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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo v.2 n.2 São Paulo dez. 2005

 

ARTIGOS

 

Os caminhos das propostas de moradias para ex-pacientes psiquiátricos1

 

The ways of residence projects for former-psyquiatric pacients

 

Los caminos de los projectos de residencias terapéuticas

 

 

Audrey Rossi Weyler2; Maria Inês Assumpção Fernandes3

Laboratório de Estudos em Psicanálise e Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Pode-se afirmar que um dos desafios enfrentados atualmente pela Psicologia Social é a reflexão sobre políticas públicas em Saúde Mental e suas repercussões para a subjetividade dos grupos e sujeitos envolvidos. Discussões sobre a construção de outro lugar social para a loucura têm conquistado importância nas últimas décadas e se refletido na implantação de dispositivos substitutivos aos hospitais psiquiátricos. O presente trabalho busca aprofundar as discussões das residências terapêuticas, a partir da análise crítica sobre a construção das passagens do manicômio para as casas, atentando para a especificidade desse dispositivo. É possível destacar a existência de duas dimensões fundamentais que se sobrepõem nas moradias. Há, de um lado, os lugares institucionais apoiados em um sistema de referência do âmbito dos serviços de saúde mental. Do outro, estão os lugares que podem ser comumente ocupados em uma residência e que se apóiam em parte nas representações decorrentes de vínculos de parentesco. O projeto pode se propor como um dispositivo de mudança, dentre um conjunto de fatores, porque os moradores poderiam ocupar diferentes lugares além daqueles tradicionalmente instituídos nas relações manicomiais.

Palavras-chave: Saúde mental, Reforma psiquiátrica, Psicanálise, Instituições.


ABSTRACT

One might say that one of the challenges in nowadays Social Psychology is a critical reflection on Mental Health public policies and their effects on the subjectivity of groups and individuals involved in them. Discussions that have been held on the construction of some other social places for insanity have attained great importance during the last few decades; also they have influenced the adoption of certain methods in substitution to psychiatric hospitalization. This work intends to deepen discussions on those residence projects by means of a critical analysis of the developments going from the asylum situation to those residences, taking into acount the residence’s specific characteristics. It’s possible to highlight two main dimensions that are superimposed on the residences. In the one hand, that are institutional places supported by a system of reference in the Mental Health services range. On the other hand, that are all the places normally developped in a house based on representations resulted from family relationships. This project proposes itself as a change trigger, among several facts, since the residents can occupy different places that normally devellopped in the Mental Health institutions.

Keywords: Mental health, Psyquiatric’s reform, Phychoanalysis, Instituitions.


RESUMEN

Podemos afirmar que uno de los desafíos enfrentados actualmente por la Psicología Social es la reflexión sobre políticas públicas en Salud Mental y sus repercusiones para la subjetividad de los grupos y sujetos involucrados. Discusiones a respecto de la construcción de otro lugar social para la locura viene ganando importancia en las últimas décadas y se refleja en la implantación de dispositivos sustitutivos a los hospitales psiquiátricos. Este trabajo busca profundizar las discusiones de las residencias terapéuticas a partir del análisis crítico sobre la construcción de pasajes del manicomio para las residencias, observando la especificidad de ese dispositivo. Es posible destacar la existencia de dos dimensiones fundamentales que se sobreponen en las habitaciones. Hay, por un lado, los lugares institucionales apoyados en un sistema de referencia del ámbito de los servicios de salud mental. Por otro, están los lugares que pueden ser usualmente ocupados en una residencia y que se apoyan en cierta medida en las representaciones provenientes de vínculos de parentesco. El proyecto se puede proponer como un dispositivo de cambio, dentro de un conjunto de factores, porque los moradores podrían ocupar distintos lugares además de aquellos tradicionalmente instituidos en las relaciones manicomiales.

Palabras clave: Salud mental, Reforma psiquiatrica, Psicoanálisis, Institucións.


 

 

O presente trabalho é fruto de uma pesquisa de mestrado sobre duas propostas de residências terapêuticas localizadas em um município no interior do Estado de São Paulo. Nosso objetivo é aprofundar as discussões sobre as propostas de moradias, a partir da análise crítica sobre a construção das passagens do manicômio para as casas, atentando para especificidade desse dispositivo substitutivo em saúde mental.

Podemos afirmar que um dos desafios enfrentados atualmente pela Psicologia Social é a reflexão crítica acerca das políticas públicas em Saúde Mental e suas repercussões para a subjetividade dos diferentes grupos e sujeitos envolvidos.

A implementação dos dispositivos substitutivos aos manicômios, no âmbito da Reforma Psiquiátrica, tem acontecido com maior intensidade nas duas últimas décadas. Neste contexto, houve o crescimento do número de propostas de moradias para ex-pacientes psiquiátricos, principalmente no início dos anos 90. Tais propostas pretendem retirar dos manicômios seus pacientes e instalá-los em casas em diversos municípios do país. Os beneficiados pelo programa são, em geral, internos, cuja permanência já não se justifica mais e que, na maioria das vezes, tiveram todos os referenciais familiares perdidos.

Essas moradias receberam em 2000, com a portaria de lei 106, a denominação de “Serviços Residenciais Terapêuticos”, cujos objetivos centrais e oficiais são: promover a reinserção social dos antigos internos dos manicômios e propiciar-lhes autonomia, através do processo de reabilitação psicossocial, com (re)aprendizagem de atividades cotidianas e sociais necessárias para vida em comunidade. Visa-se, com isso, que o morador deixe de ser um tutelado da instituição hospitalar e resgate a possibilidade de convivência social, encontrando condições para uma vida com qualidade e integrada ao ambiente comunitário.

É fundamental atentarmos, entretanto, que a tarefa de incluir o louco em uma forma distinta de habitar e circular pela cidade transcende o âmbito da Reforma Psiquiátrica. No caso específico dos Serviços Residenciais Terapêuticos, é preciso considerar que muitos dos ex-pacientes que têm passado a viver nas casas ficaram, em geral, vários anos internados. As longas décadas de reclusão promoveram significativas experiências de desenraizamento da cidade e de suas tradições culturais. São indivíduos que foram apartados de seus territórios, de suas famílias, grupos sociais e, sobretudo, de seus direitos sociais e civis fundamentais. A possibilidade de voltar a freqüentar diferentes espaços públicos de uma cidade implica o retorno e a circulação de modos de viver e de habitar a cena urbana que, já em um momento anterior, não foram aceitas e sofreram o banimento nos manicômios. Trata-se de um segmento que, durante séculos da história da psiquiatria ocidental, tem sido alvo de intensos temores, preconceitos e violência, justificados em práticas e teorias tidas como absolutamente “neutras e científicas”.

A construção de um outro lugar social para a loucura que não seja o da doença, da anormalidade, da periculosidade, da incompetência e do erro implica uma detalhada revisão do conjunto de representações que atravessam a sociedade e que acompanham os indivíduos tomados como loucos. Neste sentido, pode-se afirmar que as novas tecnologias atreladas às recentes políticas públicas na área de saúde mental não podem ser pensadas e abordadas sem que se leve em consideração as atuais gerações de práticas e imaginários sociais que envolvem a loucura. (FERNANDES, 1999, p. 45). A proposta de reinserção social das diversas residências terapêuticas é complexa e engloba muitos aspectos além da “simples retirada da população interna dos manicômios” para a nova morada e circulação pela cidade.

É preciso considerar, antes de mais nada, que a cidade para onde os ex-pacientes retornam dificilmente será a mesma, seja do ponto de vista de sua localização geográfica, seja a partir de suas novas configurações espaciais ou de outras formas diferenciadas de relacionamentos e encontros sociais. Muitas vezes, esses indivíduos não voltam para suas cidades de origem, e mesmo quando o fazem, encontram um lugar conhecido/desconhecido, organizado a partir de referências espaço temporais bastante distintas do período de suas juventudes. Esses “novos moradores da cidade” devem se deparar com um espaço “aberto e livre” que se apresenta, muitas vezes, de maneira hostil, repleto de ritmos variados, imprevisíveis e até enigmáticos.

Trata-se de uma importante problemática que nos remete à questão do enraizamento e seus estreitos laços com a historicidade desses sujeitos e suas experiências de perda dos suportes materiais da memória tendo em vista as muitas mudanças sofridas pelas configurações urbanas.

Fernandes (2004) ressalta que a cidade tem “afogado” as pessoas. São novas as exigências, os contatos e os lugares que a cidade oferece aos seus moradores. Mas, quais são os lugares possíveis e ofertados para um ex-morador psiquiátrico que volta a circular pelo espaço urbano? Quais são as possibilidades de enraizamento e de apego à cidade? O desafio é procurar saber como a cidade constrói seus lugares, não mais revestidos da qualidade segregadora e “excludente” dos manicômios. É possível construir caminhos de volta? É possível construir outros caminhos dentro da cidade?

Scarcelli (2002) aponta para os riscos das políticas públicas em saúde mental e das práticas que sustentam as propostas dos serviços residenciais terapêuticos, apesar de seus importantes avanços e caráter inovador, promoverem uma experiência de inserção social precária de seus moradores, uma inserção que ainda mantenha algumas marcas do caráter excludente e opressor dos manicômios. O risco de uma inserção que se detenha, sobretudo, no âmbito da assistência oferecida pela equipe para seus “pacientes”.

De acordo com a autora, o propósito da inserção seria a construção do direito pleno de cidadania e, para tanto, torna-se imprescindível;

“ampliar os horizontes para além da assistência, pois a casa, por exemplo, pode ser significada como mais um dos equipamentos assistenciais e não como local de habitar, de onde se pode partir e construir uma rede social. A transmutação do sujeito-sujeitado para sujeito-cidadão exige a construção de uma rede social que enlace todos os âmbitos possíveis: do território às políticas globais, dos serviços às políticas públicas, dos setores específicos à intersetorialidade, das representações sociais às representações inconscientes, da intersubjetividade à intrasubjetividade; o trânsito horizontal e vertical entre os âmbitos jurídico-político, sócio-cultural, teórico-conceitual e técnico assistencial” (SCARCELLI, 2002, p.82).

Neste sentido, é viável indicarmos que um projeto de moradia pode se propor como dispositivo de mudança, dentre um conjunto complexo de fatores porque, na casa, os moradores poderiam ocupar diferentes lugares além daqueles tradicionalmente instituídos nas relações manicomiais. Tais dispositivos de moradias apresentam uma especificidade que se pauta na convivência e na sobreposição de duas dimensões fundamentais. Há, de um lado, os lugares institucionais apoiados em um sistema de referência e representações conscientes e inconscientes que circula no âmbito dos serviços de saúde mental (como os lugares de técnico-profissional X usuário-paciente). Do outro, estão os lugares que podem ser comumente ocupados por moradores em uma residência e que se apóiam em parte, por exemplo, nas representações decorrentes de vínculos de parentesco, de família (por exemplo, os lugares de pai, mãe, etc.). Esse atravessamento de lugares institucionais se faz presente na base no projeto e aparece, inclusive, na denominação oficial dada a essas propostas pelo Ministério da Saúde: “Serviços Residenciais Terapêuticos”. São casas, residências, locais de moradia e, concomitantemente, serviços, no âmbito da saúde, com caráter terapêutico.

O morador que passa a viver em uma casa como essas experimenta uma dupla inserção: é usuário de um serviço de saúde, um “paciente” que recebe a assistência, os cuidados terapêuticos do profissional especialista que detém um saber sobre ele e, ao mesmo tempo, é um indivíduo que, na casa, deve resgatar as funções fundamentais do morar, imprimir sobre ela significados decorrentes de experiências, ritmos próprios e ser um morador da casa e da cidade. Os moradores, em alguns momentos, aparecem como “pacientes” que precisam do suporte dos profissionais para, ali, estarem; em outros, relacionam-se entre si, com os técnicos e com o espaço de sua nova morada como “donos” da casa, com um elevado nível de apropriação e cuidado.

É preciso considerar que esse atravessamento de lugares institucionais que se forma na base das relações estabelecidas cotidianamente nas moradias funda uma tensão, uma situação paradoxal que acaba por perpassar as formas como os moradores se inserem nestas residências e nas cidades.

O desafio para os profissionais, por sua vez, é favorecer as possibilidades de resgate da experiência de habitar desses novos moradores, levando-se em conta os riscos de se controlar e de se programar essas casas como mais um espaço “medicalizado”. A especificidade do trabalho desenvolvido nas moradias impõe novas exigências aos trabalhadores, que vão desde a revisão de alguns paradigmas fundamentais da psiquiatria até o desenvolvimento de certas atividades que questionam os limites mais tradicionais das suas profissões. Neste dispositivo, o profissional também experimenta uma dupla inserção. O trabalhador precisa, por exemplo, acompanhar a medicação dos moradores, seus quadros clínicos e psiquiátricos e participar, além disso, de atividades referentes à manutenção da casa, como cuidados com a limpeza e organização do espaço. A especificidade do trabalho nas moradias traz consigo o desafio de “regular as distâncias” entre quais poderiam ser as funções de um trabalhador em saúde mental e quais seriam as possibilidades de ocupar, no cotidiano, o lugar de dono da casa.

Podemos apontar que a questão dos lugares ofertados e dos papéis ocupados nas moradias vincula-se intimamente com o aspecto da tutela, uma vez que a assistência organizada para a casa pode, por um lado, ser o suporte necessário para que o “usuário” possa, por exemplo, resgatar planos pessoais e, por outro, pode favorecer a manutenção da dependência e a rigidez dos lugares.

Pichon-Rivière (1986) aponta que a aprendizagem é aprendizagem de diferentes papéis em relação entre si. Pensamos que, nas casas, há possibilidade de mudança quando os moradores podem, sobretudo, ser moradores e cada um à sua maneira, de acordo com suas histórias de vida e com as novas relações que se estabelecem cotidianamente nas casas e com outros habitantes da cidade. Em instituições totais, por outro lado, seus membros encontram-se constantemente submetidos à figuras de autoridade coercitivas, que se colocam como obstáculos a uma eventual transformação, interditando, entre outras coisas, expressões pessoais e a possibilidade de superação de conflitos. Tal afirmação de autoridade não favorece, segundo Kaës (2003), um espaço de crescimento psíquico e social. Trata-se de um círculo vicioso, no qual a autoridade, sem outra finalidade além dela mesma, aprisiona o indivíduo em um número limitado de papéis, empobrece sua personalidade e não desenvolve nenhuma plasticidade adaptativa.

Há o risco de a moradia se estabelecer como um espaço onde o cotidiano, os tempos, os ritmos, boa parte das ações necessárias para manutenção do seu funcionamento seja construída com pouca participação dos moradores. Uma morada cujos rumos sejam, fundamentalmente, cuidados e orientados pelos técnicos, um espaço onde, segundo uma das trabalhadoras entrevistadas durante a pesquisa, “as coisas vão quebrando, e se nós funcionários não virmos pra poder chamar a manutenção pra arrumar... a casa cai em cima de nós” (Sic). Uma casa que pode ter o cotidiano organizado a partir de uma seqüência de atividades que se desenvolvem segundo tempos pré-estabelecidos e que se repetem em uma mesma cadência dia após dia.

É fundamental destacarmos, no entanto, outras experiências onde foi possível acompanharmos moradores que, progressivamente, se apropriaram da casa como seu espaço de morada, com a possibilidade de experimentarem a impressão de ritmos e tempos próprios. Tais experiências favoreceram algumas importantes e significativas conquistas por parte dos moradores. A mudança do hospital para a casa não se configurou como uma simples mudança de espaço. Foi possível, observar em algumas moradias, a construção da experiência de habitar uma casa, ou seja, a possibilidade de ocupá-la, material e simbolicamente, de forma bastante pessoal, preenchendo-a com conteúdos, marcas e significados próprios. A casa configurou-se, aqui, como um local que oferece a possibilidade aos seus moradores de experimentarem a liberdade e também o relaxamento de imprimirem, na esfera privada, ritmos próprios, em uma construção permanente de maior sintonia entre o espaço e seu habitante. Uma experiência muito diferente de uma instituição total, onde, segundo Goffman (1999), os menores segmentos da atividade de uma pessoa podem estar sujeitos a regulamentos e julgamentos da equipe de profissionais.

Neste sentido, um morador fala sobre a passagem para a moradia:

“Agora, aqui, a gente pode tomar banho a hora que quer, pode comer, abrir a geladeira, comer uma fruta, dormir a hora que quer, tem mais liberdade na casa, né” (Sic).

Podemos supor haver uma íntima relação entre as experiências dos moradores como “donos da casa” e a progressiva e concomitante construção destas moradias como espaços habitados, preenchidos por marcas que os indivíduos trazem de suas histórias pessoais e culturais. No encontro entre os moradores e os profissionais, à medida que os primeiros constroem progressivamente a apropriação do espaço onde vivem e de suas próprias vidas, é possível que haja maior mobilidade entre os papéis sociais exigidos cotidianamente para a manutenção de uma moradia.

A partir de outras modalidades de trocas com o espaço que transcendam a violência exercida pelos manicômios, os moradores podem resgatar, no cotidiano das casas, diferentes aspectos de suas histórias de vida. Múltiplas são essas possibilidades e formas de um ex-paciente psiquiátrico resgatar e re-significar, na moradia, os elementos e as marcas de sua história de vida. O cotidiano nas casas favorece a ligação com experiências passadas, através da preservação de espaços, refúgios e atividades cotidianas que guardariam e resgatariam os sonhos, os devaneios e as memórias.

É fundamental considerarmos que as instituições psiquiátricas são relativamente recentes, existem há menos de três séculos, e têm, segundo, Saraceno (1999), entre seus eixos centrais o movimento de se estabelecer como “residências para os indivíduos tomados como loucos”. Os manicômios configuraram-se, ao longo da história da psiquiatria, como “residências coagidas”, construídas a partir de um projeto total e controlado, onde a possibilidade dos indivíduos habitarem esse espaço sofreu diferentes medidas de aprisionamento. O morar, no entanto, transcende e antecede as instituições psiquiátricas. Ele não se restringe apenas aos aspectos assistenciais e terapêuticos dos diferentes dispositivos de saúde. Esta transcendência deve também ser levada em conta na implantação das várias propostas de moradias para os indivíduos acometidos por sofrimento psíquico. O morar diz respeito a uma das experiências mais fundamentais do ser humano, relaciona-se com a possibilidade de uma ligação profunda com o ambiente ou com uma pessoa que fornece acolhida, proteção e suporte. A relação da casa com o que poderia ser entendido como uma função, sobretudo, materna, está presente já nos hieróglifos egípcios, onde “casa” ou “cidade” poderiam surgir também como símbolos de “mãe”.(MUMFORD,1998, p.19, Apud FERNANDES, 2004, p.65).

Bachelard (2000) afirma que todo espaço verdadeiramente habitado traz a essência da noção de casa. A casa é o lugar onde podemos encontrar proteção, abrigo, recolhimento e estabilidade. Trata-se do lugar para onde é possível retornarmos e nos voltarmos para nós mesmo após a dispersão da cidade. Um espaço de recolhimento, descanso e sonho que se apóia profundamente na dialética dentro e fora, na medida em que pode se fechar no familiar, no conhecido e estável e também se abrir, em alguns momentos, para o estranho, para aquilo que é desconhecido na cidade. De acordo um morador: “uma casa.... é o habitar da cidade. É você poder habitar a cidade, tendo um lugar pra voltar ... pra voltar no fim do dia”. Sic O morar relaciona-se com a casa, com a cidade e com o trânsito fundamental entre essas duas dimensões e não pode, dessa forma, se restringir à inserção em um dispositivo de saúde.

As propostas de moradias nos impõem o desafio de um ou de múltiplos olhares sobre a loucura. Olhares que levem em conta diferentes planos e recortes: das políticas públicas ao saberes tradicionalmente instituídos; do morar, à casa e à cidade; das instituições e suas práticas aos sujeitos envolvidos, suas histórias, caminhos e (des)caminhos. A loucura, enquanto uma modalidade de experiência subjetiva, não é um assunto estrito das práticas médicas e psicológicas. Da mesma forma, que o habitar a casa e a cidade está para além das práticas e dispositivos de controle. Trata-se da construção de espaços outros para o louco e para a loucura na vida da cidade.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência
E-mail: dreyrw@hotmail.com / dreyrw@uol.com.br

 

 

1 Trabalho apresentado no V Congresso do NESME.
2 Audrey Rossi Weyler: Mestre em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo. Psicóloga e membro e pesquisadora do Laboratório de Estudos em Psicanálise e Psicologia Social (LAPSO) do Instituto de Psicologia da USP.
3 Maria Inês Assumpção Fernandes: Professora Livre Docente do Curso de Graduação e do Programa de Pós-Graduação Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Coordenadora do Laboratório de Estudos em Psicanálise e Psicologia Social (LAPSO) do Instituto de Psicologia da USP.

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