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Vínculo

Print version ISSN 1806-2490

Vínculo vol.3 no.3 São Paulo Dec. 2006

 

ARTIGOS

 

 

A experiência de atendimento a um grupo de familiares em um centro de atenção psocissocial infantil(Capsi)1

 

The experience of seeing a group of relatives in a center of psychosocial infantile attantion (Capsi)

 

La experiencia de atención a un grupo de familiares en un centro de atención psicosocial infantil (Capsi)

 

Rose Pompeu de Toledo2

Associação de Psicoterapia Psicanalítica

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora apresentará um trabalho grupal desenvolvido com familiares de crianças com diagnóstico de transtorno global do desenvolvimento, em um CAPSi da cidade de São Paulo, cuja proposta inclui atenção à criança, ações dirigidas aos familiares e compromete-se com a construção de projetos de inserção social. Fará uma breve caracterização do CAPSi, em seguida apresentará uma ilustração clínica do atendimento grupal e, então, tecerá comentários sobre o tema das sessões e a dinâmica grupal utilizando o referencial teórico da psicoterapia psicanalítica de grupos, considerando o contexto institucional.

Palavras-chave: CAPSi; Grupo de familiares; Saúde mental.


ABSTRACT

The author will present a group work, performed with relatives of children with diagnosis of global development desorder, in a CAPSi in the city of São Paulo. Its proposal includes attention to the child, actions directed towards the relatives and is commited to the development of social insertion projects. The author will make a brief characterization of the CAPSi; after that, will present a clinical illustration of a group session and then, will make comments on the subject of the sessions and group dynamics using psychoanalytical group psychotherapy theoretical references, considering the institucional context.

Keywords: CAPSi, Group of relatives,Mental health.


RESUMEN

La autora presentará un trabajo de grupo, desarrollado con familiares de niños con diagnostico de trastorno global del desarrollo, en un CAPSi de la ciudad de São Paulo, que ofrece atención al niño, acciones dirigidas a los familiares y se compromete con la construcción de proyectos de inserción social. Hará una breve caracterización del CAPSi; después, presentará una ilustración clínica del grupo y, entonces, hará comentarios a propósito de las sesiones y de la dinámica del grupo usando las referencias teóricas de la psicoterapia psicoanalítica de grupo, teniendo en vista el contexto institucional.

Palabras clave: CAPSi, Grupo de familiares, Salud mental.


 

 

Apresentarei um trabalho grupal desenvolvido com familiares de crianças com diagnóstico de transtorno global do desenvolvimento, em um CAPSi da cidade de São Paulo.

O atendimento a grupos de familiares é uma proposta da equipe e tem suscitado algumas questões:

- Quanto à obrigatoriedade de participação: que repercussões pode trazer?

- Quanto à montagem do grupo: o fato de serem familiares de crianças chamadas autistas traz alguma característica específica?

A oportunidade de refletir sobre essas questões procede da experiência clínica; sendo assim, pretendo me remeter a dois fragmentos de sessões desse grupo para avaliá-las.

Para melhor contextualizar esse atendimento farei uma breve caracterização do CAPSi.

 

O CAPSi

O Centro de Atenção Psicossocial Infantil (CAPSi) Santo Amaro é um serviço que atende crianças de zero a doze anos com transtornos mentais na região sul da cidade de São Paulo.

Sua proposta inclui ações dirigidas às crianças, aos familiares e compromete-se com a construção de projetos de inserção social. Além disso, visa a organização de uma rede de cuidados em saúde mental para crianças e pré-adolescentes de caráter intersetorial e inclusiva, com base territorial.

Conta com uma equipe multiprofissional composta por psiquiatras infantis, psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, enfermeiras, auxiliares de enfermagem e assistente social.

Todos os pacientes passam por um processo de triagem, que antecede a avaliação clínica, para selecionar os elegíveis e orientar o atendimento daqueles que não são admitidos.

As crianças participam, conforme a necessidade, de grupos psicoterápicos ou psicoterapia individual, oficinas terapêuticas e acompanhamento psiquiátrico. As mães, pais, ou responsáveis, participam de grupos de familiares.

A opção preferencial é pelo atendimento grupal, apenas os casos contra-indicados são atendidos de outra forma. Entendemos que o grupo funciona como um potencial de apoio e de contato; além disso, pode permitir uma experiência de re-apoio do desenvolvimento psíquico àqueles cujos primeiros apoios foram insuficientes ou inadequados.

Os grupos de crianças são formados por critérios que contemplam a idade, o diagnóstico, o comportamento, as necessidades e o grau de desenvolvimento psíquico de seus integrantes. A maior parte das crianças freqüenta o serviço duas vezes por semana, realizando um atendimento psicoterápico e uma oficina, geralmente conduzidos por dois profissionais da equipe. Durante este período participam de um lanche coletivo que tem por objetivo estimular a socialização.

O grupo de familiares acontece uma vez por semana, no mesmo horário de um dos atendimentos da criança.

Temos observado que esta abordagem tem se mostrado eficaz - as crianças têm apresentado alguma evolução e as relações familiares vêm adquirindo uma maior flexibilidade em sua dinâmica.

 

Ilustração Clínica

Abordarei um grupo de familiares de crianças de seis a oito anos, com diagnóstico de transtorno global do desenvolvimento, atendido desde fevereiro de 2004 com a mesma configuração.

Iniciarei com uma sessão cuja dinâmica vinha sendo bastante freqüente. Quando um determinado membro do grupo trazia uma questão, acontecia o seguinte com os outros: cada um falava do seu próprio filho e não falava de si mesmo; parecia concentrar-se no grupo incapacidades, impotências e fracassos.A minha tentativa naquele momento era legitimar as capacidades e incapacidades de cada um.

 

Sessão de fevereiro de 2005

Presentes: Sérgio (Nicolau), Rute (Marcos), Aparecida (Francisco), Júlia (Ernesto).

Falta: Dalva (Alfredo).

Rute: “Vocês estão ouvindo? (Refere-se ao filho que está gritando desde que chegaram, há aproximadamente vinte minutos). Agora ele está assim, grita sem parar; antes respeitava a minha filha, se ela mandava parar, obedecia, agora nem ela. Eu não agüento mais!”.

Júlia: “Nossa! O que está acontecendo com ele?”.

Rute: “Quando ele quer alguma coisa e não consegue começa a gritar desse jeito. Ele quer mexer em tudo, não pára nem para ver televisão. Coloquei uma tramela na porta do quarto para ele não sair enquanto eu estou na cozinha porque tenho medo que mexa nas panelas e se queime, quando estou cozinhando minha filha fica com ele no quarto; outro dia ele levantou cedo, umas seis horas, ouvi o barulho e fiquei bem quieta, um olho aberto, o outro fechado para ele não perceber que eu estava acordada, ele ficou olhando para a porta, olhava para a porta e para a tramela, pensei – ele quer sair, mas continuei lá quietinha, e ele lá, aí ele pegou uma cadeira, encostou-a na porta e subiu para abrir a tramela, falei com ele, perguntei o que estava fazendo, ele começou a gritar, desceu da cadeira, ficou ao lado da porta gritando e chorando, só parou quando eu abri a porta. Ele não é bobo, quando estou indo com a farinha já veio com o pão”.

Sérgio: “O Nicolau, depois que entrou na escola, está chorando menos e está falando um pouco mais, ele repete as coisas que a gente fala. Também chora quando não quer fazer alguma coisa, ele me obedece mais do que obedece a mãe”.

Júlia: “O Ernesto também faz birra; antes eu brigava, ficava brava, mandava parar e percebi que não adiantava, agora eu deixo, não dou nem bola. E ele faz isso pra chamar a atenção porque eu não faço nada e ele fala: ‘fica quieto’ para ele mesmo”.

T: “Será que eles também choram, gritam e fazem birra para comunicar alguma coisa que está acontecendo com eles?”.

Rute: “Eu não tinha pensado nisso. O Marcos antes falava poucas palavras, ele parou de falar, não fala mais nada, não quer mais falar, grita e não sai uma lágrima, ele sabe que me irrita”.

Aparecida: “O Francisco também me deixa nervosa, ele não pára, mexe em tudo, aprendeu a mexer no som, ele canta e gosta de dançar”.

Júlia: “O Ernesto também gosta de som, mas ele não sabe falar som; eu peço pra ele repetir e ele fala pria, não sei de onde tirou essa palavra”.

Rute: “Eu acho que eles são muito inteligentes e vou defender uma tese: o meu filho sabe o meu ponto fraco, resolveu na cabeça dele que vai me deixar louca e não vai descansar enquanto não conseguir”.

T: “Você acha que pode fazer alguma coisa pra evitar que isso aconteça?”.

Rute: “Não sei”...

A próxima sessão é representativa de uma mudança nessa dinâmica. Após uma mudança concreta, localizada no tempo e no espaço, os membros do grupo passaram a falar de si mesmos; aparentemente, abrindo um espaço para poder suportar as frustrações e o convívio com as diferenças.

 

Sessão de agosto de 2005

Presentes: Maria (Nicolau), Rute (Marcos), Aparecida (Francisco), Júlia (Ernesto) e Dalva (Alfredo).

Rute: “Vamos trocar de lugares? Não quero ser autista e permanecer sempre no mesmo lugar”.

T: “O que vocês acham?”

Júlia: “Eu acho bom e já estou mudando de lugar”.

Eu e Aparecida permanecemos nos nossos lugares.

Aparecida: “Vamos ficar nos mesmos lugares?”

T: “Você quer mudar?”

Aparecida: “Quero!”

T: “Então vamos”.

T: “Como estão se sentindo nesses lugares?”

Júlia: “Diferente, mas é bom”.

Dalva: “Não sei”.

Aparecida: “Eu gosto, sempre gosto de agitação”.

T: “Estamos numa disposição diferente e vocês resolveram experimentar isso aqui – mudar de lugar, vamos ver como será”.

Breve silêncio.

Dalva: “Tenho medo de andar com o Alfredo e ele começar a gritar pela rua“.

Rute: “Eu tenho medo de escada rolante, de elevador”.

Aparecida: “Tenho medo de morto”.

Júlia: “De morto? Já está morto! Eu tenho medo de vivo, pode me ferrar, como a minha sogra”.

Maria: “Tenho medo dessa escada, sei que posso subir, mas sempre desço com medo de cair”.

T: “Hoje vocês mudaram de lugares e mudou também outra coisa neste grupo – vocês estão falando de vocês, dos medos que vocês sentem, não só dos medos que os seus filhos sentem e do que eles provocam em vocês”.

Rute: “Eu não sei se isso é medo, mas eu gosto de ficar sempre no mesmo lugar, eu gosto de ficar sempre no mesmo cantinho na minha casa, eu gosto sempre de ficar na mesma cadeira aqui, por isso quis mudar”...

 

Conclusões

Inicialmente, farei uma observação sobre a primeira sessão desse grupo: ela não parece muito diferente das que ocorrem em outros grupos de familiares cujos participantes não são pais de crianças autistas. Quem trabalha com grupos em instituições de saúde costuma referir que não falar de si, mas sim do próprio filho é bastante freqüente em grupos de pais. Gostaria de enfatizar que entendo que esse movimento do grupo não deve ser eliminado, mas sim tolerado e contido.

Sendo assim, entendo que ter um filho autista é um fator aleatório – vêm pessoas muito diferentes. E bastante diferentes daquelas descritas como “pais intelectuais” e “mães geladeiras” que povoam parte das representações culturais sobre o autismo.

Concordo com Cavalcanti e Rocha (2001), quando afirmam que:

“O pressuposto de que as mães [de crianças autistas] não eram capazes de perceber o mal-estar do bebê... foi aos poucos abalado pelos inúmeros relatos testemunhados ao longo de nossa experiência clínica, que demonstraram como muitas vezes foram as mães que deram o sinal de alerta”.

Quanto à obrigatoriedade da freqüência ao grupo, considero um fator pouco relevante – o que importa é a experiência que estão tendo no grupo. Nesse grupo acontecem poucas faltas, indicando que seus participantes aderiram à proposta de tratamento com abordagem grupal às crianças e seus pais.

Estes grupos constituem um fórum onde podem aparecer as dificuldades com os filhos e possibilita aos familiares, ao trazerem a si mesmos, construírem vínculos com a instituição, com os profissionais e também com os outros pacientes; define-se, assim, como um espaço para troca de informações, reflexões, processos identificatórios e experiências emocionais com potencial terapêutico.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

CAVALCANTI, A. E. e ROCHA, P. S. Autismo: construções e desconstruções. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail:rptoledo@uol.com.br

Recebido em 17/10/2005
Aceito em 15/02/2006

 

1 Trabalho apresentado no IV Congresso Mundial de Psicoterapia, em Buenos Aires, de 26 a 30 de agosto de 2005.
2 Psicóloga, Grupoterapeuta, Especialista em Psicoterapia Infantil, Especialista em Psicologia Clínica, Especialista em Psicoterapia Psicanalítica, Mestre em Psicologia Clínica, Ex-presidente e atual Diretora de Publicações do NESME (Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares), Membro da APP (Associação de Psicoterapia Psicanalítica).

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