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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo v.5 n.1 São Paulo jun. 2008

 

ARTIGOS

 

O papel dos afectos no funcionamento do aparelho menta

 

The affects' role at the functioning of the mental apparatus

 

El papel de los afectos en el funcionamiento del aparato mental

 

 

Mario David1

Sociedade Portuguesa de Grupanálise. Lisboa, Portugal

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho versa sobre o renovado interesse pela natureza e dinâmica dos Afectos, as quais têm aumentado nas últimas décadas devido, em parte, aos novos entendimentos que as Neuro-Ciências têm tido sobre esta questão e às suas possíveis correlações com a conceptualização psicanalítica. Aliás a teoria psicanalítica tem sido, desde os seus primórdios, a única teoria psicológica a considerar serem os Afectos, a par das Representações, os componentes das Pulsões, factores básicos para o funcionamento do Aparelho Mental. Os Afectos são portadores de uma fonte e dinâmica próprias e eles têm sido entendidos como motivadores para a execução de desejos e de fantasias e como determinantes independentes das fantasias e dos comportamentos. Portanto faz-se uma revisão dos conceitos fundamentais e uma apresentação da evolução da conceptualização psicanalítica e a sua articulação com os dados revelados nos estudos neuro-científicos sobre as percepções, a consciência e as emoções.

Palavras-chave: Afectos, Aparelho mental, Neuro-psicanálise, Psicanálise, Pulsões.


ABSTRACT

The present paper is about the renew interest over the Affect’s nature and dynamics which have been raised over the last decades partially due to the newest understandings from the neurosciences over this issue and their possible correlations with the psychoanalytical conceptualization. Therefore the psychoanalytical theory has been, since her origins, the only one psychological theory to considerer, being the Affects, in parallel with the Representations, the Drive’s constituent, and the basic factors for the functioning of the Mental Apparatus. The Affects have their own source and dynamics and they have been a motivator for executing wishes and fantasies and as independent determinant of fantasies and behaviors. So the author will do a review over the basics concepts and a short presentation of the Neo-Freudian Conceptualization, linking it with the data disclosed in the neuro-scientific literature over the perceptions, the consciousness and the emotionality.

Keywords: Affects, Drives Mental Apparatus, Neuro-Psychoanalysis, Psychoanalysis.


RESUMEN

El presente articulo versa sobre el renovado interés por la naturaleza y la dinámica de los Afectos que ha aumentado en las últimas décadas debido, en parte, al conocimiento que las neurociencias han tenido sobre esta cuestión e a las posibles correlaciones con la concepción psicoanalítica. Presupuesto, la teoría psicoanalítica ha sido desde sus inicios la única teoría psicológica que ha considerado, los Afectos, a la par que las representaciones, los componentes de las Pulsiones, factores básicos para el funcionamiento del aparato mental. Los Afectos son portadores de una fuente y dinámica propias y han sido entendidos como unas motivaciones para la ejecución de deseos, fantasías y como determinantes independientes de las fantasías y de los comportamientos. Por tanto, el autor hará una revisión de los conceptos fundamentales y una breve presentación de la evolución de la concepción neo-freudiana articulando con los datos revelados en los estudios neurocientíficos sobre percepciones, la conciencia e las emociones.

Palabras clave: Afectos, Aparato mental, Neuro-psicoanalisis, Psicoanalisis, Pulsiones.


 

 

Definição do Conceito

O interesse pela natureza e dinâmica dos Afectos tem sido renovado pela existência de inúmeros novos dados e entendimentos fornecidos pelas neurociências sobre a emocionalidade e as suas possíveis correlações com a conceptualização psicanalítica, a única teoria psicológica que considerou serem os Afectos, a par das Representações (componentes das Pulsões), factores básicos para o funcionamento do Aparelho Psíquico. Segundo Laplanche e Pontalis (1970, pp:34) o Afecto “exprime qualquer estado afectivo, penoso ou agradável, vago ou qualificado, quer se apresente sob a forma de uma descarga maciça ou como uma tonalidade geral”, sendo apresentado sob duas perspectivas: uma de valor descritivo, como a ressonância emocional de uma experiência geralmente forte e uma outra, segundo a teoria freudiana dos investimentos psíquicos, como uma quantidade de excitação, tradução qualitativa da quantidade de energia pulsional e das suas variações, tratando-se portanto de um conceito energético.

Porém, os Afectos, nunca foram objecto de uma monografia completa por parte de Freud, mas somente objecto de descrições fenomenológicas nos seus escritos metapsicológicos (FREUD, 1915a;1915b). A Ansiedade, objecto de estudo mais completo, foi associada aos impulsos sexuais e à agressividade e sendo-lhe reconhecidas diversas psico-géneses: desde a ameaça de perda do objecto, passando pela perda do amor do objecto ou à ansiedade gerada pelas exigências do Super-Ego. Freud diferenciou-a em dois tipos: a ansiedade – sinal e a ansiedade – traumática, sendo esta última, a expressão da desorganização psíquica do que não é verbalizável. No seu modelo topográfico de 1916, Freud descreveu as inúmeras vicissitudes que podiam ocorrer à Ansiedade, desde as formas mais limitadas às mais incapacitantes de ansiedade psíquica ou psico-sexual nas psico-neuroses de transferência; passando pelas formas agudas repetitivas da ansiedade traumática e/ou com o componente somático da ansiedade somática nas neuroses actuais ou ainda as formas de neutralização da ansiedade.

 

A Pulsão

Na génese do Afecto está a Pulsão, umconstructo teórico proposto em “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade” (FREUD, 1905) e cuja natureza considerava ser “um conceito na fronteira entre o mental e o somático” em “As Pulsões e as suas vicissitudes” (FREUD, 1915c; pp:109-140). A Pulsão, força propulsora aplicada à Mente derivava das excitações físicas internas desencadeadas pelas necessidades internas (exigências quantitativas) e era de natureza inconsciente, dado que jamais se poderia transformar em objecto da consciência e que somente poderia ser representada através de representantes ideacionais ou psíquicos, estes passíveis de consideração psicanalítica: “sem tal representação, nada poderíamos saber sobre as próprias pulsões” (FREUD, 1915c; p:109-140). O primeiro dos representantes ideacionais ou psíquicos seria aparcela ou quota de afecto, conceito ou factor energético quantitativo, o qual corresponde ao elemento propulsor, à energia de excitação que tende para a descarga e o segundo daqueles, a representação corresponderia ao traço de memória do traço de sensação de prazer ou desprazer experienciado, descarga da parcela ou quota de afecto (FREUD, 1915a, 1915b).

Ao tentar caracterizar as Pulsões, Freud implicou a existência de quatro factores que lhes seriam imanentes: 1) Uma fonte: donde provêm as excitações corporais, derivadas das necessidades biológicas básicas, ditadas pela sobrevivência; 2) Uma força ou pressão: o factor quantitativo designada por parcela ou quota de afecto; 3) Uma finalidade ou alvo da Pulsão: descarga da excitação para conseguir o retorno a um estado de equilíbrio psíquico ou a sua satisfação, segundo o princípio da constância ou da “homeostasia” e 4) Um Objecto: isto é para cada finalidade pulsional corresponde um determinado Objecto e que de acordo com o conceito do investimento pulsional ou catéxis, esta energia pulsional apresentava-se sob duas formas de excitação distintas: uma “ligada” às representações inconscientes e conscientes e uma outra, estaria sob a forma dita “livre”.

A partir de 1920, Freud (1920/1957) passou a considerar as Pulsõesa dois níveis: “num biológico, cuja origem se encontrava na organização somática e num nível psíquico em que se podiam subdividir em pulsões psicológicas inacessíveis ao estudo e em representantes ideacionais dessas pulsões conhecíveis através do Ego” (NAGERA, 1970; p:23-49).

Freud (1926/1959) lembrou que as pulsões e os seus representantes psíquicos podiam sofrer determinadas movimentações e/ou transformações, isto é, a sua possibilidade de deslocamento de uma zona corporal para outra ou o intercâmbio entre distintas pulsões ou elas serem sujeitas às acções dos fenómenos defensivos de recalcamento, de compulsão, da repetição, de sublimação, de formação reactiva etc., ou ainda a sua transformação em fantasias inconscientes (FREUD, 1926/1959).

Também terá deixado bem claro a existência de uma dualidade pulsional e de que toda a vida mental se podia resumir às manifestações de conflito ou de interacção entre as classes de Instintos ou Pulsões, cuja classificação sofreu uma evolução no decorrer da sua obra em quatro fases principais (NAGERA, 1970) sendo esta última fase (1920- 1939) uma antítese entre entidades maiores que abrangiam todos os grupos de instintos e segundo a sua finalidade biológica: uns manifestavam-se como impulsos destrutivos ou agressivos, os “Instintos de Morte” e uns outros, como impulsos libidinais ou sexuais, os “Instintos de Vida”, tendo descrito a existência de diversas pulsões básicas, para além da sexual e da agressiva, tais como, a de dominação e as de auto-conservação, estas últimas numerosas, tantas quantas as funções orgânicas e mais tarde, umtipo específico de Pulsões: as do Ego, cuja energia estaria ao serviço deste a fim de resolver a dinâmica e a conflitualidade psíquicas.

 

A Representação

A Representação pode ser entendida como a imagem mental e foi distinguida em diversas categorias: a “representação de palavra” essencialmente acústica, a “representação de coisa” mais primária e essencialmente visual ou a existência de outras representações, tais como: a “representação – objecto” ou a “representação – desejo”: “aquilo que provém da vivência da satisfação” (LAPLANCHE E PONTALIS, 1970, p:584-90), ou ainda, as “representações – meta”: “termo forjado por Freud para exprimir o que orienta o curso dos pensamentos, tanto conscientes como pré-conscientes e inconscientes” (LAPLANCHE E PONTALIS, 1970, p:586), etc.

Freud sempre opôs a Representação ao Afecto e pois para cada um deles definiu um destino distinto nos processos psíquicos. Enquanto a Representação seria “o traço de memória da sensação de prazer ou de desprazer experienciado na descarga da parcela ou quota de afecto” (FREUD, 1915a, 1915b), o Afecto não seria mais do que a percepção da própria descarga ou de outra forma, a Representação seria a memória ou rememoração da percepção da descarga, enquanto que o Afecto seria o conceito ou factor energético qualitativo, isto é, a percepção da própria descarga.

 

A Dinâmica dos Afectos segundo a Visão Freudiana

Quando surgem as primeiras referências explícitas às Pulsões e aos Afectos, estes são considerados os estímulos internos mais importantes para os processos psíquicos. Aonde o prazer e o desprazer eram os vectores afectivos, enquanto que a satisfação e a frustração eram os vectores pulsionais básicos do funcionamento do Aparelho Mental (NAGERA, 1970).

O seu funcionamento geral seria governado por um mecanismo regulador ou princípio geral, conhecido por “princípio do prazer” com o qual se atribuem os valores e/ou graus às performances mentais, de acordo, com uma fórmula através da qual a satisfação das necessidades internas ou redução quantitativa na pressão pulsional seria sentida qualitativamente, como prazer e ao aumento quantitativo da tensão pulsional é sentida, qualitativamente, como desprazer.

Assim sendo, a origem e a finalidade do Afecto seria a de atribuir um valor ao estado dinâmico do Aparelho Mental através do registro das consequências biológicas nos diferentes níveis da Consciência. Este mecanismo seria crucial para a sobrevivência e estaria registrado sob a forma de experiências pessoais, as quais alimentariam retroactivamente os Afectos e que estes, por seu turno, motivariam e modificariam os subsequentes comportamentos do Indivíduo.

Quanto à origem dos padrões de descarga, Freud terá formulado uma hipótese genética, em que os Afectos podiam ser predisposições herdadas (memórias filogenéticas) ou forjadas em fases iniciais do desenvolvimento por acontecimentos de significância universal, isto é, serem “reproduções de acontecimentos antigos de importância vital e eventualmente pré-individuais” comparáveis a “…acessos histéricos universais, típicos e inatos”(FREUD, 1926; p:75-172).

Outro importante aspecto na dinâmica freudiana é o aspecto inibitório ou executivo, isto é, a questão da regulação mental inicialmente regida pelo princípio do prazer a qual irá ser substituída pelo princípio da realidade ao longo do processo da maturação psíquica através da intervenção do Ego, cujos mecanismos inibitórios se irão desenvolver com a finalidade do Sujeito conseguir adiar a descarga motórica, produzindo um estado de tensão dinâmica, no qual a energia ligada às pulsões pode ser empregue ao serviço do Pensamento, em vez de ser descarregada de modo reflexo.

 

As Visões Pós-Freudianas sobre o Papel dos Afectos na Estruturação Psíquica

Ao longo do tempo foram-se desenvolvendo dois modelos na teoria freudiana: um primeiro modelo, o modelo energético ou pulsional, cujo motor é o conflito derivado da luta entre a Pulsão e a Defesa que ganhou espaço com as elaborações técnicas, teóricas e clínicas dos discípulos directos de Freud, tais como, Karl Abraham, Ernest Jones e acima de tudo, com Ferenczi e um segundo modelo de funcionamento, cujo motor reside na dinâmica das Relações Objectais.

Quem terá introduzido mais modificações na compreensão da função das Pulsões e dos Afectos terá sido H. Hartmann (1948/1964) o qual terá sugerido a existência de uma matriz indiferenciada (Id.-Ego), aonde coexistiriam elementos pulsionais com determinadas funções, como ponto de partida para a formação do Ego. Este autor considerou existirem diversos factores que impulsionariam a diferenciação destas estruturas do Aparelho Mental (Id.-Ego): o primeiro factor seria o hereditário ou constitucional, no qual se englobavam as capacidades inatas ou autónomas do Egoe as Pulsões e os esboços de funções egóicas tinham desenvolvimento em separado, umas, através da sexualização ou agressivização da função e as outras, como defesa contra determinadas pulsões, as quais se iriam libertando secundariamente do conflito que lhes deu origem, dessexualizando-se e passando à esfera livre de conflitos do Ego. O segundo grande factor seria o princípio da sobrevivência através do conceito da adaptabilidade.

Esta perspectiva teórica terá influenciado alguns autores anglo-saxônicos, nomeadamente David Rapaport, para quem as Pulsões seriam os “primus mover” do sistema psíquico (RAPAPORT 1953/1967). Ele procurou elucidar se os Afectos seriam descargas pulsionais ou aumentos de tensão por inibição da descarga das Pulsões, o que implicava a análise de quais os factores que dificultariam tal descarga, os quais seriam pelo menos, três: 1º) Os limiares inatos que marcavam o ponto a partir do qual a descarga seria impostergável; 2º) A realidade, aqual podia impor condições (por exemplo, a ausência de objecto), assim a descarga não se poderia realizar; e 3º) 0 desenvolvimento de uma estrutura tripartida (Ego-Id-Superego) do Aparelho Mental, em que através do Ego levaria à demora da descarga. Toda esta proposta foi um esforço para conciliar as predisposições hereditárias, a função de descarga e a função sócio-comunicativa dos Afectos, descrevendo um processo em que os Afectos teriam constituintes inatos, consistindo em canais e limiares de descarga, os quais existiriam previamente à diferenciação do Ego e do Id.

Os Afectos estando inicialmente ao serviço do princípio do prazer, com o desenvolvimento psico-físico se iria fazer surgir uma nova capacidade para demorar a descarga, a chamada de domesticação das Pulsões, num processo paralelo à origem do Pensamento.

Para Edith Jacobson (1953), autora da primeira classificação completa dos Afectos, estes seriam resultado de um fenómeno de oscilação entre o incremento de tensão e sua descarga e ela dava igual importância aos Afectos agradáveis e aos desagradáveis numa perspectiva em que esta autora dava precedência, acima de tudo, a uma visão homeoestática da regulação afectiva.

Entretanto foi a partir das contribuições de Melanie Klein (PETOT, 1982) que terá começado a surgir um segundo modelo de funcionamento mental no qual se enfatizava o papel das relações de Objecto, mantendo-se ainda uma postura baseada nas proposições instintivas.

Entretanto R. Fairbain, H. Guntrip (1961) e M.Balint, do chamado de Grupo Britânico, introduziram inovações, tanto na teoria como na técnica psicanalíticas; mas foi Ronald Fairbain (1944/1972) quem propôs mais modificações à teoria pulsional de Freud ao não considerar que o conflito mental se possa reduzir a uma luta entre as Pulsões e as Defesas e ao acreditar que a base dos vínculos humanos está sim, nas Relações de Objecto e que as Pulsões são subsidiárias do Self e não fontes de energia e que a Agressão advém em consequência da frustração. Este autor não aceitava a ideia de uma Pulsão de Morte, como categoria independente e que a libido seria a procuradora de objectos, dando-lhes significado, não concordando com as ideias de tensão e de descarga, numa concepção que privilegiava o vínculo com a mãe, como objecto de amor, o qual humanizava e organizava a mente do bebé, conferindo-lhe uma emocionalidade. Para estes autores existiria sempre uma relação objectal que envolveria as emoções e aonde apareceriam as Pulsões, conceptualização que se pode estender com variações específicas a outros autores, tais como R. Spitz, J. Bowlby, D. Winnicott etc. privilegiando a um nível psicológico, a relação interpessoal, o vínculo afectivo, o contacto de pessoa a pessoa.

Na metapsicologia utilizada por Donald Winnicott (1947/1982), este livra-se também da Pulsão da Morte, considerando a Agressão como produto de uma falha ambiental e ele acaba por expor uma versão sobre as Relações de Objecto oposta à de Melanie Klein dado que enquanto ela estuda as fantasias libidinais e sádicas do bebé, partindo das Pulsões de Vida e de Morte e Donald Winnicott coloca em primeiro lugar, as qualidades reais da mãe (meio ambiente).

Todos os autores pós-kleinianos (W. Bion, D. Meltzer, H. Racker, R.H. Ectchegoyen, H. Rosenfeld etc.) aceitaram a existência de Pulsões destrutivas na Mente e relacionam-nas com ociúme, com a inveja, e com outros diferentes tipos de frustração, com o narcisismo, acentuando ainda mais a necessidade do Objecto: Wilfred Bion (1963) avançou com a idéia da função Continente - Conteúdo da Mãe, cujas principais finalidades seriam: 1) Para acalmar as angústias do bebé angústias essas ligadas ao sadismo e à Pulsão de Morte e 2) Para que ele possa introjectar esta capacidade a fim de tolerar e processar as suas emoções.

Recentemente outros autores avançaram com outras compreensões mais díspares sobre o funcionamento do Aparelho Mental, tal como, a visão de Heinz Khout (1977) em que desapareciam a teoria das pulsões e o complexo de Édipo, reduzindo-se muito o papel do inconsciente, ficando de fora, por exemplo, a pulsão de morte e a agressividade, posição esta, bastante próxima da posição de Otto Kernberg (1984).

Enquanto que autores, tais como: Schur (1964), Joffe & Sandler (1968) e Sandler (1972), os Afectos têm funções de adaptação, avançando com o ponto de vista homeoestático necessário para a preservação de um estado primário (afectivo), ponto de vista partilhado por André Green, talvez o autor psicanalítico contemporâneo que realizou a mais profunda e extensa reflexão sobre a génese, a dinâmica e as funções dos Afectos(GREEN,1973/1999) e cuja posição se desenvolveu em torno da conceptualização da função da adaptação da mente ao meio envolvente.

Podemos ainda referir certos os recentes trabalhos psicanalíticos, os quais que colocam o Afecto, no início da estruturação do Aparelho Psíquico, destronando o conteúdo ideacional, como factor causal de toda a Vida Mental (ANDRADE, 2003; e OSTOW, 2004), pois o Ego tem-se tornado cada vez mais, o agente central da modulação e da regulação afectiva, o qualserve a finalidade da adaptação à realidade, sendo os Afectos, uma fonte de experienciação para o Ego.

 

Como pensar os Afectos em termos Neuro-Psicanalíticos?

A investigação dos Afectos e dos Estados afectivos tem sido objecto de interesse recente por parte da investigação científica através de autores, tais como Joseph E. Ledoux (1996), Edward Rolls, (1999), Japp Panksepp (1998) ou António Damásio (1995, 2000, 2000a), os quais avançaram com algumas propostas inovadoras consubstanciadas nos seus diversos trabalhos. Eles consideram existirem bastantes evidências que permitem colocar os Afectos ou Estados Afectivos, como experiências subjectivas das Emoções e dos Sentimentos e que aqueles terão evoluído de um modo interligado com as dimensões da Consciência.

Os Afectos ou Estados Afectivos serão os mecanismos de regulação homeostática cerebral e fazem parte de um triângulo de controlos emocionais, designado por Sistema de Avaliação das Operações Mentais que consistem em funções de avaliação primária na excitação de variados processos límbicos,os quais controlam as respostas instintivas e emocionais e orientam uma grande variedade de processos de avaliação secundários de curto e de longo prazo, ambos relacionados com as capacidades cognitivas. Estes investigadores sugerem a existência a nível mais básico de dois mecanismos inicialmente indistinguíveis entre si: o mecanismo do Afecto e o mecanismo da Vigilância (“arousal”) em que a excitabilidade do Cérebrocomeça com um julgamento de valor (a Pulsão) e que seriam os níveis de excitação os que iriam determinar os níveis do Afecto. A cada Sistema de Avaliação envolvido haveria um circuito distinguível para cada Sistema Operativo Emocional ou Afecto “básico” (PANKSEPP, 1998), o qual estaria distribuído através de um neuro-eixo que inclui as áreas do Tronco Cerebral em conjugação com as áreas específicas do Sistema Límbico e que cada Sistema Operativo Emocional ou Afecto “básico” seria, essencialmente, um sistema de sinais que utilizaria uma conjugação complexa de neuro-transmissores que conduziria a informação sobre o julgamento do valor atribuído para o córtex e para os sistemas motóricos, orientando a Motivação, o Pensamento e o Comportamento.

Por seu lado, António Damásio (2000, 2003) descreveu um conceito de “imagem mental”, o qualnos parece ser bastante próximo do conceito de representação mental e ao que ele designou de “emoções de fundo” que nossurgem como os fenómenos próximos do conceito de Afecto.

Noutra linha de investigação, segundo a abordagem semiótica, o cérebro elaboraria conjuntos de interpretações sobre as percepções, de acordo, com certas categorias funcionais, em particular, de acordo, com a identidade, a localização e o valor da percepção a fim de processar os diferentes aspectos do Objecto. Nesta terceira categoria funcional, o valor ou a avaliação do Objecto, o Cérebro utilizaria o Sistema Afectivo de um modo simbólico.

Recentemente, David Olds (2003) apresentou uma tese neuro-psicanalítica na qual o Afecto estaria na base destes sistemas semióticos e avaliativos da Mente e cuja finalidade seria em dar uma indicação de valor de aproximação (prazer) ou de evitamento (desprazer) para as diversas funções de adaptação, de auto-protecção, de defesa de território do processamento mental. Neste modelo, a Pulsão seria como um sinal – consciente ou não – de informação, o qual iniciaria o processo afectivo na direcção da acção e o Afecto representaria o valor atribuído ao Objecto, em que esta atribuição seria sempre posterior e estaria condicionada com certa informação prévia, pois o Sistema Afectivo seria temporalmente posterior em relação aos outros dois sistemas: o da identificação e o da localização.

 

Assim como pensar os Afectos em termos Neuro-Psicanalíticos?

Estes novos entendimentos sobre os Afectos fornecidos por parte dos investigadores em neuro-ciências têm permitido aos autores psicanalíticos apresentarem novas reformulações, nomeadamente, por Mark Solms e Eduard Nersessian (1999, pp:5-6) para quem os Afectos “serão uma modalidade perceptiva estimulada internamente percepcionados como uma modalidade própria da Consciência, irredutível para as outras modalidades perceptivas”. As qualidades destas modalidades estariam calibradas em graus de prazer e de desprazer, de um modo distinto dos quais de outras modalidades perceptivas, tais como, a visão, a audição, paladar, olfacto, sensação proprioceptiva, etc., pois os Afectos diferiram num aspecto crucial, eles são as percepções que registam o estado interno do Sujeito, enquanto que as outras formas perceptivas reflectem aspectos do Mundo Externo e “mesmo se um afecto fosse desencadeado por algo que ocorresse no Mundo Externo, o que seria realmente percebido na modalidade afectiva, era a reacção do Sujeito em relação ao estímulo externo em questão, e não, o estímulo em si mesmo” (SOLMS & NERSESSIAN, 1999; pp:11-12), afirmado de um outro modo, a emoção sentida seria a percepção da resposta subjectiva àquele acontecimento e não à percepção do acontecimento, em si mesmo. Estes autores consubstanciam-se com o exemplo paradigmático apresentado por Freud (1926/1959) em “Inibição, Sintomas e Ansiedade”: “o acto do nascimento, o qual aparentemente desencadeava uma ansiedade no neo-nato, a qual não era devida à percepção de perigo objectivo para a sua vida, mas antes à percepção de um estado de impotência ou incapacidade total”(SOLMS & NERSESSIAN, 1999; pp:6). O que o Afecto registraria seria o significante pessoal (valor ou significado) para o Sujeito, sobre uma situação particular externa ou interna. Esta atribuição de valor seria calibrada em graus de prazer ou desprazer, de acordo com seguinte fórmula: quanto “mais prazer” igual a “mais provável a satisfação das minhas necessidades internas” e “mais desprazer” significaria “menos provável em satisfazê-las ou mais provável em as frustrar”.

Na distinção fundamental entre aspectos quantitativos e qualitativos da vida mental, os Afectos serão a parte qualitativa, as percepções das “oscilações de tensão das necessidades instintivas” tornadas conscientes (FREUD, 1940/1966, pp:198) e a dimensão quantitativa, pelo contrário, descreveria os aspectos não representacionais da Mente, isto é, os mecanismos que orientam o Impulso ou Pulsão, um estado de excitação central em resposta a um estímulo, que não inclui a resposta motora.

 

Conclusões:

Pelo que foi mencionado atrás, nós podemos afirmar resumidamente que os Afectos são percepções de uma qualidade neurodinâmica da autoconsciência (“consciousness”); que são irredutíveis para todas as outras modalidades preceptivas. Os Afectos são evocados por percepções emocionalmente significativas e são as percepções que registam o estado interno do Sujeito, enquanto que as outras formas perceptivas reflectem aspectos do Mundo Externo (SOLMS & NERSESSIAN, 1999) e o que o Afecto registra é o significante pessoal (valor ou significado) para o Sujeito, sobre uma situação particular externa ou interna; que os Afectos possuem atributos dimensionais de valência, de estimulação e de apresentação (OLDS, 2003). Eles têm padrões característicos de descargas, os quais fazem surgir sensações específicas do tipo “emoções de fundo”(DAMÁSIO, 2000; 2000a) e eles são entendidos como motivadores para a execução de desejos e de fantasias e encarados como determinantes independentes das fantasias e dos comportamentos.

Os estudos neuro-científicos e psicanalíticos mais recentes também apontam para a existência de um núcleo afectivo psico-biológico, inconsciente, a partir do qual emergem os Afectos e/ou Estados Afectivos (SHORE, 1994, 2003) e que os Afectos operam (quase) sempre no contexto de relações de Objecto, estando eles sempre presentes nos fenómenos transferenciais e/ou contratransferenciais, seja em termos do processo afectivo (identificação empática), seja em termos do processo ideacional (actividade interpretativa).

 

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Endereço para correspondência
E-mail: mjmmdavid@gmail.com

Recebido em:  02/05/2007
Aceito em: 05/11/2007

 

 

1 Médico Consultor em Psiquiatria do Hospital Miguel Bombarda - Grupanalista da Sociedade Portuguesa de Grupanálise. Lisboa, Portugal

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