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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo v.3 n.3 São Paulo dez. 2006

 

ARTIGOS

 

Vida-morte numa equipe de enfermaria:“supervisão da supervisão”

 

Life-death in a team-work of a hospital: “supervision of supervision”

 

Vida-muerte en un equipo de enfermería: supervisión de la supervisión”.

 

 

Jozélia Regina Díaz 1; Olmos Wilma Magaldi Henriques2

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho diz respeito a uma re-leitura sob o ponto de vista existencial fenomenológico de uma supervisão requerida pela equipe de enfermaria de doenças infecto contagiosas de um hospital da zona leste de São Paulo focalizada sob o ponto de vista das contribuições psicanalíticas. As autoras denominaram a experiência de “supervisão da supervisão”. Nessa re-leitura evidenciaram-se algumas questões: a graduação em psicologia é diretiva e amparada somente por teorias que se sobrepõem às indagações existenciais como, por exemplo, o confronto com a finitude. Tais interrogações são impossíveis no Hospital porque suas regras rígidas convocam a todos, equipe e pacientes, à impropriedade e ao descuido de si mesmos, colocando teorias e conceitos antes das vicissitudes existenciais. Outra contribuição é que o método fenomenológico de investigação torna possível o diálogo com outras teorias e permite desvelar questões veladas da existência. Ele torna possível a multiplicidade de sentidos, suporta a abertura à compreensão e convívio com as diferenças.

Palavras-chave: Vida-morte, Supervisão, Hospital.


ABSTRACT

This work concerns a re-reading focused from an existential phenomenological point of view of a supervision requested by the health-workers team in an infectious diseases ward in a hospital in the east zone of the city of São Paulo focused from the point of view of psychoanalytical contributions. The experienced was named as “supervision of supervision”. In the re-reading it some questions become clear as: the graduate in Psychology is directive and supported only by theories and concepts before any existential interrogations, like the confrontation with the finitude; such interrogations are impossible in the hospital because its rigid rules control everyone, health workers and in-patients, to impropriety and carelessness placing theories and concepts before the existential vicissitudes. Another contribution is that the phenomenological method of investigation allows a dialogue with other theories and makes it possible to remove the veil of veilling questions of existence. It makes possible a multiplicity of meanings, supports the openning to the understanding and accepting the differences.

Keywords: Life-death; Supervision, Hospital.


RESUMEN

Este trabajo concierne a la relectura, bajo el punto de vista existencial fenomenológico, de una supervisión demandada por el equipo de enfermería de enfermedades infecto-contagiosas y realizada bajo el punto de vista de las contribuiciones de la psicoanális de las configuraciones vinculares. Las autoras denominaron la experiencia de “supervisión de la supervisión. En esta relectura quedaron claras algunas interrogaciones tales como: la graduación en psicología es directiva y amparada por teorías que son antepuestas a las interrogaciones existenciales como el confrontación con el fin; tales interrogaciones son imposibles en el hospital pues sus reglas rígidas convocan a todos, equipo y pacientes, a la impropiedad y al descuido consigo mismo, poniendo teorías y conceptos antes que las cuestiones existenciales. Otra contribuición es que el método fenomenológico de investigar hace posible el diálogo entre diferentes teorías y permite tratar dichos interrogantes de la existencia. La “supervisión de la supervisión” mostró la riqueza del compartir experiencias y la polifonía que torna posible la multiplicidad de significados. No se trata de ecleticismo pero si de mantener la apertura para la comprensión y convivencia con las diferencias.

Palabras clave: Vida-muerte, Supervisión, Hospital.


 

 

Senhoras e Senhores
trago boas novas:
eu vi a cara da morte
e ela estava viva, viva!

(Cazuza, “Boas Novas”, 1988)

 

Introdução

A epígrafe escolhida sintetiza de forma admirável o que queremos apresentar neste texto. Somos duas psicólogas que trabalhamos durante muitos anos numa Instituição de Ensino Superior (IES) como supervisoras de estágio na formação de psicólogos em abordagens diferentes: existencial fenomenológica e psicanálise respectivamente. Sempre discutíamos as supervisõesi que fazíamos no sentido de ampliar o nosso olhar sobre o fenômeno. A esta troca de olhares, demos o nome de “supervisão da supervisão". Foi isso que fizemos com a supervisão institucional solicitada à supervisora de abordagem psicanalítica por uma equipe da enfermaria de doenças infecto-contagiosas de um Hospital Geral da região Leste da cidade de São Paulo, cujos integrantes se encontravam paralisados frente às questões cotidianas.

Esta discussão, que também nomeamos de “supervisão da supervisão”, mostrou-nos que somos formados sob o pensamento da metafísica que, desde Platão, toma o real separado em dois âmbitos ou mundos irreconciliáveis e no qual o pensar deriva-se da representação, para criar teorias e desenvolver técnicas de intervenção. Nesta perspectiva, a linguagem e as palavras são o recolhimento da presença de tudo aquilo que se apresenta ao homem. Mas o pensar é um ato fenomenológico que descobre sentido existencialmente ou re-descobre sentido existencial naquilo que antes era teoria, conceito, definição, etc. Apreender o âmbito daquilo que as palavras abriram e penetraram, mas que permaneceu escondido ou cindido, é fazer a palavra falar, é fazer as coisas adquirirem novo significado e a ocuparem um novo lugar, libertando o que ficou impensado (MICHELAZZO, 1999, p.18-20).

Através do relato de tal experiência pretendemos mostrar que é possível a re-significação de um vivido a partir da “supervisão da supervisão”.

 

Relato da experiencia da supervisora psicanalista

Quando fui solicitada pela porta-voz da equipeii (uma enfermeira), senti que seria catalisadora de múltiplos conflitos institucionais. O porta-voz denuncia um processo grupal latente (fantasias, ansiedades e necessidades) expressando algo do grupo, que vive como próprio. Nesse, alguns membros servem a outros de suportes para suas pulsões, pontos de identificação com os quais um integrante pode identificar-se com outro e que ANZIEU (1993) e KAËS (1991) chamaram de “ressonância fantasmática”: o agrupamento de alguns membros sobre um, ao qual se denomina “portador”, que lhes faz ver, através de suas palavras ou condutas, seus fantasmas ou fantasias individuais inconscientes, emitindo, projetando e provocando nos demais determinadas ações. Como supervisora devo tolerar as angústias e projeções do grupo (HENRIQUES, 1998) através do “holding” iii materno que supra os membros do grupo do afeto, calor, proteção e outras sensações indispensáveis aos sentimentos de segurança e bem estar.

Foram realizados 12 encontros de reflexão com a tarefa de comunicação das dificuldades de cada um no cotidiano.

O grupo conferiu-me o papel de “Grande Messias” que resolveria magicamente suas angústias. A fala da psicóloga foi reveladora dessa situação:

...esperamos que agora, com supervisão, possamos saber o que fazer frente as nossas angústias, quando o paciente se recusa a viver, quando não tem quem cubra o plantão... acho que teremos alívio para nossas dores e para as dores do paciente também”.

Nas reflexões de casos clínicos, falavam de seus próprios medos, tanto dos antigos e internos, como dos atuais, ligados à realidade. Dizia a enfermeira:

“...fico aqui imaginando ter alguém da minha família nesta enfermaria, onde faltam funcionários, faltam medicamentos. Sinto que não sei o que fazer, sinto que tudo o que aprendi na minha vida profissional, não valeu de nada”.

Constatei a circularidade da patologia institucional, ou “fenômeno da batata quente”. Havia no hospital um núcleo conflitivo ou área de atrito (a batata-quente) que circulava em seus vários estratos organizacionais. Quanto mais tempo permanecia estacionada na referida enfermaria, pior era o prognóstico quanto ao estado da saúde institucional. Quanto mais circulava, melhores eram as perspectivas quanto ao nível geral de saúde mental da equipe.

À medida que as ansiedades circulantes entre os pacientes da enfermaria foram reduzidas, pelo manejo mais adequado por parte da equipe técnica, houve, simultaneamente, um incremento de mal-estar e conflitos entre os funcionários do setor administrativo que, de certa forma, se viram atingidos em sua rotina de trabalho pelas medidas tomadas pelos técnicos para atender as reivindicações dos pacientes, que lhes pareciam justas: duas, ou mais, trocas de roupa diariamente ou uso de aspiradores na inalação de oxigênio.

O grupo funcionou conforme um arranjo de “pressupostos básicos” (BION, 1962), constituído de emoções intensas, de origem primitiva, desempenhando um papel determinante na sua organização, na realização de sua tarefa e na satisfação das necessidades de seus participantes. A atividade mental que se formou no grupo a partir da vontade e dos desejos inconscientes de seus participantes foram organizadas baseadas em três pressupostos básicos: dependência, luta e fuga, e emparelhamento. O efeito das emoções sobre o grupo interferiu e determinou mudanças no funcionamento da equipe.

Conclui que a interação da equipe de atendimento institucional é condição “sine qua non” para o êxito do atendimento e para tal é importante que a equipe se disponha, durante o trabalho, a periódicos exercícios reflexivos e de auto-avaliação. A função do supervisor institucional não é tentar ingenuamente eliminar o conflito, mas identificar sua ação e impedir que se estruture num determinado nível institucional, que pode levar ao bloqueio e à paralisação de todo o sistema.

É fundamental trabalhar com atitudes profissionais numa equipe multiprofissional e isso não se consegue através dos meios formais de ensino, como são as habituais aulas, palestras, seminários, cursos etc. A incorporação dessas atitudes pode se realizar através de Grupos de Reflexão, que possibilitam um intercâmbio de experiências levando a reflexões sentidas e não meramente intelectualizadas, sendo lugar privilegiado para aprender o processo de compartilhar, um espaço de co-construção, de descobertas e de crescimento.

 

A re-leitura da supervisão sob a ótica fenomenológica existencial

A fenomenologia é um método investigativo que implica uma ação de levar adiante uma interrogação a respeito de alguma coisa, fazendo-nos interrogantes e abrindo um diálogo que empreende desvelamentos. O existencialismo é uma filosofia que empreende uma ferrenha oposição à rigidez dos sistemas, ocupando-se do homem enquanto existência única, singular e subjetiva. Viver é jamais alcançar fixidez, embora tenhamos infinitos aparatos para tentar driblar esse movimento e nos aprisionarmos numa ilusória estabilidade. Um desses aparatos, típico do pensar metafísico, é articular raciocínios lógicos sobre algo; outro é o trabalho institucional.

As instituições expressam, pelo menos utopicamente, um mundo funcional, de normas interiorizadas, um acordo tácito para que uma obra coletiva possa manter e renovar as forças vivas que impulsionam os homens a viver, amar e trabalhar, organizando a vida física, mental e social dos indivíduos que participam delas, dando-lhes a idéia de plenitude e equilíbrio (ENRIQUEZ, 1991, p.54).

No hospital este modelo é traído pela irrupção abrupta da morte que se anuncia no plano corporal - indicando o quanto este suporte físico é frágil. A doença ameaça a continuidade da existência e traz a presença da morte, denunciando a precariedade e a transitoriedade do existir. Ao considerar a doença como algo externo (como é pensada pela ótica médica e pelo senso comum) e não como parte integrante do ser procura-se, em vão, ludibriar a finitude: somos seres que caminham para o fim. Este confronto com a possibilidade necessária do fim gera perplexidade – derivada da negação da presença da morte – e angustia pela possibilidade de não mais estar no mundo.

Sem se dar conta do que a perturbava, a equipe da enfermaria chamou um terceiro profissional para lhe auxiliar, a supervisora psicanalista, que percebeu o desamparo da equipe e, como relatado acima, identificou a patologia institucional: área de atrito (“batata quente”) que circulava na organização de tal modo que sua permanência ou circulação num determinado setor indicava a doença ou a saúde da equipe, porém não se deu conta de alguns aspectos velados na equipe.

Não há crítica ao trabalho da supervisora nem à eficácia do trabalho grupal no enfoque da psicanálise das configurações vinculares cuja dinâmica possibilita identificações de todo tipo, diferentes arranjos e combinações de papéis, re-configurando vínculos, trazendo novos “insights” e reparações e também a possibilidade de reconhecimento. Mas, parece-me que houve uma compreensão linear do conflito, um certo “pacto” com o modelo de trabalho e de eficiência que a instituição prega e a “acomodação” da equipe em um frágil equilíbrio.

Na compreensão fenomenológica existencial, o cerne da questão parece ser que esta equipe tem atuado num modo de existência impróprio, compactuando com o imaginário que não compreende a dialética vida-morte e participando da instituição hospital (e da existência) como alguém/ninguém, des-enraizados de suas existências enquanto vir-a-ser-, abertura e cuidado.

O que está encoberto ou não desvelado nessa equipe? Acredito que é justamente isso: o contato com a morte (morte real de pacientes) ecoa como apelo de cuidar de si, mas esse apelo é impossibilitado pela utopia de assepsia e planejamento da instituição hospitalar e por ter elegido uma vida objetivada, planejada e controlada anonimamente (são todos e ninguém).

O mundo humano é sutil e poderosa trama de significações que dá consistência ao nosso ser, nosso fazer, nosso saber, mas é uma trama fluída, que desaparece assim que se dilui o sentido que ser tinha para nós. A fala da enfermeira: "... sinto que tudo o que aprendi... não valeu de nada”, revela a perda de sentido. Nesse momento, o que sobra somos nós mesmos, soltos, sós, diante do nada. Essa experiência em que somos lançados é a angústia iv , que pode propiciar novas possibilidades existenciais, encontrando um sentido de vida. Porém, essa angústia é fenômeno que raramente ocorre pelo fato de que o homem, no cotidiano, foge de si mesmo, de sua angústia.

Percebemos o sentido da existência ao lidar com as experiências nela vivenciadas. Esse sentido se perde na instituição hospitalar. As pessoas que nela se hospedam e trabalham revelam sofrimento diante da experiência de inospitalidade num local que, justamente, se denomina hospital, que guarda a mesma etimologia de hospitalidade, de hóspede, de hospitaleiro, etc e que diz respeito ao acolhimento, ao cuidado com, à benevolência, à caridade, conforme seus significados históricos.

A instituição apela como um poder anônimo e controlador, planeja e convoca à impropriedade de todos, sem saída, oferecendo uma operacionalização pragmática da sobrevivência, impedindo ao homem de eleger suas próprias possibilidades e encobrindo para a razão seu caráter peculiar, já que sua eficácia depende desse encobrimento e de sua tradução em usos e costumes, em hábitos aprendidos e desenvolvidos no cotidiano, no repetitivo e distraído lidar com as coisas e falar com outros.

Isso leva a que cada vez mais o homem se “des-cuida” v de si e se “des-encarrega” de pensar e de se dedicar propriamente às suas tarefas, “des-enraizando-o” de suas possibilidades de ser-si-mesmo com propriedade.

Esse movimento se revela no que HEIDEGGER (1927) denominou “estado de queda” ou fuga de si mesmo, facilitado pela operacionalização do mundo que garante ao homem o seu afastar-se de ter de se responsabilizar por si mesmo propriamente.

Um esquema sofisticado de utensílios que resolvem e fazem pelo homem as suas tarefas, levam-no ao anonimato e à não apropriação de si mesmo, dispensando-o de toda e qualquer obra: “des-ocupam” o homem de cuidar de seu ser-si-mesmo, alijam-no de si, tornam-no impotente e frágil e apagam do mundo e das coisas os seus rastros/marcas. Este “perder-se de si mesmo”, comum na cotidianidade, revela uma forma de ser-no-mundo, na qual, o eu não é mais ele mesmo e suas possibilidades não são mais as suas.

Quando podemos contemplar, numa obra humana, a marca do homem que dispôs o seu tempo na plenificação dela, que se dedicou e se empenhou laboriosamente na sua construção, no gesto obrador em que não se perdeu tempo, mas se o ocupou e se contou com ele, engajamo-nos com o sentido da existência e com o nosso destino coletivo.

A existência tem que ser compreendida como vir-a-ser. Na dialética do tornar-se, condenado a cuidar de vir-a-ser-si-próprio, o homem está constantemente fugindo, escapando ao seu destino e responsabilidade. A compreensão desse movimento (cuidar de si e fugir) só é possível a partir do vislumbre de seu "morrer" próprio e intransferível, a única possibilidade capaz de dar sentido à sua vida, fazendo-o responsável pelo seu destino.

A dramaticidade da experiência humana se desdobra em modalidades angustiantes vividas pelo ser humano, trazendo-lhe notícias de “des-ilusão” ou apontando para o fundo escuro da luz que chama à abertura (ek-stase): lampejos de vida e abismos de morte são as paisagens constantes dessas vivências (DICHTCHEKENIAN,1988, p.45-46).

Impedidos dessa contemplação e desse empenho, pela segurança que os utensílios dão de prover o homem em suas necessidades, nos “des-ocupamos” de cuidar da nossa existência, tornando-a objeto, definida, previsível, controlável, passível de exploração, além de nos apressar, nos consumir, pois o tempo de nossa existência é curto: não há tempo a perder.

Através da ciência e da tecnologia, o homem livra-se do mistério de ser; ambas propiciam-lhe um...

...relacionamento asséptico e planejado com a existência, porque oferecem ao homem desdobrar sua existência, aparentemente sem envolvimento algum: sem empenho, sem humor, sem enganos, sem dedicação -- o espaço da morte sobre a vida: portanto o espaço da consumação de ser (CRITELLI, 1988, p.84).

O Hospital, enquanto instituição, impõe esse tipo de relacionamento com conseqüências drásticas sobre os relacionamentos humanos nele possibilitados, sejam os da equipe técnica, sejam os desta com os pacientes e com os familiares. Tudo se perde, porque o desempenho eficiente, “des-empenha”, isto é, retira do homem sua referência ao mundo, perdendo-o e livrando-o dos problemas que emergem do existir, seja ele saudável, seja ele doente.

Ao desempenhar com eficiência uma tarefa – no caso atender o paciente, trocar suas roupas de cama diariamente, usar aspiradores de inalação, ouvir sobre as limitações operadas pela doença, rapidamente se “des-empenham” da tarefa, equacionando-a sob a ótica da lógica dos utensílios. Sem a coragem de auto-afirmarem-se pelo constante e concreto assédio do não-ser, da morte real, paralisa-se o movimento da vida. A presença real da morte torna-se forma de destruição, repetem-se afetos e sentimentos dolorosos que os impedem de ver que vida e morte estão implicadas uma na outra.

Trabalhar neste nível da repetição apenas instaura o falso equilíbrio e tudo retorna.

 

Considerações Finais

Cada vez mais as pessoas têm dificuldades de falar e de vivenciar a morte, pois seus rituais estão confinados, quase sempre, aos Centros de Terapia Intensiva dos hospitais, às salas de velório, fazendo com que o contato com o morto e a morte se torne o mais indolor possível (KOVÁCS, 1992, p.11). O psicólogo, ao adentrar o hospital (um campo de trabalho), imbuído pela lógica do salvar vidas, do amenizar a angústia da doença e do assédio da morte, repete afetos e sentimentos dolorosos que impedem ver a imbricação vida-morte.

Como lembra CRITELLI (1996, p.70-72) o desvelamento implica no inaudito, implica na coragem da aventura, pois ao olhar, ao interrogar, abre-se uma clareira para a compreensão do fenômeno, onde o interrogador faz parte do que quer saber e do que pode ver, onde o interrogador faz parte daquilo que é interrogado. O próprio interrogador, enquanto interroga, se dá conta de que não está só, pois se depara com a pluralidade de olhares. Os outros fazem parte de um olhar particular.

Pensando nisto, retomamos novamente o que chamamos de “supervisão da supervisão”. Ao evocar um olhar particular, iluminaram-se vários outros olhares e através deles iluminou-se uma nova compreensão do que ali se experienciava.

A partir desse encontro de supervisões, de um supervisor debruçar-se sobre a experiência do outro, pudemos experienciar a riqueza de compartilhar e, assim, minimizar a solidão do trabalho de supervisão, mantendo um diálogo frutífero que gostaríamos que fosse a tônica da formação em Psicologia, numa polifonia que possibilitasse o hibridismo e a mestiçagem dos quais somos constituídos. Não estamos falando em ecletismo, mas sim de um conversar com o conhecimento, mantendo relação de abertura, compreensão e convívio com as diferenças, tornando acessível ao homem o encontro com ele mesmo, recuperando a sua presença no mundo e, portanto, para a angústia.

É ilusão e “des-ilusão” imaginar a vida como “calmaria”; é em meio à travessia que nos encontramos sem margens, pois nos confrontamos com a nossa destinação: somos lançados no mundo, fazendo escolhas e nos responsabilizando por elas, assumindo o nosso ser-para-o-fim.

Desvelar tais questões durante a formação e durante as supervisões é primordial, pois só a partir desse desvelamento é que poderemos estar abertos para cuidar daquilo que vem ao nosso encontro.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência
E-mail: jozelia.regina@itelefonica.com.br / galdihenriques@ig.com.br

Recebido em 21/11/2005
Aceito em 15/02/2006

 

 

1Psicóloga analista existencial, mestre pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
2 Psicóloga-psicanalista, doutora pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, professora-supervisora de estágio em clínica do Curso de Psicologia da Universidade de Mogi das Cruzes.
i Muitas vezes realizamos na IES “seminários clínicos” de casos atendidos pelos alunos-estagiários reunindo, no mesmo seminário, profissionais de diferentes abordagens como: comportamental cognitiva, existencial fenomenológica e psicodinâmica.
ii Equipe hospitalar do setor de atendimento a portadores do vírus HIV composta de duas fisioterapeutas, dois médicos infectologistas, uma psicóloga, uma nutricionista, uma enfermeira, dois escriturários, um chefe de lavanderia e uma atendente.
iii Ao estado de sensibilidade aumentada que capacita a mãe a se colocar no lugar do filho, Winnicott (1983) denominou preocupação materna primária. Este é um estado de “devoção”, no qual “a mãe através de sua identificação com o lactente, sabe como o lactente se sente, de modo que é capaz de prover quase exatamente o que o lactente necessita em termos de ‘holding’ e provisão do ambiente em geral” (p.52).
iv Angústia aqui é tomada em seu sentido filosófico existencial. Kierkgaard, no Conceito de Angústia (1844) introduziu o termo. A raiz da angústia é a existência como possibilidade. Diversamente do temor e de outros estados análogos que se referem sempre a algo de determinado, a angústia não se refere a nada em particular: ela é o puro sentimento da possibilidade. Para Heidegger, a angústia é a situação afetiva “que pode manter aberta a contínua e radical ameaça que vem do ser mais próprio e isolado do homem: isto é, a ameaça da morte. A angústia constitui essencialmente “o ser para a morte”, isto é, a aceitação da morte como “a possibilidade absolutamente própria, incondicionada e insuperável do homem”. A angústia não é nem o pensamento da morte ou a espera e a preparação da morte (o medo chega do intramundano). Viver para a morte, angustiar-se, significa compreender a impossibilidade da existência enquanto tal, isto é, compreender que todas as possibilidades da existência enquanto consistem em antecipações ou projetos, que pretendem transcender a realidade de fato, não fazem senão recair na realidade de fato. Paul Tillich, em A Coragem de Ser (1972), faz uma excelente apresentação da questão ontológica da angústia.
v Cf. Antonio Geraldo da Cunha, no Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa (1982, p.249) o pref. des-, do lat dis- diz de (i) coisa ou ação contrária àquela que é expressa pelo termo primitivo; (ii) cessação de algum estado primitivo ou de uma situação anterior; (iii) coisa ou ação mal feita; negação da qualidade expressa pelo termo primitivo. Portanto, no texto, alguns vocábulos estão grafados propositalmente com o prefixo separado do termo, seguindo a orientação do filósofo Heidegger.

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