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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo v.4 n.4 São Paulo dez. 2007

 

ARTIGOS

 

Pharmakon e vínculo: melhorando a farmacoterapia psiquiátrica

 

Pharmakon and binding: improving psychiatric pharmacotherapy

 

Pharmakon y vínculo: mejorar la farmacoterapia psiquiátrica

 

 

Breno Serson1

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir do conceito grego de pharmakon, que unifica o uso de uma substância medicamentosa às orientações gerais do tratamento dadas pelo médico, explora-se como melhorar a adesão e os resultados dos tratamentos psicofarmacológicos. Com base em uma retórica derivada da antiga ars medica e a partir das transferências iniciais na relação médico-paciente, busca-se um vínculo com o paciente que propicie uma aliança terapêutica, melhorando assim a eficácia da farmacoterapia psiquiátrica.

Palavras-chave: Pharmakon, Vínculo, Retórica, Transferência, Psicofármacos.


ABSTRACT

From Greek’s conception of pharmakon, which unifies the use of a therapeutic substance to general guidelines of a treatment given by the physician, we explore how to improve adherence and outcomes of psychopharmacological treatments. Based on the ancient ars medica rhetoric, and departing from initial transference phenomena within the physician-patient relationship, we seek a binding with the patient, leading to a therapeutic alliance and thus improving the effectiveness of psychiatric pharmacotherapy.

Keywords: Pharmakon, Binding, Rhetoric, Transference, Psychopharmacotherapy.


RESUMEN

A partir del concepto griego de pharmakon, que unifica el uso de una substancia medicamentosa a las orientaciones del tratamiento dadas por el médico, se explora como mejorar la adhesión y los resultados de los tratamientos. En base a uma retórica derivada de la antigua ars medica y a partir de las transferencias iniciales de la relación médico-paciente se busca um vínculo con el paciente que propicie uma alianza terapéutica, mejorando la eficácia de la farmacoterapia psiquiátrica.

Palabras clave: Pharmakon, Vínculo, Transferência, Psicofármacos.


 

 

“Sócrates: A medicina tem, de certo modo, o mesmo caráter da retórica.
Fedro: Como?
Sócrates: Em ambas é necessário analisar uma natureza (physis): a do corpo em uma, a da alma na outra, não somente como uma rotina e a uma prática, mas como uma técnica (téckné), para ministrar ao corpo remédios e alimentos e produzir assim, nele, saúde e força; e para a alma, raciocínios (lógoi) e ocupações justas para lhe transmitir a convicção que queiras e a virtude que é desejável”.
Fedro (Platão, 2005, p. 257).

 

Uma acepção de pharmakon

No enorme legado da medicina hipocrática encontramos o conceito de pharmakon, citado por Platão no Fedro e retomado, em múltiplas acepções em Derrida (Derrida, 2005, p. 72; veja também Coura, 2002). No presente texto, pharmakon é uma substância, vegetal, animal ou mineral que uma vez ingerida ou aplicada sobre uma pessoa - e indissociada da palavra do médico que a prescreve - tem um de três efeitos segundo a dose: (i) é inócua; (ii) age como um medicamento; (iii) age como um veneno.

Nesta acepção médica, nem a cicuta que mata Sócrates, nem a planta ou areia sem ação terapêutica, aplicadas pelo charlatão, são pharmakon.

Nenhuma substância medicamentosa é o melhor pharmakon possível sem o vínculo de confiança entre médico e paciente, sem a suave e paciente retórica que convence o paciente da pertinência (ou inevitabilidade, na falta de melhor) de usar certa substância no alívio ou cura do que o aflige, ou o que o afligirá certamente se não tratado (ex: hipertensão arterial assintomática).

Não temos um bom pharmakon sem as palavras de orientação sobre dosagens, tempo de uso, efeitos colaterais, expectativas e riscos do tratamento e sem que o paciente valide o diagnóstico e a conduta do médico.

Tais palavras sobre a posologia dos medicamentos são, todavia, apenas partes da “palavra afetiva empenhada” que pode definir o pharmakon. O diálogo do médico com a pessoa que se torna paciente já equivale a ministrar o medicamento – hoje produto comercial comprado em uma drogaria - que se torna enfim pharmakon quando associado à palavra e à relação emocional com o médico.

O pharmakon só existe plenamente quando o paciente usa a medicação (e também a dieta, ginástica ou cirurgia) do modo que o médico acredita ser a melhor, convencendo através da melhor retórica o paciente a agir terapeuticamente em próprio favor e dos seus.

Para isto o médico enfatiza junto ao paciente o clássico ciclo da consulta: investiga sintomas e sinais do paciente, configura síndromes, formula uma hipótese diagnóstica e assim um prognóstico, propondo enfim um tratamento, do qual pode fazer parte a substância medicamentosa.

Na medida do possível, o médico deve partilhar com o paciente o raciocínio clínico envolvido no ciclo da consulta, bem como a conclusão deste raciocínio (lógos), isto é, o tratamento proposto. No contexto de uma relação humana benevolente, o paciente se convence a tomar o pharmakon na posologia adequada, dispõe-se a monitorar junto ao médico os efeitos terapêuticos e colaterais, retorna às consultas e... melhora.

 

Um pouco de Filosofia na clínica

Acredito em um pragmatismo médico enquanto soma das conseqüências benéficas sobre o paciente, provocadas pela ars rethorica do médico. Clinicar ganha assim a influência da leitura que faço de C. S. Peirce, que por sua vez relê os filósofos medievais e o espírito aristotélico da primeira ciência.

Considero o belief peirceano ponto de partida para atitude do paciente na adesão ao tratamento, já que este é constituído pelas “...conseqüências práticas pensáveis como resultante necessariamente da verdade da concepção” (Peirce 1980, p.7). Se meu belief é que pôr a mão no fogo danifica o corpo e dói muito, entre outras conseqüências...

A rethorica, como Peirce chama a parte mais complexa de sua Lógica, passa a ser parte do pharmakon aplicado pelo médico, a serviço do compromisso ético com o bem-estar do paciente (cf. o que diz Sócrates na epígrafe).

Tal é a filosofia do eu-tu lógico e afetivo da clínica cotidiana, instrumentando a prática.

Convencer, partilhando o raciocínio clínico com o paciente, em suas premissas e conclusões, adaptando-as ao universo cultural de cada um, e assim fazer o paciente entender os prós e contras de cada fase ou medida do tratamento. O tom afetivo do amor beneficente ao paciente é o que funda a aliança terapêutica em um vínculo e garante a adesão ao tratamento, por mais amargo que seja o remédio.

Como o médico no Platão das Leis, almeja-se “...instruir o paciente... sem nada prescrever-lhe até que tenha conseguido convencê-lo da necessidade disto; e então, ajudado pela persuasão, tranqüiliza e prepara continuamente o seu doente, até conseguir levá-lo pouco a pouco à saúde”. (Platão, apud Coura 2001, p. 72).

 

Pharmakon e clínica atual

Pela primeira vez na história dispomos de medicamentos que alteram dramaticamente o curso clínico natural de depressões uni ou bipolares (por exemplo o lítio e a fluoxetina, introduzidos em 1949 e em 1988, respectivamente), mudando potencialmente a vida dos pacientes antes condenados a recorrências e cronificações.

Mais de 2500 anos depois da escola hipocrática, o psiquiatra que hoje prescreve fluoxetina, lítio (ou o último lançamento em “estabilizador do humor”...) se defronta na plenitude com a questão do pharmakon. Na nova era do medicamento psiquiátrico eficiente, a diferença entre a melhor melhora possível, o resultado pífio ou a piora (por não tratar adequadamente) subordina-se significativamente ao efeito pharmakon que o médico possa proporcionar ao medicamento.

Isto é particularmente importante no tratamento de quadros ansiosos e depressivos - como TOC, fobias, ansiedade tônica (TAG) ou fásica (pânico) e de depressões de vários matizes, que compõem a maior casuística da minha prática clínica nos últimos quase 15 anos.

Tratar tais quadros supõe adesão a um tratamento farmacológico longo (da escala de meses ou anos), lidando com incertezas nas respostas terapêuticas, com efeitos colaterais, com situações de crises psicológicas, com necessidades de aumentos e diminuições de doses; tudo isto, idealmente, deveria ser pesado por médico e paciente na aliança terapêutica.

O tratamento compreende também medidas gerais multidisciplinares e não farmacológicas (psicoterapias, mudanças de estilo de vida, etc.), medidas que garantem melhores prognósticos em longo prazo que o tratamento somente farmacológico.

Mesmo com uma boa resposta inicial, como é o caso dos antidepressivos modernos, o curso clínico flutua e as remissões não são estáveis. Sabemos o quanto a adesão ao tratamento vai ficando problemática ao longo da melhora clínica e sobretudo na profilaxia de novos episódios (quantos bipolares não vemos entrar em crise por interromperem a medicação de anos).

O clínico, sempre pensando no longo prazo, busca ainda assim completar bem os ciclos do tratamento (introdução, titulação de doses, manutenção, retirada), ao mesmo tempo que orienta o paciente na identificação precoce de futuras e possíveis recorrências.

Há ainda que diagnosticar e corrigir outras condições médicas por vezes simples (p. ex., em geriatria checar aparelhos auditivos, dentaduras e óculos), nutricionais, regimes de sono, trabalho e sedentarismo, consumo não comunicado de medicamentos e drogas (p. ex. analgésicos, vasoconstritores nasais).

Enfim, há que lidar com emoções, sentimentos, fantasias, expectativas, com a condição existencial e humana, especificidades da psiquiatria que fazem o conceito de pharmakon tão significativo quanto o moderno arsenal de substâncias terapêuticas.

Como já entendia a medicina hipocrática, “A acção curativa dependerá de um triplo “que”, que doença, que doente, que remédio” (Carvalho 2004, p. 58).

 

Do pharmakon ao vínculo

Não é difícil a passagem da “palavra do médico” grega à relação médico-paciente tal como é hoje entendida. A substância farmacológica ou cirúrgica era até 50 ou 100 anos atrás tão rudimentar que a Medicina devia muitíssimo às palavras do médico antigo, humanistas, vocacionadas, retóricas no bem do paciente, quase sagradas (numinosas, cf. Calderoni, 2002) sendo ainda assim profanas (no sentido de não mais religiosas nem mágicas).

Pois hoje dispomos de pouco tempo ou ambiente para estas palavras lapidadas pelos antigos, ainda que entendidas modernamente, por exemplo, como o “estilo das relações vinculares” ou como “transferência na relação médico-paciente” (cf. Zimerman 1992, p. 66-68 e outros autores da psicologia médica e psicossomática de base psicanalítica).

Na prática clínica real, nos nossos consultórios, hospitais e ambulatórios de psiquiatria, há pouquíssimo pharmakon. Há que lamentar o enorme retrocesso nas relações médico-paciente: contra a tékhné iatrós ou ars medica milenar, o que são os 20 ou 30 anos dos psicotrópicos modernos, do Saúde–Bradesco, SUS, ou qualquer managed care, da fria e presunçosa psiquiatria estilo DSM, com suas escalas e polifarmácia, com seu braço psicológico neo-comportamental?

Através da medicina psicossomática (cf. Eksterman, 1992), mesmo a já centenária psicanálise contemplou as dinâmicas inconscientes do médico e do paciente na relação terapêutica que constitui o pharmakon. O jovem Freud, enquanto médico das histéricas que a medicina vienense não conseguia ministrar o pharmakon convencional, vê-se obrigado a contemplar a transferência que tanto intimidou Breuer.

Além da racionalidade bem intencionada da ars rethorica do médico, há assim todo o jogo especular dos inconscientes - transferências e contratransferências - que a psicanálise revelou (cf. Viderman 1990, p. 239-295). Embora não discutido neste artigo, tal jogo não tem como ser erradicado ou condenado à irrelevância, por exemplo, por não se mensurar pelo metro supremo atribuído ao estatístico e meta-analítico das publicações nos journals, como faz a psiquiatria DSM hegemônica.

Todos perdemos em deixar para um segundo plano a relação médico-paciente, o vínculo baseado na compreensão humana e psicológica do paciente por parte do médico. Em torno de tal vínculo, fazendo o melhor uso das transferências inevitáveis, deve idealmente configurar-se a aliança terapêutica, potencializando a eficácia farmacológica da psiquiatria atual.

Acredito que o psiquiatra clínico, desde que disponha de condições mínimas e trabalho, deve integrar o tratamento farmacológico ao pharmakon em mais de um sentido.

Trata-se, por exemplo, de conseguir encaminhar o paciente a uma psicoterapia que é frequentemente indicada, além de se prescrever uma série de medidas gerais individualizadas a serem adotadas pelo paciente, em prol da descronificação e da desmedicalização possível, tais como mudanças de regimes de vida, atividades físicas, outros cuidados médicos, etc.

Busca-se fazer o ex-ansioso(a) tomando cronicamente muito café, calmantes BZD e remédios para gastrite e passando com freqüência pelo Pronto-Socorro, tratar-se com um bom medicamento para TAG por um ou dois anos e ter alta médica, permanecendo porém, como exemplo típico, em psicoterapia, yoga, tendo mudado o padrão de consumo de substâncias, mudado a vida relacional e/ou do trabalho.

Sabemos o quanto isto é difícil na prática: hábitos arraigados, transferências negativas e dependências muito ativas, gozos lacanianos na doença, ganhos secundários, um entorno sócio-cultural (alienação, consumo desenfreado...) que pode ser descrito como perverso; tudo isto nos dificulta. Mas devemos tentar prescrever a dieta de vida equilibrada além do pharmakon.

O conceito de pharmakon pode assim ser ampliado à palavra do médico no tratamento como um todo. Busca-se ao longo de aproximadamente 10 a 15 consultas em 2 anos, conduzir retoricamente (cf. a epígrafe de Platão acima) uma parte significativa da amostra de pacientes a cuidar-se com psicoterapia e medidas gerais afim de necessitar o mínimo possível o tratar-se farmacológico, dado o caráter recorrente dos quadros ansiosos e depressivos.

Vínculo torna-se assim a condução terapêutica da transferência, a partir da compreensão dos fenômenos transferenciais iniciais na relação médico-paciente, ou em outras palavras do estilo neurótico, perverso ou psicótico, ou outro que se perceba.

Mantida pelo médico sabiamente positiva e levemente idealizada (como proposto por Fiorini para o papel do psicoterapeuta, cf. Fiorini 1991, p. 106-114), tal transferência busca assim catalisar o vínculo terapêutico nestas 10-15 consultas/sessões de um curso de tratamento farmacológico típico.

Eis aí algo da antiga ars medica, conduzindo com seu discurso específico e atualizado do médico - nem discurso do mestre nem da universidade em Lacan – a pessoa, não mais paciente, a regimes de vida mais saudáveis, ao restabelecimento ao equilíbrio devido, como queria a medicina grega.

Isto é particularmente difícil nas adicções graves, nas psicoses, junto às personalidades mais psicopáticas, porém bastante recompensador nas doenças ansiosas e depressivas, nas quais as condições transferenciais são mais favoráveis ao vínculo e ao pharmakon.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ZIMERMAN, D. E. A formação psicológica do médico In: Mello Fº, J. (Coord.). Psicossomática Hoje. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992, 385 p.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
E-mail: brenoserson@terra.com.br

Recebido em:05/12/2006
Aceito em:25/03/2007

 

 

1 Médico (Faculdade de Medicina da USP, FMUSP), especializado em Psiquiatria (H. das Clínicas da FMUSP), doutor em Filosofia (EHESS, Paris) com pós-doutorado em Ciências Cognitivas (PUC-SP), membro do GEPP - Grupo de Estudos sobre psicanálise e psicofármacos. Clinica em consultório particular desde 1993.

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