato de que, além daquilo que pode ou não ser ingerido ou lançado fora dele - tanto no do próprio sujeito como no do outro - apresenta-se outra fonte reguladora que foge ao parâmetro da necessidade. Com isso, surge um dado irrefutável: os excessos e os gastos, tão bem apontados pela medicina como uma forma de cuidados na manutenção de um capital biológico, perdem o sentido para o sujeito, que sempre encontra uma forma de subverter as dietas.”( CARNEIRO, 2000, p. 88 )

O grupo de obesos porta uma marca: “precisamos emagrecer, perder peso”. O médico quase obrigou-os a isso, para afastá-los do risco mórbido que o excesso implica. Em conseqüência disto, na demanda do paciente parece impor-se um controle sobre o aumento de peso, assim como sua ponderação para evitar o peso considerado de risco, conhecido por obesidade mórbida, segundo Maria do Carmo Dias, sujeitos com IMC (índice de massa corporal expresso em quilos por metro quadrado = peso / altura x altura) na faixa de 40 a 49.9 Kg/m2. (DIAS, 2003, p.52). Ora, como nos propõe Figueiredo Carneiro "(...) entre o homem da necessidade e o sujeito do desejo existe a fenda que instala a falta; e essa reclama uma outra ordem de suplência dietética que, muitas vezes, escapa aos ideais da medicina." (CARNEIRO, 2000, p. 91 )

O encaminhamento de pacientes na clínica se dava através dos setores de psiquiatria, endocrinologia e nutrição, que demandavam apoio psicológico para os pacientes ditos “resistentes”, isto é, com maior dificuldade em praticar a dietética prescrita, bem como, sem apresentar melhoras na questão de ponderação do peso. De todo modo, o setor de psicologia era aberto para receber os pacientes em atendimento, independente de como estavam se saindo no tratamento. Havia por parte da instituição, o interesse de que os pacientes que iam bem pudessem servir como “modelo” para os demais, que, quem sabe assim, poderiam animar-se e não abandonar o programa de emagrecimento.

No setor de psicologia era realizada uma triagem, que tomava em consideração os critérios para a entrada de pacientes nos grupos. Estes eram abertos, em número de até seis pacientes, podendo receber um novo integrante assim que houvesse vaga. Isso fazia com que sujeitos em diversas etapas do tratamento se encontrassem no mesmo grupo. A nosso ver - apesar do embaraço causado por perguntas do tipo: Há quanto tempo está aqui? Ou: O quanto já emagreceu? – este aspecto tornou-se relevante, levando a compreensões internas (insights) quanto ao “tempo de emagrecimento”, expressão cunhada por um dos grupos, para caracterizar o processo singular da eliminação do excesso de peso.

Sabemos que a psicanálise nos permite um trabalho de desconstrução dos ideais, a partir de um processo de identificação/desidentificação. Emagrecer emerge, em determinado momento no grupo, como um fantasma. A chegada de pessoas magras, ex-obesos com receio de engordar novamente, demarcou um importante momento de desvelação do ideal do grupo.

Lívia: “Mas, o que ela está fazendo aqui? Ela já está magra!”

Mara: “Pois é, mas os meus problemas não foram embora junto com os oitenta quilos que eu emagreci, eu achava que após emagrecer tudo estaria resolvido, mas não é assim, fica um baita medo de que volte tudo de novo e é disso que eu preciso falar.”

Lívia: “É, a gente pensa que os magros não têm problemas, mas não é verdade. Olha a Mara, parece que ela não consegue se alegrar com seu novo corpo e fica achando que vai engordar de novo. Nos fundo sentimos esse medo.”

Sara: “Acho melhor então eu abandonar o tratamento, pois eu só vim aqui para emagrecer. Por outro lado estou me reconhecendo e me aceitando melhor, estou melhor enquanto sujeito que pode saber de si, mas o meu corpo, continua o mesmo.”

Petra: “Mas Sara, você não acha que tem progredido bastante, e que emagrecer virá como conseqüência de você estar se cuidando melhor?”

Sara: “É, talvez você esteja certa, essa história de emagrecer não sai da minha cabeça, outro dia sonhei até que meus inimigos guardavam a minha mesa de doces. Acho que os inimigos são todas as pessoas que vivem pegando no meu pé para eu emagrecer. Aqui no grupo, sinto-me bem, pois podemos falar de outras coisas, podemos entender o que essa história de emagrecer também significa.”

Andaluzia: “Ué, mas afinal nós estamos aqui para emagrecer não é? o médico falou que nós tínhamos que falar disso. É, acho que eu tenho muito medo de descobrir que o problema não é só emagrecer. Você (encaminhando-se a terapeuta) nos deixa falar sobre as nossas “coisas”, não fica cobrando se a gente emagreceu ou não, mas a gente tem que fazer o mais difícil que é falar.”

Analista: “O foco parece ter-se deslocado do dilema engordo/emagreço, para como é difícil falar disso, permitindo ao grupo acolher quem a princípio era visto como portador de uma falha, afinal todos somos, gordos ou magros.”

Esse grupo obteve resultados satisfatórios em termos de ponderação de peso, ou pelo menos, controle do excesso. A desidealização do emagrecimento contribuiu para a associação entre a dificuldade de emagrecer e falar, possibilitando um insight do grupo quanto à oralidade presente no comer e foi se deslocando para a palavra, possibilitando falar em nome próprio. Nesse sentido, René Kaës nos chama atenção quanto às formações psíquicas comuns aos sujeitos em sua singularidade e ao conjunto grupal:

“Chamo de formações e processos intermediários as formações e processos psíquicos de ligação, de passagem de um elemento ao outro (...) Elas constituem pontos de entrelaçamento do sujeito e do conjunto, o vínculo do submetimento do sujeito ao grupo.”(KAËS, 1997, p. 224).

Entendendo a relação interpessoal enquanto um "fator patógeno básico da nossa civilização" (BLEGER, 1984, p. 72), se pensarmos no sentimento de culpa que herdamos pelo assassinato em grupo do pai primevo, mergulhamos nestas redes conceituais, retomando o fôlego para o potencial do grupo em se tornar sujeito de sua própria história. A partir da experiência que possibilitou aprender com o sofrimento, o fantasma do emagrecimento no grupo de obesos, deu lugar a uma possibilidade de fala, mesmo sendo difícil e imprevisível. O processo analítico grupal pode assim, produzir mudanças no grupo/corpo, tocando-o através da linguagem que o reinveste na transferência em análise. O grupo pôde se identificar não somente pela doença, mas, através de uma vinculação erótica, que remeteu ao recalcado, ao primitivo. “Assim, o grupo aparece como revivescência da horda primeva” (FREUD, 1920, p. 156), aproximando-nos da vinculação ao redor de ideais. Finalmente concluímos nossa apresentação, contentes em compartilharmos essa experiência, esperando colaborar com o avanço do trabalho com grupos de orientação psicanalítica.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência
E-mail: biatura@uol.com.br

 

 

1 Trabalho apresentado no V Congresso do NESME
2 Psicóloga Clínica, Especialização em Psicologia Social das Organizações pelo Instituto Sedes Sapientiae; Curso de Psicoterapia do Grupo no NESME - Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares; Pesquisadora do Laboratório de Sicopatologia Fundamental da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP-SP.

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