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Vínculo

Print version ISSN 1806-2490

Vínculo vol.3 no.3 São Paulo Dec. 2006

 

ARTIGOS

 

O desenho como recurso auxiliar em psicoterapia de grupo com crianças

 

Drawing as an additional resource in chindren's group psycotherapy

 

El dibujo como recurso auxiliar en psicoterapia de grupo con niños

 

Beatriz Silverio Fernandes1

NESME – Núcleo de estudos em saúde mental e psicanálise das configurações vinculares
SPAGESP – Sociedade de psicoterapias analíticas grupais do estado de São Paulo

Endereço para correspondência

 


RESUMO

O objetivo deste trabalho é refletir sobre o funcionamento de um grupo infantil, cujos participantes têm idades entre 6 e 8 anos, que utiliza a linguagem do desenho como elemento de trabalho. Como as crianças agem no grupo, como expressam seus conflitos e como se desenvolvem, tendo como objeto de estudo a linguagem gráfica e os sentimentos contratransferenciais.

Palavras-chave: Grupo, Crianças, Desenho, Psicoterapia.


ABSTRACT

The purpose of this work is to investigate the activity of a children's group therapy, in which participants are in between 6 and 8 years old, and use the language of drawing as an element of work. How the children interact in the group, how they express their conflicts and how they develop are points considered, bearing in mind the graphical language and feelings of countertransferences.

Key words: Group, Children, Drawing, Psychotherapy.


RESUMEN

El objetivo de este trabajo es reflexionar sobre el funcionamiento de un grupo infantil cuyos participantes tienen entre 6 y 8 años de edad, utilizando el lenguaje del dibujo como elemento de trabajo. Cómo reaccionan los niños en el grupo, cómo expresan sus conflictos y cómo se desarrollan, teniendo como objeto de estudio el lenguaje gráfico y los sentimientos contratransferenciales.

Palabras clave: Grupo, Niños, Dibujo, Psicoterapia.


 

 

Introdução

O objetivo deste trabalho é refletir sobre o funcionamento de um grupo infantil, cujos participantes têm idades entre 6 e 8 anos, que utiliza a linguagem do desenho como elemento de trabalho. Discutirei sobre como as crianças agem no grupo, como expressam seus conflitos e como se desenvolvem, tendo como objeto de estudo a linguagem gráfica e os sentimentos contratransferenciais.

O desenho, dentro da psicoterapia de grupo com crianças, está presente em meu trabalho clínico, quase que em todas as sessões. As crianças de 4 a 12 anos, em geral, desenham com muita freqüência e facilidade. Falam pouco, isto é, utilizam mais a linguagem gráfica que a verbalização.

Observa-se que as crianças não se apegam as suas obras de arte; quando o fazem, é em função da influência do adulto. Depois de certo tempo de execução do desenho (4 a 5 meses) não vêem mais valor em suas produções. Utilizam-nas como um objeto dado ou como um pertence, mas não se reconhecem nele, com freqüência.

Foi baseada em observações como estas que um universo filosófico de questionamentos e dúvidas preencheu minha mente. O que é o desenho para as crianças? Para que serve? E, dentro da Psicoterapia Analítica de Grupo infantil, qual a síntese de seu emprego?

Revendo alguns autores, algumas obras relacionadas ao uso do desenho como recurso no trabalho analítico e revirando meu baú de desenhos grupais, comecei a reparar nos desenhos de crianças que evoluíram e involuíram nos grupos; separei alguns, de crianças entre 5-7 anos e levantei algumas questões pertinentes ao emprego do material gráfico na elaboração e integração dos grupos.

 

Desenvolvimento

A criança é um ser ainda em crescimento que merece, assim como o adulto, toda nossa atenção, compreensão e carinho. Em grupo, como já mencionei em trabalho anterior “ensinam uns aos outros a empregarem uma variedade de materiais e empenham-se em uma diversidade de atividades que estimulam a criatividade” (FERNANDES, 2003, p 232).

Dentro da diversidade de materiais, tintas, papel, lápis e canetas são os preferidos. Desenham, e o desenho “é o modo de expressão da criança, constitui uma língua que possui seu vocabulário e sua sintaxe” (MÈRIDIEU, 1974, p.14).

Um outro elemento que temos que levar em conta - a sessão - é concebida como uma oscilação permanente entre transferência e a relação como uma reinscrição dos afetos pelos dois psiquismos (FERRO, 1995).

Este grupo que escolhi para ser objeto de estudo encontrava-se em atividade há mais de seis meses, com uma sessão semanal de uma hora e quinze minutos de duração, sendo eu a terapeuta.

 

Material analisado

Como mencionei anteriormente, vou me limitar a discutir alguns desenhos de um determinado grupo que chamarei de “Grupo de Anjinhos”, pois é constituído de crianças que apresentam: 1) comportamentos agressivos somente na escola; 2) comportamentos agressivos na escola e em casa; 3) sem comportamentos agressivos.

Trata-se de um grupo de quatro crianças, duas meninas e dois meninos. Uma das meninas acabou ausentando-se por um período, pois perdeu o pai, e a família não conseguia trazê-la.

João, Pedro e Maria (como se pode observar na fig. 1) desenhavam com freqüência garatujas muito primitivas. Cada um criava suas figuras ou criavam coletivamente uma série de figuras. Eram formadas por esferas ou palitos, revelando seus aspectos primários, suas dificuldades de contato com o mundo, sua constante permanência num mundo fantasioso.

 

Fig. 1

 

No que se refere ao conteúdo do imaginário da terapeuta, era difícil entrar em contato com o mundo emocional das crianças, que pouco falavam, repetiam muitos desenhos e não conseguiam criar. Como terapeuta achava-me impotente e um pensamento permeava minha mente - “será que estes encontros servem para alguma coisa?”.

Apenas uma constatação me alimentava. Eram olhares que pareciam me dizer muito, mas em grego ou árabe, idiomas que eu desconheço. Portanto, a linguagem do olhar, das mãozinhas, do desenho, é que permitia alguma comunicação com meus interlocutores; era a mola propulsora do trabalho.

A caracterização foi ficando mais rica, o contato com o mundo real parecia mais presente, suas figuras estavam mais completas (Fig. 2).

 

Fig. 2

 

Comecei, deste então, a desenhar junto com eles e criar histórias sobre os meus personagens, revelando o que eles pensavam. O meu desenho era tão primitivo quanto o deles, mas eram meus, e o pensamento destes meus personagens era fruto de fantasias grupais das crianças (Fig. 3): “Xi, ele não pode jogar, tem o pé torto. Ele queria, mas não pode. Ele é como minha mãe. Quer correr e brincar, comigo, mas não pode”.

 

Fig.3

 

Em outros momentos de sua produção, quando eles já conseguiam falar melhor de seus mundos e os desenhos coletivos começaram a aparecer, surgiram imagens do grupo, o que também revelava crescimento e integração. Observei que apesar de permanecerem no mesmo plano, seus mundos ampliados saíam do quarto fechado e iam para o mundo real externo. Eu também provavelmente saí do meu imaginário, retirei expectativas, entrando mais em contato com eles.

Algumas observações eram constantes nesse trabalho. Num primeiro momento eles estavam impossibilitados de associar os desenhos aos seus conteúdos imaginários, mas na medida em que era eu quem desenhava, eles iam associando mais facilmente. Juntavam-se ao meu redor e falavam todos juntos, querendo dar suas colaborações.

Gradativamente foram tomando posse de seus lápis, canetas e papéis e puderam começar eles mesmos a construir seus desenhos e suas histórias. Introduziram cores.

Apesar de o grupo estar vivendo um clima de separação, percebemos uma evolução: a presença do pai e da mãe (Fig. 4) ou do sol e da terra - o sol como representante da figura paterna e a terra, da mãe.

 

Fig.4

 

Após as férias, quando retornaram, retomaram seu trabalho com outra perspectiva, outra estética e outro colorido.

Cheguei a me ver, em algumas ocasiões, como um outro membro do grupo - eu desenhava sem muito conteúdo intelectual ou atenção seletiva. Eu apenas desenhava e parece que retomava minha posição de terapeuta à medida que tinham início as histórias sobre os personagens desenhados.

Interpretava as histórias dos desenhos, como por ex.: “Joãozinho fica triste, com raiva, com a possibilidade da mamãe dele não poder brincar junto, de estar sempre ao seu lado, tanto para ajudá-lo como para protegê-lo”.

Durante algum tempo, eu não conseguia escrever ou falar desse grupo, pois sentia estar fazendo algo fora da técnica, errado, mas o resultado era positivo: os “anjinhos” estavam mais tranqüilos na escola. Com algumas orientações aos pais, a família parecia mais integrada e menos tensa, em relação à possibilidade de possuírem um filho com problemas. (Fig. 5)

 

Fig.5

 

Discussão dos fatos observados

Observei com freqüência como o desenho atuava frente às crianças. Algumas vezes percebia claramente que atrás do desenho se escondia uma atividade inconsciente profunda. Ora, sendo assim, penso tratar-se, o desenho, de uma produção no inconsciente do objeto representado. Creio ser também, em outros momentos, a expressão de um gesto mágico e algumas vezes reparador.

M. Klein (Apud DECOBERT; SACCO, 1995, p.15) “supõe que a realidade primeira de uma criança é inteiramente fantasmática”. Sendo assim, quando de posse da magia do desenho pode até projetar partes de seu ego e de seu mundo interno.

WINNICOTT (1996, p.49) dizia que “a partir da metáfora plástica nascida do encontro do pré-consciente do terapeuta e da criança, reabilita-se o sentido inconsciente da produção contida na representação” que, no mundo infantil, não pode ser vinculada à palavra. Observando estas vivências terapêuticas e ligando-as com as influências ambientais e com os processos hereditários de maturação, acabará por firmar-se uma área intermediária entre o mundo externo e interno, que vem a ser de grande importância para a vida da criança hoje e posteriormente, amanhã, quando adulto.

Aliado a este fator, a criança liga as emoções e as experiências de prazer com as percepções e os elementos sensoriais, o que ocorre igualmente na dor e na angústia. Em geral, a imagem produzida é incompreendida a priori, uma vez que precisa ser decodificada.

Com a ajuda do terapeuta e dos demais elementos do grupo, poderemos apreender da figura uma série de representações que irão se configurar numa elaboração fantasmática, posteriormente permeando a realidade exterior e interior de cada um.

Com relação à contratransferência - sendo um trabalho impregnado de instabilidade e fragmentação, em função do psiquismo infantil - provoca-nos ressonâncias do que vai se constituir no alicerce das suas fantasias originárias.

Os aspectos não verbais, corporais, concretos, precedem cada representação. Há que se aceitar esse funcionamento, senão arrisca-se a não poder ligar as camadas não verbais às palavras, nem contribuir para a elaboração das fantasias.

Devemos levar em conta, na contratransferência, o interesse pela plasticidade, o encantamento pela imagem, a tolerância a uma produção carregada de imagens e não verbal. Esse reconhecimento do belo nesta forma de expressão nem sempre é percebido pela criança, mas ajuda na fluência de cada sessão de trabalho e na elaboração.

A nossa tolerância aos vários níveis de funcionamento não pode ser equiparada a nos colocarmos no mesmo plano.

O terapeuta deverá destacar uma disposição para privilegiar a estranheza da relação das palavras e das coisas, assim como acontece na escuta da linguagem materna.

DIDIER ANZIEU (1989, p.44) mostrou a necessidade de levar em conta, na vida psíquica, a existência do que chamou de “significantes formais”, isto é, representações de configurações do corpo e dos objetos do espaço, assim como dos seus movimentos. de constituição precoce, talvez anterior às fantasias. Organizar-se-iam na junção de três séries de fatores: experiências corporais (ritmos, sensações), possibilidades de comunicação da criança e respostas maternas.

 

Conclusão

Creio que agora posso revelar que na época pude ser um bom continente, ser uma figura desintoxicante, deixar-me penetrar e envolver num mundo primitivo para depois poder transmitir algo.

A criação artística e o crescimento psíquico parecem sobrepor-se. Parecem ser processos similares cuja origem pode ser encontrada talvez na posição depressiva precoce. No entanto, para a criança, esta é obrigada a utilizar o objeto para sair da relação fusional, a fim de criar ela mesma e recriar simbolicamente seu mundo.

Segundo Maret-Cogeval e Vuagnat (2000, p. 97) “a identificação projetiva maciça do início cede progressivamente o lugar à identificação projetiva e normal (Bion), chegando, se tudo der certo, a uma afinação harmônica e uma vivência emocional partilhada”.

O vínculo estabelecido entre o grupo e o terapeuta - a continência e a capacidade que ambos podem produzir no sentido de desintoxicar as imagens das crueldades do conteúdo fantasmático - pode ser um recurso inestimável para o desenvolvimento e crescimento emocional.

Foi neste contexto grupal que as mudanças puderam ocorrer. O grupo foi um espaço que conteve toda espécie de desorganização e de organização que, com o decorrer do tempo, em um ambiente carinhoso, puderam tomar como colegas tantos os “anjinhos” como os “diabinhos” e serem as mesmas crianças queridas, tanto de seus familiares, como de seus professores e amigos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DIDIER. A.O Eu-Pele. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1989, 286p.        [ Links ]

FERNANDES, B.S. Psicoterapia de Grupo com Crianças. In: FERNANDES, W.J.; SVARTMAN, B.; FERNANDES, B.S. Grupos e Configurações Vincula­res. Porto Alegre: Artmed, 2003, 303p.         [ Links ]

FERRO, A. A Técnica da Psicanálise Infantil. Rio de Janeiro: Imago, 1995, 224p.        [ Links ]

MARET-COGEVAL, J.; VUAGNAT, F. Criatividade, Criação e Crescimento Psíquico. In: DECOBERT, S.; SACCO, F. O Desenho no Trabalho Psicanalítico com a Criança. Lisboa: Climepsi Editores, 2000, 197p.        [ Links ]

MÉREDIEU, F. O Desenho Infantil. São Paulo: Cultrix, 1975, 115p.        [ Links ]

SACCO, F. Breve Percurso Histórico: Condições Teóricas para a Interpretação do Desenho da Criança pelo Psicanalista. In: DECOBERT, S.; SACCO, F. O Desenho no Trabalho Psicanalítico com a Criança. Lisboa: Climepsi Editores; 2000, 197p.        [ Links ]

WINNICOTT, D.W. Os Bebês e suas Mães. São Paulo: Martins Fontes, 1996, 98p.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: bibitriz@terra.com.br

Recebido em 10/04/2006
Aceito em 09/05/2006

 

1 Psicóloga, membro fundador e efetivo do NESME – Núcleo de Estudos em Saúde mental e Psicanálise das Configurações Vinculares e SPAGESP – Sociedade de Psicoterapias Analíticas Grupais do Estado de São Paulo. Docente em ambas as instituições.Trabalho apresentado no XVI Congresso Latino-Americano de Psicoterapia Analítica de Grupo – Guadalajara, Mx, 2004.

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