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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo v.5 n.1 São Paulo jun. 2008

 

ARTIGOS

 

Manifestações em psicoterapia analítica de grupo, como funcionamentos mentais primitivos que não evoluíram para representação simbólica

 

Manifestations in psychoanalytical group therapy as archeological registers of proto-mental configurations on their way to psychic inscription

 

Manifestaciones en psicoterapia analítica de grupo, como funcionamientos mentales primitivos que no evolucionaron para representación simbólica

 

 

Odilon de Mello Franco Filho1

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor propõe que certas manifestações em Psicoterapia Analítica de Grupo não parecem relacionadas, nem à história pessoal que seus membros relatam, nem à história do grupo a que eles pertencem. A hipótese levantada é que tais manifestações correspondem a vestígios de condições muito primitivas, pré-natais, pré-verbais; portanto, que não se pode dizer que sejam inconscientes, porque nem sequer chegaram a se constituir como tal. Permanecem como registros de uma área indiferenciada, assim chamada protomental. Não estando disponíveis para representação, passam a integrar o espaço grupal, manifestando-se mediante actings. Por seu caráter repetitivo, podem constituir bloqueio ao desenvolvimento grupal e à sua passagem para Grupo de Trabalho. Integrando-se ao plano da transferência, essas manifestações têm possibilidade de serem detectadas e transformadas em elementos psíquicos por meio da interpretação. Essa “transcrição psíquica” envolve problemas que serão discutidos. O texto fornece uma ilustração clínica desse processo.

Palavras-chave: Psicoterapia analítica de grupo, Funcionamento mental, Representação simbólica.


ABSTRACT

The author suggests that certain manifestations in Group Psychoanalytical Therapy that, assume a repetitive and blocking characteristic in the evolution of the work, are vestiges of proto- mental traumatic situations lived by the group. One cannot say that these situations are unconscious because they were never constituted as such. They were not available for representation. The same way as the Beta Elements (Bion), they integrate the group space, manifesting themselves through actings. When they integrate the transfer level, they can be detected and transformed into psychic elements through interpretation. The psychic inscription will allow the passage of the Basic Assumption Group to the Work Group. Some clinical illustrations of this process will be presented.

Keywords: Psychoanalytical group therapy, Proto-mental configurations, Psycho inscription.


RESUMEN

El autor propone que algunas manifestaciones en Psicoterapia Analítica de Grupo no parezcan relacionadas, ni en la historia personal que sus miembros relatan, ni en la del grupo al que pertenecen. La hipótesis levantada es que tales manifestaciones corresponden a los vestigios de condiciones muy primitivas, pre-natales, pre-verbales, por lo tanto, no se puede decir que sean inconscientes, ya que no llegan a constituirse como tales. Permanecen como registros de un área indiferente, llamada protomental. No están disponibles para representación, pasan a integrar el espacio grupal, manifestándose mediante actuaciones. Por su carácter repetitivo, pueden bloquear el desarrollo grupal y su pase para el Grupo de Trabajo. Integrándose al plan de transferencia, dichas manifestaciones tienen la posibilidad de que sean detectadas y transformadas en elementos psíquicos por medio de la interpretación. Esa "inscripción psíquica", envuelve problemas que serán discutidos. El texto nos proporciona una ilustración clínica de dicho proceso.

Palabras clave: Psicoterapia analítica de grupo, Funcionamientos mentales, Representación simbólica.


 

 

Objetivo e Considerações Iniciais

Como psicanalista que sou, minha atividade com grupos utiliza o referencial psicanalítico e é, dentro desse referencial, que desenvolvo as considerações que se seguem.

O campo reflexivo deste trabalho abarca alguns fenômenos observados em Psicoterapia Analítica de Grupo (PAG) que não encontram compreensão satisfatória mediante teorias que os referem a modelos edipianos ou de interação familiar, em senso genérico.

Esses fenômenos, aparentemente, não parecem ser contidos na descrição de algum dos conhecidos Pressupostos Básicos, de Bion (Dependência, Luta e Fuga e Acasalamento).

Meu percurso psicanalítico com grupos têm me apresentado certas situações que emergem espontaneamente, nas sessões e que não me parecem relacionadas, nem à história individual que seus membros relatam, nem à história que eles viveram, desde seu início como grupo. Algumas dessas situações não possuem, em aparência, um conteúdo dramático, nem traumático. São referências dispersas, intervenções verbais corriqueiras, chistes, algumas relações diretas entre os participantes, para as quais eu não encontrava um denominador comum que a elas dessa inteligibilidade do ponto de vista grupal. Como já disse, o apelo a explicações nas quais eu me colocasse como líder, pai, ou mãe, não produziam efeito e nem a mim mesmo satisfaziam. Por outro lado, sentia que, para podermos caminhar, essas situações necessitavam de uma transcrição verbal ainda não disponível.

Foi quando comecei a conjeturar que, nessas situações, o grupo não estava manifestando resistências para tornar consciente o material que se articulava mediante actings in. Podia ser, pensei eu, que a matriz daquelas experiências não era passível de inscrição simbólica, porque ela ainda nem sequer chegara a ter inscrição psíquica. Em outras palavras, eu estaria lidando com um material que não poderia ser “fisgado” do inconsciente, porque ainda não possuía as qualidades do inconsciente. De onde viria, então, esse material?

 

Uma vinheta clínica

A esta altura, creio ser necessário ilustrar o que estou dizendo, com algum material clínico. Retomarei, posteriormente, a reflexão teórica que interrompi.

Não farei um relato pormenorizado da sessão. Darei menção apenas aos dados essenciais que me permitam ilustrar a questão formulada acima.

Com exceção de dois membros, os componentes chegam na hora marcada e tomam assento nos mesmos lugares de sempre.

Mariana toma a palavra e conta um episódio de trabalho que a levou a questionar se valia a pena, ou não, reclamar alguns direitos que julgava ter em relação a seu nível funcional. Antônio sorri e diz que era exatamente sobre isso que gostaria de falar nessa sessão, em relação a si mesmo. E discorre algo a respeito. Fernando, como que, inspirado pelo que ouviu, diz que lhe ocorre fazer uma associação a partir do que se falava, e passa a relatar um antigo episódio familiar que o marcou pela injustiça de que foi alvo pelos irmãos.

Comentário: Independente do conteúdo dos relatos, algumas questões chamaram minha atenção. Em primeiro lugar, as pessoas mantêm a posse dos mesmos lugares de sempre, contribuindo para formar uma configuração física imutável do grupo. Em segundo lugar, chamou a atenção ter se constituído um relato “encadeado” por conta dos três primeiros membros que falaram. Um deles, até assinalou essa “coincidência” com a justificativa de que estava fazendo uma “associação de idéias” com os demais. Forma-se, pois, uma “corrente” temática que ninguém ousa quebrar pela introdução de um assunto novo. A homogeneidade do conjunto fica assim constituída. Interessante é que, se atentarmos agora para o conteúdo da fala de Fernando, sua queixa em relação à família centra-se no fato de ser tratado como “diferente” dos irmãos. Parece que, nesse momento, nada que seja “diferente” no grupo, pode ser aceito.

A essa altura, entra Dácio, atrasado. Os demais membros o cumprimentam e todos mencionam que hoje, diferente do habitual, ele está vestido com terno. E todos conjeturam: finalmente conseguiu um novo emprego? Dácio disse que ainda não, estava em negociações. Sua grande dúvida era que, se aceitasse o emprego, teria que se mudar para o Exterior. E isso significaria ter de deixar o grupo, coisa difícil de conceber. Acrescentou que a perda que imaginava não era apenas em relação à terapia, mas em relação a se afastar das pessoas do grupo (salienta essa última palavra), que muito estimava.

Entra, atrasado, Lúcio, mais um membro do grupo. Todos olham para ele, surpresos, mas o motivo não era seu atraso. Era o fato de, numa noite fria como aquela, ele estar com roupa de verão, sem nenhum agasalho. Comentam, jocosamente, sua diferença em relação aos demais, todos bem agasalhados.

Luísa fala pela primeira vez na sessão e diz de sua raiva por ter se perdido, a caminho de meu consultório. Disse:

- Tenho raiva do “Centrão” desta cidade, muito confuso. Na cidade onde eu morava (com os pais), tudo era mais simples, sem complicações.

A participante Helena, que acompanhava silenciosa todas as situações, resolve falar e sua fala não tem aquela aparência de “associação” que Fernando preconizou no início. Relata um pequeno conflito doméstico que tivera na véspera, mas o faz de uma maneira confusa. Os que a ouvem assinalam que não entenderam bem o que ela queria dizer. Foi o suficiente para que Helena se retraísse novamente, com clara manifestação de vergonha, como se fosse uma nota dissonante no conjunto.

Um membro observa que Ernesto, sempre assíduo, não veio hoje. Todos lamentam sua ausência.

Comentário: Chegando de terno, Dácio quebra uma pré-suposição de que o normal seria vir sempre vestido do mesmo jeito e, assim, “conformar-ser” com a imagem atribuída a ele pelo grupo. A “homogeneidade” da composição grupal fica ameaçada por esse fato e também pela possibilidade de Dácio deixar o grupo. Dácio afirma que o vínculo com as pessoas do grupo lhe é muito importante. Entendo também que ele está mencionando que tem noção dessa ameaça de “quebrar” a imagem do grupo como um todo. Com a entrada de Lúcio, em traje de verão, parece que se transfere, para o plano do concreto, a “dissonância” que todos temiam. Por que ele está trajado tão “diferente” dos demais? Transgressão a um interdito de individualização?

O comentário raivoso de Luísa também fala do desconforto perante uma cidade “diferente” daquela em que vivera com os pais. Podemos pensar que, para ela, “perder-se no Centrão” seria o equivalente a perder-se naquilo que representa, no plano urbanístico, o espaço da heterogeneidade, da mistura social e cultural, em oposição à “homogeneidade”.

Finalmente, a ausência sentida de Ernesto funciona como um golpe às últimas expectativas de que o grupo seja imune a qualquer divisão. Enfim, a “associação” mencionada e proposta, no início, por Fernando, como emblema da participação grupal, vai desmoronando.

Minha interpretação assinalou apenas alguns desses aspectos que comentei. Referi-me que sentia a existência de uma fantasia de que, se todos se portassem de maneira uniforme e coerente, todos progrediriam na mesma direção e com os mesmos resultados finais (homogêneos). Por isso era importante para eles preservarem a imagem do grupo como totalidade em movimento. E fiz um questionamento provocador: “e se alguém vier a sair do grupo (como, eventualmente, no caso de Dácio) por motivos individuais? Ou por ter chegado a seu limite pessoal, como um dia insinuou outro participante?” Essa interrogação minha provocou em todos, evidente desconforto. Um deles externou a sensação de que eu estaria querendo “dar alta”, inesperadamente, a alguém. Instalou-se um clima de perseguição geral... Minha menção à individualidade presente no grupo fez desencadear o mesmo temor demonstrado por Luísa ao atravessar o “Centrão”: o temor de perder os vínculos com um espaço mental conhecido que os continha e os encerrava numa atmosfera sem descontinuidades. O equivalente à perda dessa proteção seria a loucura.

 

Considerações Teórico-Clínicas

Tomo, como ponto de partida dessas considerações, a conjetura de Bion quanto à coexistência simultânea na personalidade, de diferentes modos de funcionamento mental, alguns deles representantes de configurações embrionárias que sobrevivem sem registro simbólico, mas cujas manifestações podem se notar no nível corporal, ou em manifestações grupais.

Bion descreve um funcionamento protomental, no qual o físico e psíquico permanecem em estado indiferenciado. Esse funcionamento constitui uma matriz na qual se originam os estados emocionais característicos dos Supostos Básicos de Grupo e as enfermidades psicossomáticas. Tal matriz cria registros que permanecem como vestígios arqueológicos de fases primitivas do desenvolvimento. São proto-emoções que permanecem cruas, não processadas psiquicamente. Não se pode dizer que sejam inconscientes, porque nem atingiram esse nível psicológico. São registros carentes de inscrição psíquica.

Na vida pós-natal, essas proto-emoções podem permanecer “enquistadas”, ou sofrerem um deslizamento para a área psíquica. Nesse caso, manifestam-se por meio de um funcionamento embrionário no qual não consta ainda o registro de diferenciação entre corpo-mente, dentro-fora, todo-parte, sucessão temporal. Em sua fase mais primitiva, a estrutura assim criada poderia ter como modelo a fase embrionária de mórula.

Levanto aqui, baseado no próprio Bion, a hipótese que determinadas manifestações grupais contêm, em seu bojo, formas desse funcionamento protomental mencionado, que até antecedem aquelas três configurações que esse autor descreve como próprias dos Supostos Básicos: Dependência, Luta e Fuga, Acasalamento. As manifestações que descrevo, nesta comunicação, só podem ser chamadas de “grupais”, porque adquirem mais visibilidade, quando as pessoas estão reunidas em grupo, mas, em sua gênese, não dependem do grupo. Não configuram o que chamamos coloquialmente de “grupo”, porque carecem de diferenciação na estrutura. Empregando um modelo sociológico, lembram massa e não grupo. Nessa condição, a diferenciação sexual não tem ainda lugar; a diferenciação soma e psique permanece indefinida. Homogeneidade pode ser o termo que defina precariamente esse estado.

Numa situação terapêutica, se esse grupo primitivo não for detectado e apontado mediante a interpretação, ele continuará se manifestando pelos actings. A função da interpretação é dar, a esses registros, uma inscrição psíquica, por meio de simbolização da qual estão carentes. A palavra interpretativa parece, pois, ser a única forma de recurso disponível para se tentar obter evolução desses estados embrionários.

Na sessão descrita, há uma “insistência” das pessoas por reproduzir uma percepção distorcida (alucinada) da realidade das diferenças individuais. Toda manifestação de individualidade é recusada como traição ao grupo. O corpo massificado por vestes parecidas é o referencial para a imagem grupal.

A ausência de um membro à sessão (Ernesto), ou mesmo a saída eventual de outro (Dácio), são acontecimentos traumáticos na medida em que ferem a imagem do grupo como um todo e eterno. A sucessão temporal é negada. Quando menciono algo que denuncia a construção de uma eternidade grupal, torno-me um perseguidor.

O esquema de indiferenciação age aqui como defesa.  Defesa contra quê? Seria o que, em termos de Bion, configuraria uma situação de Mudança Catastrófica. Esse perigo é mais claramente expresso por Luísa, sob a forma de odiar os obstáculos que dificultam chegar ao abrigo fusional do grupo, substituto do espaço conhecido em que vivia com os pais.

 

Considerações Finais

Os aspectos discutidos não esgotam a compreensão do material apresentado. Este poderia sofrer interpretações diversas das mencionadas; No entanto, creio que intervenções que focalizassem interações menos primitivas contribuiriam para mascarar o funcionamento mencionado. E o grupo não poderia evoluir, preso que ficaria nessa repetição de registros arqueológicos embrionários.

Considero o campo grupal como conseqüência parcial desses aspectos protomentais que tentam expressão na teia dinâmica que se estabelece entre seus membros. A Grupalidade é uma função que tem, como fatores, esses aspectos protomentais que sobrevivem dentro de cada indivíduo. Assim, o Grupo não cria a Grupalidade. Ocorre o inverso: o grupo é a decorrência fenomenológica, a exteriorização de uma categoria mental grupal que nos habita individualmente.

A Grupalidade, assim entendida, “conta” a história individual numa fase em que nem sequer havia uma mente diferenciada para organizar sensações em relatos. Torná-las psiquicamente articuladas, simbolizadas e “dizíveis” é a função da interpretação analítica. No dizer de Bion, a interpretação requerida para esses fatos deverá ser tal, que possa atravessar a cesura entre soma e psique e ser “penetrante” nas duas direções. Ou seja: ela deverá ser capaz de fazer “dialogar” tanto o soma com a psique, quanto a psique com o soma. A linguagem empregada pelo analista será sempre imprecisa e insatisfatória para expressar o que ocorre nessa cesura entre o funcionamento protomental e o funcionamento mental pós-natal. Essa é nossa tarefa e nosso desafio.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência
E-mail: odilon@sbpsp.org.br

Recebido em: 10.12.2007
Aceito em: 10.01.2008

 

 

1 Membro efetivo e Analista Didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - Brasil

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