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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo v.2 n.2 São Paulo dez. 2005

 

ARTIGOS

 

A natureza da lei no Brasil1

 

The nature of law in Brazil

 

La naturaleza de la ley en Brasil

 

 

Marina Durand2

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Observamos que no Brasil, provavelmente devido ao enraizamento da cultura paternalista na nossa subjetividade, a autoridade tende a confundir-se com a instituição, no sentido de que, via de regra, ela não representa a lei – como seria de direito – mas funciona como se fosse a própria lei. Ocorre uma apropriação indevida do pessoal sobre o institucional, com conseqüências importantes para a vida social sob a forma, por exemplo, da corrupção e também conseqüências psíquicas: confusão entre o público e o privado. A identificação com o agressor é um mecanismo psíquico que tende a minimizar os efeitos desta situação na formação do nosso narcisismo, mas acaba por acentuar o déficit que se propunha a diminuir.

Palavras-chave: Identificação com o agressor, Narcisismo, Autoridade.


ABSTRACT

The nature of the law in Brazil is that the authority tends to confuse itself with the institution, in the sense that it does not represent the law, it is the law. It happens probably because the paternalist culture is rooted in our subjectivity. An indebt appropriation occurs of what is personal upon the institutional with important consequences over the social life like, for example, the corruption. There are also psychics consequences like confusion between what is public and what is private. The identification with aggressor is a psychic mechanism that tends to minimize the effects of this situation in the construction of our narcissism, and this situation causes the enlargement of what it intended to diminish.

Keywords: The identification with aggressor, Narcissism, Authority.


RESUMEN

En Brasil la autoridad muchas vezes es confundida con la institución misma. Asi, esta no representa la ley, pero es la ley. Es posible que esto ocurra porque la cultura paternalista está arraigada en nuestra subjectividad. Lo que es personal se apropia indebidamente de lo que es la institución. De esto decurren consecuencias importantes para la vida social que se presentan como la corrupción, por ejemplo y desde el punto de vista psíquico acaece la confusión entre lo que es público y lo que es privado. La identificación con el agresor es un mecanismo psíquico que visa a minimizar los efectos de esta identificación en la constitución de nuestro narcisismo, porque esto acentua el déficit que tanto se proponia a disminuir.

Palabras clave: Identificación com el agressor, Narcisismo, Autoridad.


 

 

O vínculo com a lei no Brasil está alicerçado numa forma adversativa existe, mas não é para valer. Do ponto de vista prático corresponde à constatação você tem direitos, mas não há certeza de usufruí-los. A ambigüidade reside em reconhecer o direito na forma para negá-lo no fato, legalizando o engano. A operação ambígua, em que coexistem o sim e o não, institui o engano de ter um direito. Nesta ordem perversa - subjetivamente paternalista em que a lei é o exercício pessoal do poder -, a reivindicação do direito no contexto das relações de trabalho pelo empregado, assume, o sentido de abuso ou rebeldia. É perversa porque aponta para o sujeito um lugar, em que o desejo seria legítimo, mas quando ele aí se coloca é para dele ser expulso, recrudescendo a humilhação e o mau amor de si. Perversa porque não permite resolução ao marcar o desejo com as formas do pecado. Enfim, “A verdade é essa sem ser bem assim”3.

O tema do “jeitinho brasileiro” associado à compulsão de levar vantagem assume aspectos inusitados se o considerarmos à luz de uma estrutura social com características perversas. A vantagem que o sujeito extrai do ato de enganar parece secundária em relação à satisfação de acreditar não ter sido enganado. A necessidade de enganar é induzida estruturalmente, funciona como defesa à ordem que prevê “aos amigos tudo, aos inimigos, a lei”. Qual alternativa resta ao sujeito? Se obedecer considera-se e, é considerado, bobo ou covarde; se transgredir é culpado. Estas não se devem considerar características do brasileiro, mas sim do meio social brasileiro, das estratégias de exercício e manutenção do poder, instituindo o ilegal – ao torná-lo legítimo - como forma de convívio social. Convívio que assume a forma de conivência. E dessa maneira atinge a todos nós.

O esforço por uma subjetividade mais complexa caminha na direção de estabelecer a discriminação entre os termos todos e ninguém. Entretanto, nos estratos mais arcaicos de nosso psiquismo inconsciente eles se equivalem, porque a história brasileira testemunha a sobreposição destes termos. O que é de todos acaba por se tornar de alguns. A reiteração desta experiência compromete a possibilidade de formular um conceito vivo de público - para não ser letra morta o conceito precisa estar amparado pela experiência. A discriminação e a densidade psíquica dependem da prática social, ela propõe no acontecer da vida o critério de verdade, inevitavelmente histórico. História também do esforço de construir a si, à procura das brechas na dinâmica de dependência, em que o direito está dissociado dos fatos.

Uma conseqüência que observamos é o fascínio da autoridade - do qual fazem parte o medo e a admiração - seja um elemento importante para ativar a repressão ou o “esquecimento” quanto aos deveres da autoridade diante da sociedade, surgem os lapsos quanto ao que faz, amnésia quanto ao que fez, os brancos que tornam naturais as justificativas do que é sabido ser um abuso. Sai da consciência tudo que se opõe à disposição libidinal própria ao vínculo paternalista em que a autoridade é inquestionável.

Não parece faltar capacidade intelectual para constatar o dano de subordinar o âmbito público ao interesse pessoal de alguns; falta, sim, é força de convicção para sustentar essa constatação. Como já vimos, Freud define a convicção como um vínculo erótico. No caso, a libido narcísica dos membros do conjunto migra em muito para a autoridade, que se torna depositária e representante do ideal (narcísico) dos componentes do grupo. Na impossibilidade de satisfazer por si tal anseio, ele se realiza indiretamente através da autoridade. Há muito desequilíbrio na distribuição da libido narcísica num conjunto com essas características e ela vai fazer falta na hora de sustentar uma atitude em oposição à autoridade.

Se a autoridade é em tese representante da lei, na práxis brasileira ela tem sido a própria lei. Nesse contexto de fenômenos, para ter força, a convicção do indivíduo precisa estar referendada pela autoridade externa, pois o seu valor é dado pelo vínculo erótico com ela. Esse procedimento define a condição de dependência psíquica e amorosa.

A falta de convicção subjetiva, por exemplo, do trabalhador no cotidiano das relações de trabalho para reivindicar direitos, parece se dever aos efeitos psíquicos da forte experiência paternalista em nossa cultura, já a descrença de que possam vir a ser satisfeitos certamente liga-se à experiência histórica. Os anos de experiência com os trabalhadores fez pensar que eles reivindicam direitos através da estima, fazendo uma composição muito particular entre aspectos tradicionais e modernos do vínculo.

 

Depreciação

A depreciação do Brasil pelos brasileiros, sobretudo os que detêm alguma forma de poder, torna o povo uma massa maleável ao interesse das diferentes elites. O amor próprio é uma arma importante de resistência, atacá-lo, fazendo o sujeito curvar-se sob o peso da depreciação, tem sido um instrumento psicológico de manutenção da posição de poder.

A lei é o eixo através do qual gira a vida social. Se prevalecer a instituição do favor, em que as relações pessoais e de poder determinam as formas da convivência e dos vínculos, eliminam-se as condições de formular um registro significativo da dimensão pública, pois nos falta a sua práxis. O déficit narcísico é a expressão psicológica da falta de registro da coletividade; sem este registro, falta ao indivíduo o apoio necessário onde possa sustentar-se e reconhecer-se, a partir do reconhecimento que o conjunto lhe confere.

O poder exercido dentro da cultura paternalista materializa-se na figura de uma autoridade, cuja principal característica é ser inquestionável. Ainda que sobre ela pesem todas as suspeitas, pesa mais o medo de qualquer forma de interrogação. O correspondente psíquico desta situação social é a submissão do ego ao superego, do vínculo moral sobre o vínculo de conhecimento. O vínculo de submissão está ligado a tomar a figura do agressor como modelo de identificação e de ideal de ego, acaba por acontecer uma situação psíquica de introjeção dos valores contrários aos interesses do próprio sujeito. Anna Freud (1982) definiu este processo como a identificação com o agressor.

A partir do déficit narcísico, surgem processos que procuram minimizar o sentimento de depreciação, como se identificar com o mais forte, só que acabam por acentuá-lo. A desesperança quanto às saídas históricas podem constituir-se numa forma de gozo, quase descarado com a posição de amargura e sofrimento.

É útil tomar em consideração algumas práticas sociais, cuja propriedade significante pode ser reconhecida sem dificuldades, para sugerir uma possível ligação entre elas e a formação de determinados processos psíquicos no conjunto de pessoas que as protagonizam e vivem.

Ora, se o próprio do paternalismo é a falta de fronteira clara, no pólo forte da relação, entre a autoridade social e a vontade pessoal, e se esta última é um conjunto mais ou menos contraditório de desejos inadmissíveis, de cegueira e de justificações infundadas, a situação do inferior ganha outra dimensão. A integração social deste se faz pela subordinação direta às servidões e confusões afetivas – que fazem autoridade e seria ingratidão não respeitar – da parte superior. (Schwarz, 2000, a, p.142)

A servidão, no caso, se dá no plano social e também no plano psicológico: às servidões do superior aos seus desejos pessoais, confusos e, muitas vezes, inconfessáveis. Borram-se as fronteiras entre o íntimo e o público, o social e o psicológico. Faltam as condições sociais e psíquicas para estabelecer a discriminação entre o público e o privado, fato comum na vida brasileira e associado à prática de corrupção pelas autoridades. De acordo com a ideologia paternalista “o chefe da família não pode ter outro interesse que a felicidade dos seus. E como não há autoridade acima dele – salvo a religião – a sua convicção tem força de lei” (Schwarz, 2000,a, p.142).

A figura do patriarca pela densidade simbólica, pelo misto de admiração e terror que seu poder inspira nos que estão sob seu domínio, aproxima-se da natureza do tabu4. Suas prerrogativas e funções na ordem social conferem à pessoa do patriarca, função equivalente a de uma instituição, facilmente ele se confunde com a própria lei e com a ordem do direito.

Na expressão popular, hoje irônica – vá queixar-se ao bispo - esgotados os apelos à polícia, ao governo, à justiça, sobrevive a antiga idéia do prestígio eclesiástico maior que o civil dentro da qual formou-se o espírito da gente peninsular. Principalmente na Espanha. No Brasil já esse prestígio não seria tão grande. As condições de colonização criadas pelo sistema político das capitanias hereditárias e mantidas pelo econômico, das sesmarias e da grande lavoura – condições francamente feudais - o que acentuaram de superior aos governos e à justiça Del-Rei foi o abuso do coito ou homizio pelos grandes proprietários de engenhos; e não pelas catedrais e pelos mosteiros, Criminoso ou escravo fugido que se apadrinhasse com senhor de engenho livrava-se na certa das iras da justiça ou da polícia. Mesmo que passasse preso diante da casa-grande bastava gritar: - Valha-me, seu Coronel Fulano. (Gilberto Freyre, 1983, p. 194)

Chama atenção que esta descrição, característica da relação com criminosos, é emblemática do que restou como forma de sobrevivência social ao homem pobre; ele partilha com o considerado criminoso a mesma condição marginal. As classes dirigentes brasileiras têm sido

... irresponsáveis pelo destino da população que, a seus olhos, não constitui um povo, mas uma força de trabalho, ou melhor, uma fonte energética desgastável nas suas façanhas empresariais. (Ribeiro, 1995, p. 256)

Brasileiro é uma palavra formada pelo sufixo eiro, que designa profissão, isto faz lembrar a análise do vínculo das relações de trabalho, em que o empregado, aos olhos do patrão, é por hipótese suspeito, precisa portanto ser vigiado, controlado e punido sempre que possível.

Não há limite para as exigências de produção porque não existe limite para as incertezas, desconfianças e dívidas com que o Capital tem tratado o Trabalho. ... as dívidas do sistema, sutilmente transformam-se em dúvidas: ele é bom ou mal trabalhador?
... aparentemente, trata-se da ansiedade quanto ao seu desempenho profissional; numa perspectiva menos superficial encontramos a angústia relativa às suas qualidades morais: ele é bom? É a empresa quem define essa resposta, segundo seus interesses. Convém a esses interesses manter a suspeita sobre o trabalhador, de forma que ele cada vez trabalha mais, comprometendo até sua saúde para provar que não é vadio. O problema consiste no trabalhador endossar o julgamento da empresa a seu respeito e tomá-lo como referência do seu próprio ser. O julgamento da empresa torna-se vital para sua identificação porque, quando veste a camisa, vão juntos os óculos e dessa forma introjeta a ótica através da qual a empresa o percebe. ... assim, reproduz intrapsiquicamente, pela pressão do superego sobre o ego, o modelo institucional empregador-empregado.. A dependência em relação à empresa não se restringe à necessidade econômica, também é psicológica. ( Durand, 2000, p. 29/30).

A autoridade funciona como um farol, um norte que assume para os que dela dependem as características de líder, aquele que reúne, agrega, transformando a pluralidade em uma forma organizada que lhe confere unidade. Estas características definem o grupo psicológico com características de massa no pensamento freudiano.

Freud5 propõe que o papel agregador e organizador do líder se deve a Eros, ao amor que os outros têm por ele, dessa forma, transforma-se no ideal de todos os outros que passam a compartilhar a condição de pertencer ao grupo por meio do amor. O laço que une todos ao líder estará presente nas relações dos membros entre si. O vínculo entre eles está, em alguma medida, relacionado ao vínculo com o líder. Quanto mais forte for o líder aos olhos dos que a ele se subordinam, mais fracos estes se tornam perante si próprios. O a mais de catexia colocado lá faz falta aqui. Esse é o substrato narcísico que nos falta.

Pra quê essa gentama no meu quarto, agora!... Faz mal pra saúde, gente!
Todos perguntaram pra ele:
- O que foi mesmo que você caçou, herói?
- Dois viados mateiros.
Então os criados as cunhãs estudantes empregados-públicos, todos esses vizinhos principiaram rindo dele. Macunaíma sempre aparando o bocal da flautinha.
A patroa cruzando os braços ralhou assim:
- Mas, meus cuidados, pra que você fala que foram dois viados e em vez foram dois ratos chamuscados!
Macunaíma parou assim os olhos nela e secundou:
- Eu menti.
Todos os vizinhos ficaram com cara de André e cada um foi saindo na maciota. E André era um vizinho que andava sempre encalistrado. Maanape e Jiguê se olharam e, com inveja da inteligência do mano. Maanape inda falou pra ele:
- Mas pra que você mentiu, herói!
- Não foi por querer não... quis contar o que tinha sucedido e quando reparei estava mentindo... (ANDRADE, M. 1988, pp. 95-6)

Macunaíma funda um gesto libertário de afirmação positiva para nós, sem mediação desse tão temível “outro”, que tivemos oportunidade de conhecer nos relatos dos grupos com profissionais do serviço público, na luta que travam pela liberdade de ser, fazer e dizer.

Macunaíma é puro impulso e, essa liberdade encanta, já o descaso com a moralidade superegóica, choca. A organização que sabe lhe faltar deixa para nós resolvermos, se possível com alguma graça, que a ele não faltou. Macunaíma é impulso in natura, esses impulsos são a matéria por organizar na convivência social. No Brasil quem nasce filho do medo da noite com os pés no chão, apanha. Macunaíma, não. Ele torna-se o imperador do mato e quando morre vira constelação. Por isso, permitam-me, Macunaíma, Herói de nossa gente com muito caráter!

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, M., 1988, Macunaíma, Edição Crítica, Telê Porto Ancona Lopez, Coordenadora, Editora da UFSC, Florianópolis.        [ Links ]

FREUD, A., 1982, O ego e os mecanismos de defesa, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.        [ Links ]

FREUD, S. 1913, Totem e tabu, Edição Standard Brasileira das Obras Completas, Vol. XIII, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1976.        [ Links ]

______________ 1923, O ego e o id, Vol.XIX.        [ Links ]

______________ 1921, Psicologia de grupo e análise do ego, vol. XVIII.        [ Links ]

COURI, R, C., 1977, A meia verdade em “O espelho” de Machado de Assis,Tese Apresentada no Instituto de Psicologia da USP para obtenção do grau de Doutor em Psicologia.        [ Links ]

DURAND, M., 2000, Doença ocupacional, psicanálise e relações de trabalho, Escuta,.São Paulo.        [ Links ]

FREYRE, G., 1983, Casa-Grande & Senzala, José Olympio, Rio de Janeiro.        [ Links ]

RIBEIRO, D., 1995, O povo brasileiro, Companhia das Letras, São Paulo.        [ Links ]

SCHWARZ, R., 2000, Ao vencedor as batatas, Duas Cidades, São Paulo, 2000.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: m.durand@uol.com.br

 

 

1 Trabalho apresentado no V Congresso do NESME.
2 Psicóloga, Especialista em Grupos Institucionais, Mestre em Psicologia Social – USP, Doutoranda em Ciências Sociais – PUC/SP, ex-presidente do NESME, autora do livro “Doença ocupacional, psicanálise e relações de trabalho”.
3 Citação de Machado de Assis feita por Celina Ramos Couri, 1997, p.10.
4 Em Totem e tabu, (1913), vol. XIII,Freud trata do assunto e discute a ambivalência de sentimentos e impulsos em relação ao objeto considerado tabu. “Não se faz necessária nenhuma ameaça externa de punição, pois há uma certeza interna, uma convicção moral, de que qualquer violação conduzirá à desgraça insuportável”. (p. 46)
5 Sigmund Freud, 1921, Psicologia de grupo e análise do ego, vol. XVIII, edição Standard Brasileira, Imago, RJ

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