SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.3 issue3Does group analysis need the neurosciences?The group as a learning place author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Vínculo

Print version ISSN 1806-2490

Vínculo vol.3 no.3 São Paulo Dec. 2006

 

ARTIGOS

 

 Preconceito em grupanálisis - considerações a propósito do terminus de uma grupanálise

 

Prejudice in group analysis – some thouguts about finishing group analysis

 

Prejudicio en grupanálisis – consideraciónes a propósito del término de una análisis grupal

 

 

Sara Ferro1

Sociedade Portuguesa de Grupanálise

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Pretende-se fazer uma reflexão e questionamento sobre os critérios utilisados na decisão de uma alta de terapia grupanalítica. Cabe ao terapeuta reflectir sobre seus pacientes atento aos movimentos transferenciais e contra-transferenciais, às suas limitações pessoais, aos limites das teorias, ao sistema de valores da sociedade vigente tendo presente a possibilidade de emergência de preconceitos que distorcem negativamente suas intervenções e decisões. A actividade analítica deverá nortear-se pois por uma capacidade de pensar livre e criativa, de permanente construção e desconstrução de hipóteses, de investigaçâo, sempre alertada para o risco da eventualidade do exercício pernicioso do preconceito.

Palavras-chave: Teoria e técnica grupanalítica, Ciência e preconceito.


ABSTRACT

The aim of this work is to think about and question as well the criteria when we are about to finish a group analytic treatment. The aim of this work is not only to think about but also to question the criteria used when we decide to finish a group analytic treatment. The therapist should be aware of the transferential and countertransferential movements his/her own limitations current social values taking always into consideration the possibility of an outburst of prejudices which could affect in a negative way his/her intervention and decisions. The group analytic activity must always guide itself by a capacity of free and creative thinking constant construction and deconstruction of hypothesis, research being particularly conscious of using prejudice in his work.

Keywords: Group analysis, Resonance,"Mirror neurons".


RESUMEN

Se pretende hacer una reflexión y cuestionar sobre los criterios utilizados en la decisión de una alta de terapia grupoanalítica.Cabe reflejar al terapeuta sobre sus pacientes de acuerdo a los movimientos transferenciables y contratransferenciables, sus limitaciones personales, los límites de las teorías, el sistema de valores de la sociedad vigente teniendo presente en el espacio y en el tiempo grupoanalítico la posibilidad de emergencia de prejuicios que deforman negativamente sus intervenciones y decisiones. La actividad analítica deberá orientarse por una capacidad de pensar libre y creativa, de permanente construcción y destrucción de hipótesis, de investigación, siempre alertada por el riesgo de la eventualidad del ejercicio pernicioso del prejuicio.

Palabras clave:Teoría y técnica grupoanalítica, Ciencia y prejuicio.


 

 

Procurarei nesta apresentação partilhar convosco algumas considerações a propósito da possibilidade de emergência de aspectos preconceituosos em grupanálise quando se impõe a necessidade de decisão sobre o terminus de uma Grupanálise.

Trata-se de um momento que se constitui como porta aberta para um conjunto de importantes questões teóricas, clínicas e técnicas. O caso é que a problemática da escolha de modelos teóricos, do estabelecimento dos critérios para por fim ao processo analítico e dos objectivos dos resultados terapêuticos não está isento de posições eventualmente preconceituosas.

A grupanálise tem uma duplicidade de objectivos: método de investigação em sentido estrito e método terapêutico em sentido lato. A grupanálise como método de investigação problematiza e define as condições para o desencadeamento e estabelecimento do processo não havendo limites à exploração analítica.

Se perspectivarmos a grupanálise como processo terapêutico há razões óbvias que nos permitem afirmar ter ela o propósito de obter mudanças no mundo interior do paciente e na expectativa de que elas lhe permitam conduzir às melhores condições psicológicas possíveis para as funções do ego.

Começarei minha exposição por descrever aspectos mais significativos da fase terminal de uma grupanálise a que me permito juntar fragmentos de comunicações de uma paciente que atravessava essa fase e me parecem exemplificativos de tal vivência, discorrendo em seguida sobre o preconceito na teoria grupanalítica, os objectivos dos resultados de uma grupanálise em relação com o sistema de valores de uma sociedade, concluindo com referências ao que considero a postura correcta do analista face ao risco de emergência de preconceitos.

 

Algumas Características Clínicas da Etapa Terminal de uma Grupanálise

A idéia de terminar uma grupanálise em curso, na nossa perspectiva, deverá surgir do analisando e a decisão do terminus será acordada com o grupanalista e desejavelmente comentada no grupo pelos restantes analisandos. Trata-se de uma fase que na nossa experiência decorre por um período de cerca de um ano a ano e meio.

A determinação do ”ponto de irreversibilidade”, designação de Rickman, para a situação em que é alcançado um nível de integração da personalidade e de adaptação que se irá manter após terminado o tratamento é função de um conjunto de indicadores unicamente valorizáveis quando surgindo de modo espontâneo.

Destacamos como indicadores da etapa terminal apontados por Rickman: a capacidade de auto-análise, de tolerar a frustração libidinal e a privação (sem defesas regressivas nem angústia), a capacidade para a satisfação genital heterossexual, a de tolerar os impulsos agressivos em si mesmo e nos outros (sem perca do amor objectal e sem sentimentos de culpa), a capacidade para o luto, a remoção da amnésia infantil e a elaboração do complexo de Édipo. Um dos indicadores mais óbvios consiste na modificação da intensidade e freqüência dos sintomas ou mesmo na sua completa desaparição.

Um aspecto a realçar nesta fase relaciona-se com as características dos sonhos, reveladora, como refere Meltzer, de uma integração dos diferentes aspectos da personalidade e ainda a recorrência da temática da separação.

Clinicamente a decisão do terminus parece constituir-se como um novo traumatismo que reactiva no presente ansiedades antigas que vão adquirindo novos significados freqüentemente representáveis em sonhos de despedida. A capacidade de diálogo alarga-se sendo mais frontal e espontânea verificando-se uma acentuação de uma forma de linguagem que oscilando entre as características do processo primário de pensamento e o seu contrário, o processo secundário, resulta na síntese dialéctica de dois contrários. Estamos a referir ao que J. A. Silva designa por comunicação metadramática, enfatizando nela o estabelecimento de um diálogo sustentado por uma capacidade de plena liberdade de pensar e de expressar vivências com alargamento do espaço de imaginação e do espaço interno de dúvida optativa. De acentuar que nesta forma de linguagem os aspectos do racional com finalidades lúcidas e realistas estão presentes. Em termos foulkesianos e socorrendo-nos da sua metáfora da escada da comunicação. poderíamos dizer como aponta Rita Leal, estar perante a possibilidade de a subir e descer sem entraves, do que resulta uma acentuada flexibilização da comunicação.

Nesta fase os objectivos alcançados clarificam-se, assiste-se a uma mudança das características da transferência que se converte em nitidamente edipiana positiva, surgindo uma capacidade de auto-análise e uma marcada acentuação de entendimento empático dos outros bem como uma constelação de comunicações sugestivas da efectivação de um luto expresso por uma desistência das representações idealizadas e omnipotentes do self.

A noção da temporalidade do processo surge de modo ora doloroso ora eivado de profunda satisfação: trata-se da elaboração da separação, do adeus aos companheiros no longo caminho de descoberta, da separação do grupanalista, mas também da aspiração a uma nova forma de estar na vida que se espera permita manter o sentido consolidado da identidade nas dimensões subjectiva e sexual bem como o sentimento de estabilidade narcísica.

Como nota à margem do que acima brevemente apontei, e na intenção de evidenciar alguns aspectos da fase terminal de uma grupanálise, registro um apontamento de comunicações de uma paciente que integra um grupo aberto-lento, que se realiza três vezes por semana.

A referida paciente fizera anteriormente uma psicoterapia face a face por um período de três anos. Em situação grupanalítica ao cabo de cerca de sete anos pensa pela primeira vez na hipótese de terminar a terapêutica sendo então invadida por um estado afectivo de intensidade quase insuportável que descreve posteriormente como “que com a ideia de separar-se do grupo perdesse uma parte de si própria, como se se instalasse em si própria um buraco”. Apercebe-se então que sentimento idêntico lhe era familiar quando da vivência de separações de objectos significativos e que procurava colmatar a dolorosa situação socorrendo-se do estabelecimento de relações afectivo sexuais ou do recurso episódico a consumo de álcool em excesso. Desta feita ocorreu-lhe a idéia de que estava na iminência de início de nova relação afectivo-sexual repetindo um comportamento que lhe era habitual em circunstâncias similares facto que a levou a contrariar tal impulso. Significamos o ocorrido como um recurso a um objecto aditivo numa personalidade em que me foi patente ao longo dos anos de análise, de uma ausência de representações parentais securisantes que a incapacitaram de se auto-assegurar nos momentos em que vivenciava afectos insuportáveis de solidão ou de depressão.

Após a sessão em que fala da idéia de terminar o processo terapêutico e face à nossa anuência é invadida pelo desejo de adoecer fisicamente e ser cuidada, o que espontaneamente interpreta como o desejo de se instalar em situação regressiva.

Efectivamente alguns dias depois adoece fisicamente e de maneira breve fazendo alusões a um processo de sumarização. Acentua, contudo que deliberadamente não recorreu ao apoio dos amigos, recusando-se deste modo a ceder aos apelos regressivos. Fez posteriormente considerações sobre a capacidade de estar só.

Ao longo dos meses que se seguiram referiu que se sentia como uma criança face a um puzzle: ia juntando peças que iam adquirindo novos significados, com a sensação de repetir ali episódios a que estabelecia espontaneamente correspondência no passado. Tinha a sensação de estar fazendo “uma revisão de matéria dada em ritmo acelerado”. Referiu que “agora que já não tinha os pais vivos se apercebia que dentro dela eles pareciam continuar a maltratá-la e parecia que necessitava tirá-los de dentro de si própria e de lhes dizer Não”.

Este insight surge quando da elaboração de um sonho em que se vê culpabilisada e desvalorizada por um conjunto de bispos no interior de uma catedral. Neste período relata sonhos cuja temática parecia reportar-se à separação.

Numa de suas últimas comunicações refere: “Sinto-me calma; sem ser assaltada por pensamentos que me confrangem diminuindo-me ou culpabilisando-me, as vozes dos bispos, dos meus pais e, por vezes, aquelas que imagino vir a encontrar aqui no grupo, mas que não se confirmam. Tenho trabalhado com rendimento e sinto-me bem sem estar eufórica. A grupanálise é um bom método embora não seja aquilo que imaginei no início, ou seja, entrar Consuelo e sair Pilar. Há mudanças em mim; mas não sei é se serão duradoiras”.

E olhando-me: “A Doutora já não é para mim Deus, mas também não é o Diabo e Eu tenho os meus limites; não sou tão grande quanto desejei, nem tão pequena como acreditava”.

E afectuosamente dirigindo-se ao grupo: “sinto necessidade de expressar gratidão ao grupo”.

Na fase final é frequente o analista e por vezes alguns analisandos reflectirem sobre os limites das possibilidades das atitudes do terapeuta, dos pacientes e do método analítico. Recordemos que Freud em Análise terminável e Interminável apontara como limites à analise as características do analisando, a natureza do processo analítico e as limitações do ego do analista (FREUD,1937). Este período final pode, pois, provocar decepções e ser fulcro de alguma vulnerabilidade narcísica para ambas as partes, analista e analisandos.

Para o grupanalista esta é uma fase em que frequentes obstáculos conflitualisam sua postura, e o risco de passagem ao acto contratransferencial é frequente. Exemplifiquemos: sentimentos dolorosos que podem anteceder a eminência de separação do analisando, frustração face à eventualidade de não obtenção da expressão de gratidão ou face à vivência de perca de uma relação quando ela poderia proporcionar uma prazerosa sensação de quase paridade.

A experiência analítica não proporciona conforto sobre problemas como o sentido da vida e os limites do que se pode saber. Na etapa final de uma grupanálise o terapeuta pode sentir-se pressionado a reflectir sobre questões existenciais, os valores da vida, o bem e o mal e sobre a verdade. As divagações de cariz filosófico nas vertentes ontológica, ética e epistemológica, na interface da metapsicologia, podem surgir.

É justamente atendendo a estas últimas considerações que nos permitimos continuar nosso trabalho reflectindo sobre o preconceito na teoria grupanalítica, os objectivos dos resultados de uma Grupanálise e a eventual relação com o sistema de valores de uma sociedade.

Inicialmente o processo terapêutico psicanalítico foi pensado em função dos pacientes que se admitia terem a ele acesso: pacientes de patologia neurótica.

De acordo com os diferentes temas que se foram abordando sucessivamente, em diferentes períodos do desenvolvimento histórico da psicanálise, foi-se alargando o leque de acessibilidade à terapêutica psicanalítica ao mesmo tempo em que a atitude face aos objectivos do processo se foi dilatando, não sendo, contudo, consensual a definição da extensão e profundidade possíveis de atingir.

Recordemos que no seu artigo de feição testamentária “Análise terminável ou Interminável” Freud (1937) evidencia algum pessimismo quanto às potencialidades terapêuticas da Psicanálise. Face à dificuldade de se estabelecerem os limites dos efeitos terapêuticos e à definição dos seus objectivos Freud acaba por os formular em termos Metapsicológicos; o objectivo de uma análise será tornar consciente o inconsciente de modo a que onde estava o id passará a estar o ego.

Contornando a dificuldade em definir os efeitos terapêuticos definem-se, pois os objectivos em termos do processo: as mudanças psíquicas poderão então ser entendidas referenciadas a perspectivas teóricas diferentes (freudiana, da psicologia do ego, kleiniana, da relação de objecto, da psicologia do self). A definição dos objectivos estará então dependente da escolha do modelo terapêutico sendo de realçar, como o faz Etchegoyen, que apesar da diversidade de teorias e de técnicas na prática clínica há um acordo bastante amplo em relação à avaliação dos processos do paciente.

Na nossa experiência para determinação do terminus da análise valorizamos a obtenção do equilíbrio estético conceptualizado por Cortesão que pressupõe um processo de maturação psíquica com compreensão dos conflitos e fantasias infantis, bem como um processo de luto, de desistências a ligações a objectos antigos, de necessidades arcaicas e de fantasias em que predominam imagens megalómanas de si próprio. Caracteriza-se este equilíbrio estético por uma menor distorção das representações objectais as quais se aproximam mais do objecto real “havendo uma maior capacidade de separação e uma progressiva aquisição da identidade”, como disse Cortesão (1969).

Tendo em vista o alargamento do leque de patologias com possibilidade de abordagem grupanalítica acrescentamos também como objectivo da análise o acesso aos núcleos mais perturbados da personalidade (psicóticos, caracteriais e psicossomáticos) com a sua respectiva elaboração.

 

O Preconceito na Teoria grupanalítica

Actualmente em grupanálise confrontamo-nos por um lado com uma pluralidade de conceptualizações teóricas que implicam uma diversidade de objectivos constituindo-se como fonte de uma multiplicidade de identidades profissionais na prática clínica, e por outro lado com uma falência de uma hermenêutica especifica de que resulta, como, aliás, nos refere Guilherme Ferreira, uma abordagem terapêutica eminentemente pragmática.

Entre nós demarcando-se da perspectiva foulkesiana, referirei a abordagem teórica de Cortesão e de Maria Rita Leal, e, mais recentemente, Guilherme Ferreira, que lança a hipótese do estabelecimento de uma metateoria grupanalítica.

Não estando no âmbito deste trabalho o desenvolvimento teórico destas conceptualizações direi muito sinteticamente que nestas diversas abordagens do conceito de grupanálise há aportes muito significativos de novos conceitos como o de Padrão e de matriz relacional interna e aprofundamento na definição de matriz grupal inicialmente feita por Foulkes.

Por outro lado surgem divergências quanto à ênfase concedida às teorias que enformam a grupanálise (psicanalítica e da comunicação) quanto à existência, possibilidade e oportunidade de elaboração da neurose de transferência no grupo e finalmente quanto à natureza do instrumento terapêutico e dos objectivos a atingir.

No processo grupal entram em jogo três entidades, uma ligada ao sujeito, outra ligada ao objecto propriamente dito e a terceira que está em relação com as duas primeiras e que permite os processos de interacção. Nesta perspectiva Guilherme Ferreira socorrendo-se do conceito de matriz relacional interna de Maria Rita Leal, do conceito de matriz do grupo definido por Foulkes e aprofundado por Cortesão, e do conceito de Padrão enunciado por Cortesão, vai propor (2003) que da interacção destas três entidades se poderia resolver a neurose de transferência que cada um dos elementos do grupo desenvolveu no decurso da grupanálise, o que permite falar-se de cura grupanalítica. Para Guilherme Ferreira os conceitos acima mencionados explicam a teoria da técnica grupanalítica e permitem dar também uma explicação do funcionamento dos indivíduos em qualquer situação grupal, pelo que poderiam constituir o eixo de uma metateoria grupanalítica.

Perante uma tão grande diversidade de conceptualizações qual a escolha teórica a fazer quando nos encontramos face a um paciente e face à responsabilidade de actuar como terapeuta de grupo? Porque fazemos tal ou tal escolha?

Sabemos que a escolha de uma teoria, referenciadora de uma actuação, nos vincula ao que deve ser avaliado e aos objectivos a atingir podendo estes estar mais ao menos explícitos.

Actualmente a relação entre ciência e realidade é questionada. De acordo com esta nova visão a ciência opera não numa base de objectividade, mas numa perspectiva conceptual: a observação é compreendida como cheia de teoria. A ciência toma como certas algumas premissas bascas, em ultima análise não testáveis.

Será deste modo a nossa maneira de pensar, a nossa compreensão, que determinam o que provavelmente vai ser tomado como facto, ou seja, determinamos como e o que observamos. Neste tipo de abordagem, as contribuições de Thomas Khun são aplicáveis aos modelos teóricos psicanalíticos em que a preocupação fundamental é a de resolução de problemas.

Então se arquitectam modelos ou paradigmas explicativos que não são mais do que maneiras de ver o mundo mais ou menos úteis para a resolução de problemas. Cada paradigma corresponde a uma constelação de crenças, de compromissos cognitivos, de técnicas e de valores que são partilhados por todos os membros de uma comunidade cientifica. Os paradigmas são modelos da realidade e inspiram lealdades. Cada paradigma está votado à extinção por emergência de novos paradigmas. A ciência evolui pela emergência de diferentes paradigmas.

Ornstein e Kay (1990), usando os conceitos de Khun referem um transitar de paradigmas ao longo do desenvolvimento histórico da psicanálise, admitindo que as principais escolas psicanalíticas trouxeram modificações notáveis aos conceitos freudianos de base. De modo que se poderia falar de um transitar do modelo freudiano da psicologia para o da psicologia do ego e deste para a teoria das relações de objecto e por fim para a teoria do self.

J.McDougal, porém afirma não haver mudança paradigmática verdadeira na teoria psicanalítica a menos que consideremos as categorias diagnósticas como fazendo parte do paradigma. A propósito lembro-me que quando iniciei minha prática grupanalítica era exigido o manejo de um grupo exclusivamente constituído por neuróticos para validação da experiência grupanalítica.

Hoje os nossos colegas validam a sua prática com grupos que integram um leque de patologias bem mais amplas e numa frequência semanal de duas sessões quando a frequência requerida anteriormente era no mínimo de três.

A patologia borderline e narcísica prolifera entre nossos pacientes. Os problemas mais investigados dizem respeito à complexidade narcísica e à natureza do pensamento psicótico. O largo leque de patologias que a nós recorre motivou um repensar de nossos conceitos teóricos, clínicos e técnicos com introdução de inovações.

Cabe neste contexto breve referência a aspectos do desenvolvimento teórico da psicanálise numa visão histórica que de algum modo exemplifique o eventual factor preconceituoso de algumas teorias ou preceitos técnicos.

Permitam-me que relembre aqui como a expansão das teorias freudianas nos anos de 1906 a 1960 nos E.U.A. reflectiu aspectos da cultura então ali vigente: a oscilação entre um ideal religioso em relação com a utopia dos pioneiros e um pragmatismo médico e adaptativo expresso pelo neo-freudismo emergente da emigração européia.

De uma maneira geral a psicanálise americana privilegiou o ego em detrimento do inconsciente e procurou na teoria freudiana um meio de adaptar o indivíduo à sociedade. Não representará a psicologia do ego o pragmatismo forjado essencialmente pelos emigrantes desejosos de se integrarem na sua nova terra prometida? Interroga Roudinesco (2000) em interessante artigo. Em relação aos preceitos da técnica lembrarei aqui como evoluiu historicamente a perspectivação da postura do analista e da compreensão da contratransferência, talvez reveladora de atitudes preconceituosas que se foram diluindo com o andar do tempo.

Classicamente entendia-se que no decurso do trabalho analítico o terapeuta deveria manter-se neutro e a contratransferência a nível mínimo, e entendida como resultante de conflitos não resolvidos e de pontos cegos do analista. Nesta visão tradicional a compreensão teórica e a intuição seriam mais valorizadas que a capacidade empática do analista.

Actualmente insiste-se na importância da relação resultante de uma interacção num campo intersubjectivo e interpessoal. A contratransferência uma vez elaborada constitui-se como factor de apoio à progressão do processo analítico. Os fenômenos transferenciais e contratransferenciais são indissociáveis contribuindo ambos para a evolução do processo. A contratransferência é especifica da relação terapêutica, como fenómeno normal sem características neuróticas.

Entre nós Cesar Dinis (2000) expressa a opinião de que a atenção concedida à contratransferência em grupanálise precede a transferência na medida em que, quando da selecção de elementos para constituírem um grupo, o escrutínio da contratransferência é fundamental para se evitarem situações de acentuada discrepância grupal no plano da empatia.

Pelo que acima referi caminhou-se do sentido de uma preocupação inicial pela reconstrução histórica e pelo intrapsíquico, passando pela ênfase nas relações objectais internalizadas e respectivas fantasias, culminando-se na observação da relação e do processo de comunicação, num transitar de paradigmas (pulsional histórico, objectal fantasmático e por ultimo vincular dialéctico).

Zimerman recentemente, numa notável conferência (2004) deu-nos conhecimento de mudanças introduzidas na sua prática clinica, quanto a nós, indiciadoras de libertação de atitudes preconceituosas. Para este autor a grupanálise é uma terapia com o grupo, sendo o estímulo à capacidade de pensar dos analisandos algo de fulcral, pelo que não restringe o trabalho grupanalítico aos aspectos do inconsciente, enfatizando o que designa por análise do consciente dinamizando o desenvolvimento do funcionamento do ego consciente nas suas diferentes funções (De percepção, de atenção de juízo crítico, de discriminação, conhecimento e enfrentamento de verdades, etc.).

Revelou ainda este autor uma tendência à atenuação do empolamento redutor da interpretação transferencial focando o material surgido no “aqui e agora e comigo” da sessão e dando maior relevo ao significado dos aspectos extratransferenciais do cotidiano da realidade externa do analisando.

A inteligência, a apurada sensibilidade e a liberdade interior de Zimerman permitiram pensar, fantasiar, contestar e inovar criativamente aspectos consagrados da técnica grupanalítica alguns dos quais certamente com raízes preconceituosas.

Lembremos, pois que ao socorrer-nos de uma teoria representada por uma série de postulados ela corresponde a modelos conceptuais, a hipóteses de trabalho, ou seja, cada teoria não é uma lei e está inevitavelmente sustentada por um sistema de valores.

Lembremos também que nossas escolhas teóricas são intensamente condicionadas por motivações pessoais conscientes, pré-conscientes ou inconscientes, em íntima conexão com um contexto linguístico, cultural e social.

Aspecto a salientar e que diria que é de certo modo específico da nossa actividade, e se relaciona com os nossos processos de formação diz respeito ao aprofundamento e intensificação dos riscos do exercício daninho de sequelas de afectos transferenciais positivos ou negativos surgidos no decurso das análises didácticas e das supervisões. que é de certo modo específico da nossa actividade, e se relaciona com os nossos processos de formação diz respeito ao aprofundamento e intensificação dos riscos do exercício daninho de sequelas de afectos transferenciais positivos ou negativos surgidos no decurso das análises didácticas e das supervisões.

Tais afectos emergem muitas vezes em discussões em que as divergências surgem temperadas por tonalidades de sacralização e de culto por personalidades ou conceitos em que a teoria se eleva ao grau de doutrina.

 

Objectivos dos Resultados de uma Grupanálise e o Sistema de Valores de uma Sociedade

A avaliação dos objectivos dos resultados terapêuticos de uma grupanálise é importante para a sobrevivência da grupanálise como método terapêutico e introduz o problema da definição dos critérios de avaliação dos resultados surgindo a necessidade de nos empenharmos em demonstrar o valor da grupanálise com estudos de resultados cientificamente credíveis face às autoridades responsáveis pela saúde mental. Há necessidade de estabelecimento de um protocolo de investigação com a colaboração de ciências na interface da nossa.

Este trabalho que iria pôr-nos em desejável comunicação com o mundo científico envolvente acarreta-nos uma dificuldade que se deveria ter em consideração, mas que pensamos poder ser superável: é que o nosso centro de interesse é o estudo e mudança do mundo interno dos pacientes, enquanto que o que nos é pedido pelas autoridades de saúde mental e companhias de seguros que por vezes comparticipam economicamente nossa actividade, é uma resposta dirigida a fenómenos exteriores e objectivos, trata-se essencialmente do contraste entre duas visões de saúde mental, uma dinâmica e a outra estática.

Por outro lado a definição de objectivos dos resultados é influenciada pelas novas experiências da prática clínica pelo que seja talvez lícito concluir que nenhum objectivo deva ser considerado como definitivo e perfeitamente determinado.

As teorias pos-freudianas acrescentaram novas intenções psicanalíticas relacionadas com a abordagem de patologias cujo fulcro se circunscreve à patologia da falta e não do conflito às quais se incorporaram aos valores freudianos consagrados pela psicanálise, como adaptação à realidade, a aquisição de um ego autónomo e estável, estabilidade das relações objectais, realização da genitalidade e a satisfação narcísica. Os indicadores do terminus da análise relacionam-se intimamente com estes objectivos.

Na intenção de adaptação à realidade há o pressuposto do conceito de Realidade que sabemos mutável, já que resultante de uma construção criada pelo discurso dos pais e pelo discurso da sociedade em que eles se integram.

É nos pois lícita a interrogação de que concepção de Realidade nos servimos e em relação a que critérios a definimos? Do mesmo modo podemos objectar em relação ao conceito de saúde narcísica, de ego autónomo e de estabilidade das relações objectais.

O analista está inevitavelmente condenado a questionar os desvios às normas vigentes que a sociedade impõe, fundamentando-se em valores éticos que com razão ou sem ela são considerados necessários à sua sobrevivência. Interrogar-se-á sobre os limites além dos quais um comportamento desviante da média indiciará necessariamente uma patologia, e nesse sentido, quantos dos objectivos de resultados de uma grupanálise não reflectirão uma concepção omnipotente e de idealização do self ou uma submissão a valores sociais e políticos?

Se considerarmos que o objectivo específico de uma psicanálise é a procura da Verdade de cada indivíduo que lhe permita um agir em consonância com seu próprio ser, então poderemos admitir que esta intenção estará menos contaminada pelo sistema de valores preestabelecido, mas restar-nos-á a melindrosa tarefa de definir a verdade.

Para Bion a possibilidade de reconhecimento da verdade evidencia-se pelo impacto da emoção que a confirma; então o objectivo fundamental da grupanálise terapêutica será revelar a realidade psíquica nestes termos. Surge, no entanto um entrave a este desiderato: os valores sobre a verdade e a realidade têm um carácter normativo e o perigo de impormos valores de natureza moral, religiosa, estética e política espreita-nos podendo impedir que cada analisando descubra seus próprios valores e os assimile ou modifique.

Outra fonte de possíveis atitudes preconceituosas e que atinge muito especificamente o estabelecimento dos resultados dos objectivos de uma grupanálise relaciona-se com a dificuldade em definir de modo coerente o que se entende por saúde mental e em que consiste a normalidade mental.

Normalidade e saúde não são necessariamente concordantes, e não será uma certa quantidade de anormalidade essencial para a saúde mental? (TELLENBACH,1987).

Sabemos que não há concordância directa entre bem estar e saúde mental. Antonowski (1987) põe em questão a idéia de que a saúde seja um estado de normalidade. De notar que Freud perante a dificuldade em definir a normalidade o fez em termos metapsicológicos.

 

Concluindo

Será de ter presente que a grupanálise em sentido lato é um método de investigação dos processos que se desenvolvem num grupo, neste sentido proporciona ao terapeuta um campo grupal de observação de experiências emocionais. A aprendizagem será a resultante da conjugação dos dados experienciados e da sua ligação a teorias já estabelecidas. Os conhecimentos teóricos são importantes e o nosso trabalho exige uma sólida formação teórica com um conhecimento aprofundado da metapsicologia que nos permita a abordagem de situações aparentemente caóticas. A filosofia nos diz que na prática científica alguns princípios fundamentais de forma inconsciente e invisível controlam e comandam a organização do conhecimento e a própria utilização da lógica (KHUN) e que a teoria científica deve permitir que a sua falsidade possa ser eventualmente demonstrada (POPPER). É a partir dos dados que observamos que podemos estabelecer hipóteses; o problema a evitar consiste no estabelecimento de fidelidades que nos façam tomar teorias por doutrinas que bloqueiem a capacidade de liberdade interior, que permite o usufruir do enriquecimento de novos aportes que afortunadamente a observação pode por vezes proporcionar. Cada um de nós no exercício do trabalho grupanalítico está continuamente ocupado numa actividade de investigação, de construção e de desconstrução de hipóteses, de teorias e de interpretações: ou seja, a construção de teorias representa uma parte fundamental da compreensão do processo. Nesses trâmites surge a necessidade de encontrar um equilíbrio entre a teoria e a prática, que nos permita seguir uma linha teórica de raciocínio e ao mesmo tempo eventualmente renunciar a ela. Na verdade é requerida ao grupanalista uma prática de liberdade e criatividade, sem intelectualização excessiva, melhor dizendo, uma capacidade de introdução no processo grupanalítico de uma área de transição e de jogo em sentido winnicottiano. O terapeuta terá, pois, de em seu amadurecimento psíquico permitir-se fantasiar e pensar livremente num trabalho essencialmente activo, temerário, por vezes paradoxal, de modo a que possa eventualmente transgredir a ortodoxia, ousar, questionar, contestar e inovar criativamente. O que se espera de nós é que não incorporemos posições teóricas, mas que face a elas, e no seu processo de entendimento no decurso da acção clínica, não abdiquemos de uma escuta atenta às nossas próprias associações cognitivas e afectivas num processo de reverberação que fundamentalmente nos permita que nos identifiquemos aos objectivos da psicanálise: a investigação da verdade no analista e no analisando.

Será de ter presente que a grupanálise em sentido lato é um método de investigação dos processos que se desenvolvem num grupo, neste sentido proporciona ao terapeuta um campo grupal de observação de experiências emocionais. A aprendizagem será a resultante da conjugação dos dados experienciados e da sua ligação a teorias já estabelecidas. Os conhecimentos teóricos são importantes e o nosso trabalho exige uma sólida formação teórica com um conhecimento aprofundado da metapsicologia que nos permita a abordagem de situações aparentemente caóticas. A filosofia nos diz que na prática científica alguns princípios fundamentais de forma inconsciente e invisível controlam e comandam a organização do conhecimento e a própria utilização da lógica (KHUN) e que a teoria científica deve permitir que a sua falsidade possa ser eventualmente demonstrada (POPPER). É a partir dos dados que observamos que podemos estabelecer hipóteses; o problema a evitar consiste no estabelecimento de fidelidades que nos façam tomar teorias por doutrinas que bloqueiem a capacidade de liberdade interior, que permite o usufruir do enriquecimento de novos aportes que afortunadamente a observação pode por vezes proporcionar. Cada um de nós no exercício do trabalho grupanalítico está continuamente ocupado numa actividade de investigação, de construção e de desconstrução de hipóteses, de teorias e de interpretações: ou seja, a construção de teorias representa uma parte fundamental da compreensão do processo. Nesses trâmites surge a necessidade de encontrar um equilíbrio entre a teoria e a prática, que nos permita seguir uma linha teórica de raciocínio e ao mesmo tempo eventualmente renunciar a ela. Na verdade é requerida ao grupanalista uma prática de liberdade e criatividade, sem intelectualização excessiva, melhor dizendo, uma capacidade de introdução no processo grupanalítico de uma área de transição e de jogo em sentido winnicottiano. O terapeuta terá, pois, de em seu amadurecimento psíquico permitir-se fantasiar e pensar livremente num trabalho essencialmente activo, temerário, por vezes paradoxal, de modo a que possa eventualmente transgredir a ortodoxia, ousar, questionar, contestar e inovar criativamente. O que se espera de nós é que não incorporemos posições teóricas, mas que face a elas, e no seu processo de entendimento no decurso da acção clínica, não abdiquemos de uma escuta atenta às nossas próprias associações cognitivas e afectivas num processo de reverberação que fundamentalmente nos permita que nos identifiquemos aos objectivos da psicanálise: a investigação da verdade no analista e no analisando.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTONOWSKI, A. (1987)Unraveling the Mystery of Health. How People Manage Stress and Stay Well. San Francisco. Jossey-Bass, 1987.        [ Links ]

BION, W. (1974) L’Attention et L’Interpretation. Paris: Payot. 1974.________ (1982) Transformations. Paris: Puf, 1982.        [ Links ]

CORTESÃO, E. L. (1969) Grupanálise - Teoria e Técnica. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.        [ Links ]

DINIS, C. V. (2000) Desejo e Perda na Contratransferência.Revista Portuguesa de Grupanálise, n.1: Lisboa, 2000.        [ Links ]

ETCHEGOYEN, R.H. (1989) Fundamentos da Técnica Psicanalítica. Porto Alegre: ArtMed, 1989.        [ Links ]

FERREIRA, G. (2000) A Grupanálise no dealbar do Século XXI. Revista Portuguesa de Grupanálise, n.1, Lisboa: 2000.        [ Links ]

FERREIRA, G. (2004) O Problema e a Procura de uma Metateoria em Grupanálise. Revista Portuguesa de Grupanálise, n.1. Lisboa: 2004.        [ Links ]

FREUD, S. (1937) Análisis Terminable e Interminable. Madrid: Biblioteca Nueva, 1987.        [ Links ]

LEAL, M. R. (1963-1993) Problemas da Alta em Psicoterapia de grupo e Grupanálise. In Grupanálise - um percurso. Lisboa: Publicação da SPG, 1994.        [ Links ]

MCDOUGALL, J. (1996) Éros aux mille et un visages. Paris: Éditions Gallimard, 1996.        [ Links ]

MELTZER, D. (1968) The Psycho-Analytical Process. Londres: Heinemann, 1968.         [ Links ]

ORNSTEIN, P.H.; KAY, J. (1990) Development of Psycho analytic Self Psychology: a historical-conceptual overview, 1990.        [ Links ]

RICKMAN, J. (1950) On the criteria for the termination of an analysis, International J. of Psychoanalysis, v. 31, 1950 pp 200-01.        [ Links ]

ROUDINESCO, E. (2000) L’AmeriqueFreudienne1906-1960 (Hors-série) Freud et ses Héritiers. Magazine Littéraire.Paris: 2000.         [ Links ]

SILVA, J. A. (1994) Comunicação Metadramática. Interpretação Grupanalítica. Revista Portuguesa de Grupanálise. Lisboa: Setembro, 1994.        [ Links ]

TASMAN; GOLDFINGER; KAUFFMAN (eds) (1990). American Psychiatric Press. Annual review of psychiatry,. Washington, dc: American Psychiatric Press, 1990.        [ Links ]

TELLENBACH, H.(1987).Phenomenology of the state of health and its consequences for the physician.Eur.J.Psychiat,1, 1987, pp.48-56.        [ Links ]

ZIMERMAN, D. E. (2004) As transformações na minha forma pessoal de praticar a grupanálise ao longo de uma experiência de mais de 40 anos. Conferência apresentada no II Congresso da EFPP, Lisboa 2004. Publicado in FERNANDES, W. J.; SVARTMAN, B.; FERNANDES, B. S. (2003) Grupos e configurações vinculares. Porto Alegre: Artmed, 2003, 303p.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: saraferro@netcabo.pt

Recebido em 04/12/2005
Aceito em 14/03/2006

 

 

1 Médica psiquiatra e grupanalista. Membro efetivo da Sociedade Portuguesa de Grupanálise.

Creative Commons License