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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo v.3 n.3 São Paulo dez. 2006

 

ARTIGOS

 

 Leitura das interligações entre desejo, responsabilidade e poder. Trajetória de um serviço de saúde mental

 

Thinking about the intersection of wish, responsability and power. The trajectory of a mental health service

 

Lectura de las interconexiones entre deseo, responsabilidad y poder. Trayecto de un trabajo de salud mental

 

 

Alaíza Helena Ribeiro Citrangulo; Theresa Cristina César Fernandes Vasconcellos

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto relata a trajetória da construção de um serviço de saúde mental, cuja leitura denuncia a exclusão como ponto comum entre o próprio serviço de saúde mental e sua clientela; além do encontro entre profissionais e pacientes em um processo de identificação e reconhecimento de desejos e sofrimentos. A história é costurada com as interligações entre o desejo, a responsabilidade e o poder, tendo como sujeitos da ação o poder público, profissionais da saúde e o paciente sendo este movimento determinante da mudança.

Palavras-chave: Desejo, Poder, Lacuna, Responsabilidade, Transformação.


ABSTRACT

The text tells the trajectory of the construction of a mental health service in which we can observe the exclusion as a point in common between the mental health service itself and its clients; besides, there is a process of identification and recognition of wishes and sufferings connecting the professionals and the patients. In this History, the public power, health professionals and the patients as the subjects of the action; and this action as the determinant of the change.

Keywords: Wish, Responsibility, Power, Gap, Transformation.


RESUMEN

El texto relata el trayecto de la construcción de un servício de salud mental cuyo lectura denuncia la exclusión como punto común entre el propio servicio de salud mental y su clientela; allende del encuentro entre profesionales y enfermos en un proceso de identificación y reconocimiento de deseos y sufrimiento. La historia es amarrada con las interconexiones entre el deseo, responsabilidad y el dominio; teniendo como sujeto de la acción, el poder público, profesionales de la salud y el enfermo, siendo este movimiento determinante del cambio.

Palabras clave: Deseo, Responsabilidad, Poder, Laguna, Transformación.


 

 

Que não te despojem de teu sentido inicial,é fácil crer no que crê a multidão. “ (Goethe)

 

Por onde começar a contar esta história?

Desejo, ponto de partida.

Por alguns anos, sentia-se o desejo de estruturação de um serviço de Saúde Mental no município de Serra Negra. Desejo este nascido da empatia com o sofrimento e fomentado pela crença inabalável na possibilidade de transformação e promoção de saúde.

O foco das atenções políticas na época não convergia para este desejo e durante este período a resposta aos insistentes pedidos de estruturação do serviço era sempre evasiva ou negativa.

O processo de construção do serviço de Saúde Mental e sua própria função denunciam um ponto em comum: a exclusão e a negação do sofrimento mental.

A sensação que se tinha na época e que ecoa até hoje é de que o olhar do poder público ao serviço de Saúde Mental é exatamente o mesmo olhar que a sociedade dirige ao doente mental, um olhar que exclui e nega os indivíduos em suas dores e em suas potencialidades.

Sofrer este olhar paralisava, jogava no canto da impotência qualquer possibilidade de mudança, mas aí a empatia com o sofrimento do excluído ficava maior, o desejo crescia e se fortificava na ânsia da transformação do outro, que denunciava a necessidade de libertação de si mesmo e apropriação do desejo, do fazer, do trabalho.

Este movimento dialético, da impotência para a possibilidade de ação nos remete à seguinte idéia: “(...) a expulsão do opressor de dentro do oprimido, enquanto sombra invasora. Sombra que, expulsa pelo oprimido precisa ser substituída por sua autonomia e sua responsabilidade”. (FREIRE, 1996, p.93).

Aqui nos cabe marcar um ponto importante, o da imagem que se tem do servidor público, como alguém impossibilitado de criar, improdutivo, sem crítica e auto-crítica, um mero repetidor de modelos, alguém que se presta ao cumprimento de ordens de um poder maior. Poder este paralisante, na medida em que converge para a sensação de impotência do servidor, comumente incapaz de olhar além das faltas e enxergar as possibilidades que, por menores que sejam, são inegáveis.

Isto explica que o desejo neste caso só pôde se fazer ação quando no poder político abriu-se uma lacuna. Em dezembro de 2.000, justamente na mudança de administração a resposta aos insistentes pedidos para estruturação do serviço de Saúde Mental foi diferente. Não havia mais interesse em determinar o rumo e autorizou-se que o desejo se concretizasse.

Neste momento de lacuna na autoridade, no poder, o desejo pessoal pôde se concretizar. Na impossibilidade da validação externa, já que a cadeira vazia (prefeito) denotava a ausência de uma diretriz do poder político, abriu-se a possibilidade real de ação, por outra via que não a hierárquica, a via da responsabilização pelo próprio desejo.

Quando existe coerência entre a ação e o desejo pequenos movimentos vão determinando grandes mudanças. Foi assim que, em curto espaço de tempo, a abertura ao acolhimento do sofrimento, anteriormente negado, possibilitou os encontros. O paciente já podia encontrar espaço para o acolhimento da dor e do próprio desejo e neste encontro surgiu a necessidade de uma estruturação efetiva do serviço, com a contratação de outros profissionais, agora validada pela atual administração.

O oferecimento de um serviço que ninguém julgava necessário, fez surgir a demanda reprimida pela negação do sofrimento. Os indivíduos com suas dores e seus desejos apareciam agora, de uma forma tão significativa a ponto de não deixar outra alternativa ao poder público que não a de se estruturar efetivamente para o tratamento.

O serviço de Saúde Mental foi se definindo na estruturação da equipe dentro de um Centro de Especialidades, cuja dinâmica que prevalece na identificação da condição de saúde é a presença/ausência de doenças não havendo questionamento da determinação das condições globais de vida sobre a saúde da população.

A recepção a paciente denunciava a perversidade do sistema social, econômico e político que coloca o indivíduo na condição de incompetência e o responsabiliza pela miséria e pela própria exclusão.

O que se sentia era que o serviço de saúde fazia um favor enorme à população e o mínimo que dela se esperava era o silêncio. Qualquer tentativa de expressão de desejo e de dor era vista com indignação.

Lembramos que:

“Na modernidade os valores predominantes foram criados a partir da aliança entre a tutela da igreja e a coerção que o Estado impõe sobre os instintos vitais, em troca da proteção aos indivíduos. O Estado, escreve Nietzsche, foi a mudança mais profunda que a humanidade produziu; sua tutela contribuiu para transformar os homens ativos em culpados. A força coercitiva do Estado sobre os homens, até então nômades e livres, desvalorizou a força dos instintos produzindo sua interiorização progressiva, até que os instintos vitais de dominação e destruição passassem a se voltar contra os homens, gerando culpa e má consciência. O homem civilizado, para Nietzsche, é um eterno culpado de todas as suas manifestações vitais em obediência aos valores morais em que acredita. Quanto mais se submete e desvaloriza “ a força dos instintos” mais enfraquece e se entrega à tutela moral dos sacerdotes e autoridades”. (KEHL, 2.004, p. 81-82)

Movida pela certeza de que “o respeito à autonomia e a dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros”. (FREIRE, 1966, p.66), a equipe revia seu papel, discutia objetivos, sentimentos, dores e pensava a saúde, o poder. Saia de trás das mesas e se percebia nos corredores, nas filas, na angústia da recepcionista, no descaso estampado nos rostos que denunciavam o desprazer do trabalho.

O trabalho da equipe crescia, os pacientes aumentavam em número, desejo e esperança. O espaço físico era espremido, desumano e contaminado pela estrutura opressora.

Os atendimentos não bastavam, era preciso ir além de tratar a doença, é preciso promover saúde mental. A transformação é social, era preciso espaço físico e mental para ampliar as idéias.

A equipe passou a buscar a mudança para um espaço próprio onde se pudesse efetivar o desejo de receber os indivíduos com respeito, dignidade e onde houvesse espaço para o estabelecimento de novos projetos, do trabalho em grupo, da participação da comunidade.

Fazia-se então necessária a criação do Ambulatório de Saúde Mental.

Agora a equipe de Saúde Mental, tentava sensibilizar o poder hierárquico sobre a necessidade da criação do Ambulatório.

O poder não assumia a resposta, era evasivo, mas mantinha a esperança da equipe, sem, no entanto, realizá-la.

A história aqui se repete e a lacuna surge, desta vez de uma forma intensa e inesperada. O sentimento era de impotência e descrença. Não havia mais tanta certeza de que a luta pelo desejo valia à pena, já que se vivia uma situação surreal: duas eleições, dois prefeitos eleitos e à mercê de uma resposta do Supremo Tribunal Eleitoral, algo tão distante e inatingível que só reforçava a sensação de impotência.

Era preciso que algo externo voltasse a reavivar o desejo e a esperança, que diluísse a impotência. E isto se deu pela presença de um representante do suposto saber, na possibilidade de participação da equipe na elaboração de um congresso.

O olhar externo que valida é fruto do encontro que reconhece no outro a possibilidade da transformação, da realização, e que sustenta a liberdade e a busca implícitas no processo de formação pessoal e profissional.

Alimentada por este olhar, a equipe pôde se responsabilizar pelo desejo, outrora adormecido.

Frente à incerteza política do momento, a equipe se cansa então de esperar pela definição do poder e enxerga um atalho como possibilidade, vai à Câmara Municipal para discutir sobre a Saúde Mental.

Neste momento quebra-se, outra vez, a expectativa da validação do poder superior hierárquico e a equipe divide sua angústia com a sociedade.

Cabe aqui salientar um novo encontro, uma empatia. O desejo da sociedade encontra voz, e a voz reencontra o desejo.

A resposta é imediata, depois de uma semana ocupava-se um prédio público e vivia-se o processo de apropriação e realização do Ambulatório de Saúde Mental.

É inegável que a máquina pública massacra. Muitas vezes, enquanto servidores públicos, a sensação é de pertencer a uma engrenagem, aprisionada pelo sistema, num movimento alienante. Entretanto, fica claro que é possível o surgimento de reais e significativas mudanças, já que se esquece é que mesmo a menor das engrenagens faz parte da máquina e determina o movimento do todo. O que sem dúvida é necessário para a contínua alimentação do desejo é a busca pelo olhar do outro. É preciso se manter aberto ao que está fora... tanto ao olhar de um sujeito do suposto saber, em supervisões e constante processo de formação profissional, quanto ao olhar da própria sociedade já que não convém esquecer que o serviço prestado dirige-se à comunidade e não ao poder.

Cabe aqui uma reflexão: a que se presta então o serviço de Saúde Mental? À repetição, à manutenção da ordem, à adaptação do paciente à mesma sociedade que o exclui?

Qual é o conceito de saúde? O de ausência de doença ou o da promoção de transformação, de desenvolvimento, de autonomia?

Se pensarmos saúde como “um contínuo agir do homem frente ao universo físico, mental e social em que vive, sem regatear um só esforço para modificar, transformar e recriar aquilo que deve ser mudado” (FRANCISCO, 2001, p.95) esta historia está só começando.

“(...) minha presença no mundo não é a de quem a ele se adapta, mas a de quem nele se insere. É a posição de quem luta para não ser apenas objeto, mas sujeito também da historia.” (FREIRE, 1996, p.60)

 

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FRANCISCO, B.R. Terapia Ocupacional. 2ª edição. Campinas(SP): Papirus, 2001, p. 95.         [ Links ]

FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia, saberes necessários à prática educativa. 21ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 1996.        [ Links ]

KEHL, M.R. Ressentimento. 1ª edição, São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Alaíza Helena Ribeiro Citrangulo
E-mail: Alaiza.c@gmail.com

Theresa Cristina César Fernandes Vasconcellos
E-mail: tcvasconcellos@itelefonica.com.br

Recebido em 10/04/2006
Aceito em 29/05/2006

 

 

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