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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo v.2 n.2 São Paulo dez. 2005

 

ARTIGOS

 

O laço do preconceito: a inclusão, exclusão e convivência do usuário de saúde mental a partir do conceito de alianças inconscientes e do dia a dia de um CECCO1

 

The bound of prejudice: inclusion, exclusion and familiarity of the mental health patient from the perspective of the concept of unconscious alliances and the daily work at a CECCO

 

El vínculo del preconcepto: la inclusión, exclusión y convivencia del portador de sufrimiento mental a partir del concepto de aliansas inconscientes y del día a día de un CECCO

 

 

Pablo de Carvalho Godoy Castanho2

Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura Municipal de São Paulo
Laboratório de Estudos em Psicanálise e Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Dentro da proposta de formação de uma rede substitutiva aos manicômios, os Centros de Convivência e Cooperativa (CECCO) foram implantados na capital paulista, a partir de 1989. Geralmente, implantam-se estes centros em locais públicos, de livre circulação. Eles promovem atividades para portadores de sofrimento mental e outros “excluídos” e freqüentadores habituais dos espaços em questão. Propomos a utilização do conceito de alianças inconscientes (Kaës) para orientar a intervenção nos grupos e nas oficinas do CECCO e equipamentos afins, bem como sugerimos a possibilidade de usar o mesmo conceito no nível do território. Nesta perspectiva, acreditamos que o trabalho com o preconceito deveria ser pensado como efeito de um movimento de “re-pactuação” ou transformação das alianças inconscientes. Trataremos de situações do cotidiano do CECCO, para apresentarmos algumas facetas decorrentes deste ponto de vista.

Palavras-chave: Grupo, Psicanálise, Saúde mental, Inclusão, Território.


ABSTRACT

The “Centros de Convivência e Cooperativa” (CECCO) have been put in place since 1989 in the city of São Paulo as part of a plan to build a network of services which could substitute for the traditional mental institutions. They are usually built in open public areas such as parks and public clubs. They promote activities which put together psychiatric patients, handicaps, other “socially excluded people” and the general population. We propose the use of the concept of “Unconscious Alliance” (Kaës) as guidance in this kind of work. We furthermore suggest the use of this concept together with the concept of territory. From this perspective, the job of overcoming prejudice and fostering integration should be seen as allowing for a “renegotiation” of the unconscious alliances. In this article we’ll deal with extracts from the daily work at a CECCO as a means to explore different perspectives of our point of view.

Keywords: Group, Psychoanalysis, Mental health, Inclusion, Territory.


RESUMEN

Los “Centros de Convivencia e Cooperativa” (CECCO) fueron implantados en 1989 en San Pablo, como parte de una red sustitutiva de salud mental. Ellos son construidos en locales públicos y hacen actividades que juntan pacientes psiquiátricos, otros “excluidos” y la población en general. Proponemos la utilización del concepto de aliansas inconscientes (Kaës) para compreender y operar este tipo de trabajo. Sugerimos utilizar este concepto junto con el concepto de territorio. Creemos que la superación del aislamiento del enfermo mental pide una reestructuración del vínculo en su grupo (o comunidad), o sea, una transformación de las aliansas inconscientes. Describiremos algunas viñetas del trabajo del CECCO para explorar nuestro punto de vista.

Palabras clave: Grupo, Psicoanálisis, Salud mental, Inclusión, Territorio.


 

 

As políticas públicas de nossa época preconizam a inclusão social dos usuários de saúde mental. Recentemente, diferentes autores vêm discutindo as complexidades na implantação destas políticas em diferentes contextos, utilizando-se de conceitos das teorias psicanalíticas de grupo. Emílio (2004) investigou o “avesso” da inclusão na escola; Scarcelli (2002) e Weyler (2004) investigaram a inclusão no espaço urbano através dos serviços residenciais terapêuticos para ex-pacientes psiquiátricos. Neste pequeno trabalho, centraremos nosso foco na aplicação do conceito de alianças inconscientes, para pensarmos a inclusão/exclusão do usuário de saúde mental. Nossa maior inspiração vem do trabalho de Fernandes (2003) no qual a autora propõe utilizar o conceito de alianças inconscientes para a compreensão da mestiçagem no Brasil. Em seu percurso, a autora demonstra a utilidade do conceito, para pensarmos o relacionamento com o diferente, o preconceito e as políticas anti-manicomiais em uma perspectiva da psicologia social. Nossa reflexão será pautada pela experiência profissional do quotidiano de um Centro de Convivência e Cooperativa (CECCO) no qual trabalhamos desde março de 2003.

Em São Paulo, os CECCOs são emblemáticos da opção das políticas públicas pela promoção da inclusão. Dentro da proposta de formação de uma rede substitutiva aos manicômios, estes centros foram implantados, a partir de 1989, como o elo mais próximo da comunidade. Geralmente, implantam-se os CECCOs em locais públicos, de livre circulação. Eles promovem atividades não só para portadores de sofrimento mental e outros “excluídos”- denominados “população alvo” - mas também para freqüentadores habituais dos espaços em questão- denominados “população geral”. (São Paulo, 1992).

 

O Conceito de Alianças inconscientes

O conceito de alianças inconscientes em René Kaës permite o abandono da idéia de um “inconsciente de grupo”, tornando possível pensar o inconsciente nas formações vinculares em uma lógica diferente da intrapsíquica (KAËS, 2000). Para Kaës, as alianças inconscientes são o “cimento” do vínculo. Nesta perspectiva o vínculo só é possível na medida em que algo seja negado em conjunto. Lembramos que, em Kaës, o vínculo não é só uma estrutura intersubjetiva, mas também diz respeito à coesão e organização intrapsíquicas:

Para se associar em grupo, mas também para associar as representações e os pensamentos, os humanos se identificam não só a um objeto comum- e, a partir deste, entre eles- mas também selam um acordo inconsciente, segundo o qual, para manter seu vínculo e o grupo que o contém, não será possível pensar em um certo número de coisas (...). (KAËS p.266 1993 –tradução nossa)

Ao propormos a aplicação do conceito de alianças inconscientes, para pensarmos o preconceito em relação aos usuários de saúde mental, devemos considerar que os próprios usuários fazem parte destas alianças. Neste sentido, a exclusão/inclusão devem ser entendidas não como estar de fato de fora de um grupo, mas como um dos lugares construídos dentro deste próprio grupo. Apenas para tentar ilustrar este ponto, pensemos no contingente de desempregados; eles têm a vivência subjetiva e partilhada de estar fora do mercado de trabalho. Porém, sabemos que o contingente de desempregados influencia nos valores dos salários e nas condições de trabalho daqueles que estão empregados. Do ponto de vista da dinâmica econômica eles estão dentro do mercado de trabalho. Da perspectiva das alianças inconscientes, algo semelhante acontece. Mesmo os “excluídos” de um determinado grupo participam, inconscientemente, da economia, dinâmica e tópica psíquicas do conjunto.

Lembremos que é impossível eliminar as alianças inconscientes, já que elas são condição para o sujeito psíquico e o vínculo (KAËS, 1993), porém podemos, através de intervenções técnicas, almejar novas modalidades de alianças que sejam menos penosas para os envolvidos

 

As alianças inconscientes no território

Pensamos que o conceito de alianças inconscientes pode ser um elemento importante da teoria da técnica no trabalho do CECCO. Podemos empregá-lo sempre que estivermos trabalhando com um grupo ou instituição, visando a inclusão de nossos usuários. Além disso, propomos utilizá-lo no plano do território. Em nosso caso, delimitamos este território de dois modos. No primeiro, pensamos na subprefeitura em que estamos, de onde provém a maioria de nossos usuários. No segundo, pensamos no parque onde atuamos3.

Tomamos o conceito de território como é utilizado na saúde pública. De acordo com Mendes: “Os sistemas de saúde mais eficazes, eficientes e eqüitativos têm como elemento comum sua estruturação numa base territorial (...)” (MENDES, 1997, p.155) Em seguida, ao discutir a caracterização do conceito, conclui:

Portanto, a concepção de território transcende à sua redução a uma superfície-solo e às características geofísicas para instituir-se como território de vida pulsante, de conflitos, de interesses diferenciados em jogo, de projetos e de sonhos. Esse território, então, além de um território-solo é , ademais, um território econômico, político, cultural e epidemiológico. Esse é o território do distrito sanitário(...). (MENDES, 1997 p. 166)

Segundo nossa hipótese, o território é ainda local de modalidades específicas de relação resultantes das alianças inconscientes que nele se formam. Relações que, em muito, governam a própria utilização do espaço4.

Lembramos que Kaës (1993) coloca o conceito de alianças inconscientes como exclusivo dos espaços intersubjetivos e não do universo social. Observamos que o conceito de território foi gestado fora do espaço psicanalítico. Não sabemos se devemos caracterizá-lo como intersubjetivo ou trans-subjetivo. Frente aos objetivos deste texto nos furtaremos a esta reflexão. Consideramos isso possível na medida em que nos apoiamos no trabalho de Fernandes (2003) que estendeu o conceito de alianças inconscientes para o espaço social.

 

Percalços da Convivência

Nossos exemplos durante este trabalho derivam de um CECCO localizado em um parque municipal na periferia de São Paulo. Nomes foram trocados e falas são reconstruções aproximadas do ocorrido de modo a preservar o sigilo dos envolvidos.

 

O preconceito que não pode ser visto, não pode ser transformado

A investigação do preconceito como resultado de certas modalidades de alianças inconscientes nos confronta não com algo a ser simplesmente “extirpado”, mas algo que só poderá mudar na medida em que suas funções psíquicas puderem ser compreendidas. Neste sentido, é fundamental que trabalhemos para a criação de um ambiente onde não exista “preconceito do preconceito” , no qual as aversões e demais idéias despertadas pelo convívio com o diferente possam, em algum momento, ser faladas e pensadas.

Para ilustrar esta questão, gostaríamos de relatar uma vinheta acontecida durante a reunião para a formação de uma cooperativa popular. Na cooperativa, estavam, majoritariamente, pessoas da população geral. Neste grupo procurávamos inserir alguns de nossos usuários. Vejamos um comentário ainda antes do início formal de uma reunião:

Vânia: A gente vai ter que ver um negócio hoje. Como elegeram o Lúcio e o Antonio para representarem nossa cooperativa? Claro... é ruim pros dois, né? Quem tava lá na reunião... como foi fazer isso? A gente vai ter que rever esta decisão....

Lúcio é um usuário do CECCO com um grau leve de deficiência mental e com problemas de dicção, Antonio se apresentava na época como parte da população geral, mas com visíveis dificuldades de raciocínio e convívio social. Vânia estava, obviamente, incomodada com a escolha que o grupo fez destes dois como representantes, mas as pausas e retomadas de sua fala nos dão a impressão de que evita dizer algo. Um possível tom crítico aos rapazes é contrabalançado por uma insinuação de que se quer protegê-los: “é ruim pros dois”. A conversa se desenrola, reclamando-se do resultado da eleição mas com medo de se tocar diretamente na questão, como se houvesse algo de muito “feio” neste assunto.O psicólogo diz:

Psicólogo: Bom, parece que vocês estão insatisfeitos com o resultado da eleição. Mas eu não vejo ninguém dizer exatamente o que acontece. Parece que há muito medo de que se pense que é preconceito.

Vânia: Não, não é preconceito, é só que ... você sabe... Vai ter que falar, escrever, o Lúcio não sabe escrever, né?

Psicólogo: Pois é, vamos tentar precisar o que é necessário para esta função de representante. É necessário escrever, falar, o que mais?

O grupo começa a enumerar algumas coisas: O representante da cooperativa deve ser capaz de levar e trazer as informações. Então, é importante que ele fale e tome notas. Começa a ficar claro que os escolhidos não têm todas as características necessárias. Vânia diz:

Vânia: Pois é, gente, como eu disse, tinha aquela moça naquela reunião que falava super bem , por que vocês não escolheram ela?

Psicólogo: Qual era o nome dela?

Vânia: Eu não sei, foi a primeira vez que a vi.

Psicólogo: Você não acha que para ser representante seria necessário ser alguém presente nas nossas reuniões, que já fizesse parte do grupo?

Em termos de alianças inconscientes começa a ser possível pensar o sentido desta eleição. A cooperativa passava por um momento complicado. As pessoas estavam deixando de comparecer. “Elas tem que trabalhar de manhã, pra comer à tarde” dizia-se. Mas não se discutia sobre o assunto. Parece-nos que assim como não se podia discutir claramente as limitações de nossos usuários, não se discutia as limitações de cada um no grupo. Mesmo a Vânia, não pôde ver o problema contido em sua indicação. Uma aliança inconsciente estava sendo revelada. Acreditamos que se negavam as “deficiências” de cada um.

As discussões que se seguiram permitiram compreender melhor os limites dos eleitos e do grupo em relação ao cargo de representante (todos tinham algum impedimento: tempo, dinheiro, prioridades etc...). Foi possível identificar algumas qualidades favoráveis dos eleitos tais como assiduidade, envolvimento, facilidade de locomoção (em função da isenção tarifaria) etc... Argumentou-se que, se um fala bastante (ainda que com problemas de dicção) e o outro escreve, um poderia complementar o trabalho do outro. Decide-se também que, sempre que possível, uma terceira pessoa os acompanharia.

 

O Parque como Território

Iniciamos um grupo no espaço externo em frente ao CECCO. O grupo tem como tarefa orientadora o tema : “Cultivando relações” e é composto por população alvo. No dia em questão, trabalhamos no formato de um grupo operativo verbal (note-se que são feitas muitas outras atividades neste grupo). Pessoas passam ao lado e comentam algo depreciativo sobre o grupo. Os usuários comentam:

Joaquim: Vamos entrar. (na única sala do CECCO)

Psicólogo: Por que?

Joaquim: Não, agora vamos entrar, agora! Não gosto de ficar aqui.

Psicólogo: Parece que vocês se incomodaram com o que foi dito por aquelas pessoas que passaram há pouco.

Tenta-se trabalhar um pouco, mas o nível de angústia é muito alto. Resolve-se entrar. Fecham-se as portas e janelas de modo a não serem vistos

Psicólogo: Parece que, quando alguém faz algo que vocês não gostam, dá vontade de se fechar.

Joaquim: É, minha mãe já dizia isso! Pra não arrumar confusão é melhor não ter papo com ninguém. Não gostou, volta pra casa e se fecha.

A existência pura e simples do CECCO no parque não parece garantir em si a “democratização” do espaço. Dentro do parque se delimitam as áreas dos “loucos” separando-as das outras áreas. De algum modo os próprios usuários participam da sustentação desta divisão. Por exemplo, quando querem se “fechar” no prédio do CECCO ou em uma atividade. Durante um jogo de futebol:

Joaquim: No jogo é só nós aqui. Não quero neguinho de fora. É só nós, não adianta vim querer jogar não.

A identificação com o estigma que os separa dos demais é freqüentemente espontânea. Quando cobrado por um colega de uma obrigação corriqueira:

Joaquim: Que é isso. Eu sou DOENTE!!!! Você não pode ficar me cobrando. Eu disse que ia, mas não fui. Eu sou doente.

Pensando-se, através do conceito de alianças inconscientes, o estigma da loucura também cumpriria uma função de organização intrapsíquica para os estigmatizados, a qual se apropria de elementos disponibilizados na sociedade. No mesmo dia em que nos “fechamos” dentro do CECCO a raiva acaba surgindo em Joaquim, e sua condição social de doente parece abrir o caminho para uma modalidade de revanche:

Joaquim:Eu tava no banco, fui lá na frente direto. Eh furando a fila! É olha aqui, eu sou doente eu tenho direito. É, eu que sou mais esperto que vocês, recebo sem trabalhar e não pego fila. Eu falo mesmo!

Em outros momentos a “revanche” parece tornar-se um “descontar” nos outros quando é tomada dentro do próprio grupo. É muito comum eles procurarem “expulsar” aqueles que têm mais dificuldade, ou “elegerem” alguém como bode expiatório que recebe, em geral, o mesmo tratamento que tanto os incomoda. Será que, em relação ao conceito de aliança inconsciente, este funcionamento do grupo pode ser relacionado ao que ocorre de modo mais geral no território? Poremos encontrar nele algo que seja também negado pelo resto das pessoas no território? Vejamos a vinheta a seguir.

 

Quem apanha bate?

João é um garoto de 10 anos que chegou ao CECCO dizendo que via e conversava com um menininho verde que lhe obrigava a aprontar. Ele realiza uma série de entrevistas iniciais enquanto aguarda a inserção em um grupo. Estabelece uma forte relação transferencial com o psicólogo na qual este substitui o pai que o abandonou. Durante uma destas entrevistas, João traz um amiguinho, Lucas. Os três sentam-se em uns bancos no parque. Os amigos contam que os meninos maiores “zoam” com eles e depois, com grande prazer, contam como eles “zoam” com os mais novos. Uma turma de garotos nos vê e fazem algum comentário com ironia e desdém:

Psicólogo: O que vocês disseram?

Garotos: Ele é loquinho! Rárárá

(...)

Psicólogo: Estávamos justamente falando de como as crianças zoam com as outras. Parece que às vezes quando machucam a gente, a gente precisa descarregar em outras pessoas.

Os meninos se desconcertam com a atitude do psicólogo. Começam a conversar, revelam curiosidade sobre o que estava se passando ali. Em um certo momento da conversa:.

Psicólogo: Às vezes a vida pode ser muito dura p’ra um garoto. Tem muitas coisas que podem nos machucar. Por exemplo, quando um pai vai embora o garoto pode pensar que o problema é com ele. É muito difícil viver achando que o nosso pai não gostava da gente.

Ricardo (“líder” do grupo): Meu pai queria que minha mãe enfiasse uma agulha de tricô pra me tirar.

Os garotos querem ir embora, Ricardo quer ficar, ele acaba marcando uma entrevista para ele (mas não comparece).

A hipótese de trabalho, aqui, foi de que a agressão de João aos coleguinhas poderia ter a mesma motivação da agressão que ele sofria ali naquele momento. Em uma perspectiva de alianças inconscientes a agressão (recebida e perpetrada pelo grupo de crianças e por João) corresponde a algo que é negado junto. O que poderia ser? Como exercício de reflexão imaginemos que aquilo que se nega em conjunto é a agressão recebida. Agressão que não consegue ser elaborada e da qual o sujeito só se livra ao passá-la adiante como aquela brincadeira da “batata quente”. Ao mesmo tempo, segundo esta perspectiva de alianças inconscientes, isto que é negado é o que garante o vínculo. Assim a agressão é paradoxalmente uma forma de relação: a relação possível. É a partir da agressão que a turma do parque chega até nós. Forma de relação que, ao mesmo tempo, permite manter fora do campo da consciência aquilo que, ordinariamente, seria intolerável.

Seria interessante lembrar que, de certa forma, toda a população deste território é excluída e discriminada (do ponto de vista sócio-econômico). Será que discriminar o usuário de saúde mental é uma forma de “se livrar”, ou mais exatamente, negar a agressão que recebem? Fazemos estas perguntas com o intuito de explicitar ao leitor o tipo de reflexão que o conceito de alianças inconscientes exige neste contexto. Mais do que as respostas, que não temos, queremos ilustrar um raciocínio.

 

Palavras Finais

Acreditamos que o conceito de alianças inconscientes para pensarmos o preconceito em relação ao usuário de saúde mental pode ser um instrumento valioso no planejamento e na condução das atividades de um serviço que se proponha a promover a inclusão de usuários de saúde mental. Ele pode auxiliar no manejo de grupos e oficinas realizados pelo serviço, sobretudo quando há população geral nos mesmos. Talvez, conforme nossa proposta neste trabalho, possa ser, utilmente, aplicado para orientar o planejamento e intervenção junto ao território de abrangência do serviço.

Este conceito torna a promoção da inclusão uma tarefa complexa. Deve-se imaginar que ao mesmo tempo que produz sofrimento, o preconceito oferece sustentação psíquica tanto para os ditos “normais” quanto para os usuário de saúde mental.

O trabalho dos serviços seria criar condições para que se transformem as alianças inconscientes, criando-se alternativas menos penosas para sustentação e organização do vínculo inter-subjetivo e intrapsíquico.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

EMÍLIO, S. A. O Cotidiano Escolar pelo Avesso: sobre laços, amarras e nós no processo de inclusão. 2004. Tese de Doutoramento em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano- Universidade de São Paulo, São Paulo.        [ Links ]

KAËS, R. Le Groupe et le Sujet du Groupe. Paris : Dunod, 1993, 352 p.        [ Links ]

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FERNANDES, M. I. A. Mestiçagem e Ideologia: Algumas Reflexões sobre a Negatividade na Construção dos Laços Sociais. 2003. 167 f. Tese (Livre Docência) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo.        [ Links ]

MENDES, E. V. Território : Conceito Chave do Distrito Sanitário In - SANTANA, J. P.(org.). Desenvolvimento Gerencial de Unidades Básicas do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Organização Pan-Americana, 1997. p.155- 157.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: pablocgc@terra.com.br

 

 

1 Trabalho apresentado no V Congresso do NESME.
2 Psicólogo da Secretaria Municipal da Saúde da Prefeitura Municipal de São Paulo (SMS-PMSP) Mestrando em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP) Pesquisador do Laboratório de Estudos em Psicanálise e Psicologia Social (LAPSO-IPUSP)
3 Notemos que o parque é freqüentado pela população da referida subprefeitura. Nele, julgamos encontrar, em escala reduzida, muitos dos elementos (pessoas, tipos de relação, problemas, modo de utilização do espaço etc...) que caracterizam a subprefeitura como um todo. Neste sentido, o território do parque é aproximadamente equivalente ao território da subprefeitura.
4 O território parece possuir regras tácitas que governam a circulação de pessoas. A ocupação da área pública pêlos usuários de saúde mental é historicamente um desafio. Mesmo fora de instituições manicomiais estas pessoas podem ter sua mobilidade bastante restringida, ficando as vezes reclusas às casas onde moram. Entretanto, nossa prática tem apontado também para alguns ganhos de mobilidade de vários de nossos usuários comparados a população geral de nossa região. Parece-nos que estes ganhos estejam relacionados com a isenção tarifária, a disponibilidade de tempo livre e uma certa “proteção” que o estigma da loucura fornece-lhes. Em uma subprefeitura extremamente violenta a observância das pessoas às regras tácitas de circulação no espaço público são fundamentais como forma de proteção. Nossa experiência tem sugerido que é permitido aos percebidos como “loucos” ou “deficientes” uma maior tolerância em relação a estas regras.

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