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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo v.5 n.2 São Paulo dez. 2008

 

ARTIGOS

 

Aprender a viver é o viver mesmo: o aprendizado a partir do outro em um grupo de pais candidatos à adoção

 

Learn to live is the just life: the learning through other one in the group of parents pretendants to adoption

 

Aprender vivir es la vida justa: el aprendizaje con otro en el grupo de los padres candidatos a la adopción

 

 

Fabio Scorsolini-Comin1; Manoel Antônio dos Santos2

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste estudo é analisar os fatores terapêuticos de aprendizado presentes em um grupo de pais pretendentes à adoção, buscando-se compreender como tais fatores auxiliam no seu desenvolvimento. A intervenção grupal teve duração de nove encontros, dos quais foram analisadas as transcrições literais da segunda e oitava sessões. Destaca-se que o grupo possibilitou a emergência do aprendizado a partir da troca de experiências entre seus participantes e também do resgate das contribuições de pessoas externas ao grupo, mas que se tornaram presentes a partir das diferentes falas. Conclui-se que o grupo funcionou não apenas como um agente de troca de informações entre pais que vivenciavam uma experiência semelhante – a espera do filho; como também um espaço de diálogo no qual as contribuições e percepções puderam ser negociadas, rebatidas e co-construídas, reafirmando a importância da troca e do compartilhamento de experiências, desejos e possibilidades a partir do outro na realização de um grupo de apoio.

Palavras-chave: Adoção, Grupo de apoio para adotantes, Fatores terapêuticos, Aprendizado.


ABSTRACT

The purpose of this paper is analyze the therapeutics factors of learning in a group of parents pretendants to adoption, in order to understand how this factors help in the development of support group. The group intervention had duration of nine sessions, of which it analyzed the literal transcriptions of second and of eighth. It is distinguished that the group made possible the emergency of the learning from sharing of experiences of the participants and the rescue of the contributions of external people that they had been presentificated from the different speeches. The group functioned not only as facilitating of exchange of information between parents who lived deeply a similar experience – the wait of the son, as well as a space in which the contributions and perceptions could also have been negotiated, have been struck and co-constructed, reaffirming the importance of the exchange and the sharing of experiences, desires and possibilities from the other in the accomplishment of a support group.

Keywords: Adoption, Adopters support group, Therapeutics factors, Learning.


RESUMEN

El objetivo de este estudio es analizar los factores terapéuticos de aprendizado presentes en un grupo de padres pretendientes a la adopción, buscando la comprensión de como estos factores ayudan en el desarrollo del grupo. La intervención grupal tuvo duración de nueve sesiones, de las cuales se analizó las transcripciones literales de la segunda y de la octava sesiones. Agregase que el grupo posibilitó la emergencia del aprendizado a partir del compartir de experiencias de los participantes y también del rescate de las contribuciones de personas de fuera del grupo, mas que fueron presentificadas a partir de las distintas charlas. La conclusión es que el grupo trabajó no solamente como una posibilidad de intercambio de informaciones entre los padres que vivenciaban una experiencia similar – la espera del hijo, como también como un espacio en el cual las contribuciones e percepciones pudieron ser negociadas, rebatidas y co-construyedas, reafirmando la importancia del intercambio y del compartir de experiencias, deseos y posibilidades a partir del otro en la realización de un grupo de apoyo.

Palabras clave: Adopción, Grupo de apoyo para padres adoptivos, Factores terapéuticos, Aprendizado.


 

 

1. Introdução

1.1. Adoção

A adoção constitui uma maneira legal de organizar outras formas de relações de filiação (BRAUER, 1993) e se faz presente no cotidiano das sociedades desde os primórdios da humanidade. No entanto, segundo Scorsolini-Comin, Amato & Santos (2006), este tema ainda é permeado na atualidade por mitos, estigmas e omissões, mesmo após tantas modificações de ordem ética, política, social, jurídica, de costumes e comportamentos.

Há inúmeros fatores que levam uma pessoa a querer adotar, mas, de acordo com alguns estudos nacionais (WEBER, 1998, 1999, 2001; EBRAHIN, 2001; REPPOLD; HUTZ, 2003), o motivo prevalente é a infertilidade.

Segundo Maldonado (2001), a adoção muitas vezes é encarada como um encontro de dores – o sofrimento dos pais, que não podem gerar e o desamparo da criança, que não pode ser amparada pelos pais biológicos. Outras vezes a adoção é vista como um evento carregado de incertezas quanto ao que virá pela frente, uma aventura temerária de rumos imprevisíveis.

Conhecer as reais necessidades psicológicas que levam pais a constituírem família via adoção tem sido considerado um aspecto fundamental para proporcionar maior grau de satisfação das famílias e da criança adotada. Muito se tem discutido a respeito dos requisitos parentais necessários para prover a satisfação – embora nunca completa – das necessidades da criança (WEBER, 1997), de modo a contemplar o seu direito ao convívio familiar, garantido na realidade brasileira pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

O ato de adotar é entremeado por uma série de significados culturalmente construídos, que vão produzir configurações e desfechos diversificados, dependendo das distintas formas de se lidar com cada situação. Do ponto de vista psicológico, inúmeras fantasias e preconceitos permeiam a trajetória do processo de adoção, como sentimentos de culpa, fantasias de punição, temor da desaprovação e crítica social, entre outros (WEBER; CORNÉLIO; GAGNO & SILVA, 1995; MINGORANCE, 2005), o que indica a necessidade de investigar detidamente os significados atribuídos a essa experiência por parte de pais que adotaram ou que pretendem adotar.

1.2. Grupo e Fatores Terapêuticos

Segundo Bion (1961), “os problemas emocionais estão associados ao fato de que o indivíduo humano é um animal político e não pode encontrar satisfação fora de um grupo, assim como não pode satisfazer qualquer impulso emocional sem que se expresse o componente social desse impulso”. Dado que as relações entre o indivíduo e o grupo são indissociáveis e complementares, “o problema é a resolução do conflito entre narcisismo e socialismo”.

Essas considerações põem em relevo a importância de produzir conhecimento acerca do modo como as pessoas interagem e convivem em diversos grupos sociais. Especificamente, os grupos terapêuticos se diferenciam dos demais tipos de configurações vinculares – por exemplo, do grupo familiar – na medida em que buscam reproduzir as características sociais, políticas e a dinâmica psicológica dos grandes grupos. Nessa vertente, os grupos com finalidade psicoterapêutica não são apenas um aglomerado de pessoas que se reúnem com determinada finalidade comum, mas um conjunto de pessoas vinculadas entre si. O que implica a existência de uma ligação específica entre os membros, a qual engloba identificação mútua, uma tarefa em comum a ser realizada e a influência de fantasias inconscientes, culminando em objetivos específicos que buscam propiciar reorganizações internas e transformações duradouras. Assim, os grupos terapêuticos constituem um dispositivo com leis e mecanismos próprios de ação.

No presente estudo pretende-se realçar as potencialidades do trabalho com grupos que acontecem no contexto comunitário, cuja relevância tem sido valorizada de forma crescente nos últimos tempos, em função das novas demandas que emergiram em decorrência das transformações sociais que caracterizam a vida contemporânea.

Na era globalizada, marcada pelas novas modalidades de vincularidade propiciadas pela revolução tecnológica, as tramas vinculares que se formam no contexto dos novos arranjos familiares oferecem um solo fértil de pesquisa e intervenção para os grupalistas. Algumas dessas possibilidades têm sido exaustivamente descritas e investigadas pela literatura, como pode ser visto na excelente coletânea de trabalhos organizada por Fernandes, Svartman e Fernandes (2003). As repercussões dos avanços da medicina (fertilização in vitro, clonagem) sobre a concepção da maternidade e paternidade levam-nos a questionar sobre seus efeitos na constituição da subjetividade. E, mais recentemente, questões candentes relacionadas aos arranjos familiares recorrentes na contemporaneidade, como as famílias recompostas, monoparentalidade, adoção (SCORSOLINI-COMIN, AMATO & SANTOS, 2006), homoafetividade e homoparentalidade (SANTOS, BROCHADO JÚNIOR & MOSCHETA, 2007), têm sido exploradas pelo vértice dos grupos.

Caminhando nessa vertente, torna-se valioso resgatar o marco teórico-conceitual dos fatores terapêuticos, que têm se mostrado extremamente útil na compreensão dos grupos aplicados nos mais diversos contextos. Bechelli & Santos (2001) definem os fatores terapêuticos como sendo um conjunto de elementos da terapia de grupo responsáveis por auxiliar na melhoria de condição emocional dos pacientes e que podem ser decorrentes das ações do terapeuta, dos membros do grupo ou mesmo do paciente. Os fatores terapêuticos seriam mediadores de mudança, ou seja, de transformação psíquica, sendo elementos comuns a toda terapia de grupo segundo Yalom & Vinogradov (1992). Há que se destacar, no entanto, que isso não implica que toda terapia de grupo produz necessariamente mudança ou que a mudança produzida seja sempre na direção pretendida.

Seguindo as orientações propostas por Mackenzie (1997), os fatores terapêuticos podem ser agrupados em quatro grandes grupos, a saber: fatores de apoio (universalidade, instilação de esperança, aceitação, altruísmo); fatores de auto-revelação (auto-revelação e catarse); fatores de trabalho psicológico (aprendizado interpessoal e insight) e fatores de aprendizado (aconselhamento e aprendizado por intermédio do outro).

Seguindo tal classificação, este trabalho abordará os fatores terapêuticos de aprendizado em um grupo de casais pretendentes à adoção.

1.3. Fatores Terapêuticos de Aprendizado

O aprendizado por intermédio do outro é um fator intimamente vinculado à psicoterapia de grupo. De acordo com Bechelli & Santos (2001), o mecanismo de identificação é o principal aspecto que opera quando se fala no aprendizado por intermédio do outro. O paciente aprende sobre a sua pessoa observando e analisando um conjunto de problemas ou comportamentos semelhantes aos seus. Isso é mais facilmente reconhecido como o “fenômeno do espelho”, segundo o qual seria mais fácil ao participante ver nos outros, aquilo que, devidos à ação dos mecanismos de defesa, não consegue reconhecer em si mesmo. No presente estudo não iremos nos deter nos processos de identificação, que concernem a fenômenos mentais mais complexos e diretamente articulados à dimensão inconsciente, o que extrapola o escopo do presente trabalho.

Para Guanaes (1999), um fator terapêutico equivalente a esse seria a “aprendizagem vicária”, que se daria quando o paciente refere que vivenciou algo importante para si mesmo por meio da observação de outros membros do grupo ou do terapeuta, o que parece estar ligado aos processos de identificação com a experiência terapêutica de outro paciente ou ao reconhecimento de modelos de comportamento do terapeuta ou de outros componentes do grupo que se deseja imitar. O inverso também é possível, na medida em que podem ser percebidas algumas atitudes ou comportamentos considerados negativos ou indesejáveis em outros integrantes, os quais não se desejam reproduzir na situação terapêutica ou adotar na vida cotidiana.

Já o fator aconselhamento é ligado, primordialmente, ao contexto da psicoterapia individual, do qual ele deriva, podendo ser reproduzido, com as devidas distinções, na interação grupal. O aconselhamento direto pelos membros de um grupo ocorre em diversos grupos terapêuticos, embora não se possa garantir que em todo grupo terapêutico haja aconselhamento direto.

1.4. Objetivos

Tendo em vista essas premissas, o objetivo deste estudo é analisar os fatores terapêuticos de aprendizado presentes em um grupo de pais pretendentes à adoção, buscando-se compreender como tais fatores auxiliam no seu desenvolvimento.

 

2. Método

2.1. Participantes:

O Grupo de Orientação Psicológica para Adotantes foi realizado no período de outubro a dezembro de 2002. Foi composto por 11 pessoas adultas (cinco casais e uma mulher solteira) que aguardavam pela adoção de uma criança no Cadastro do Setor de Serviço Social e Psicologia do Fórum de Ribeirão Preto, Estado de São Paulo.

2.2. Local e contexto:

Os encontros foram realizados em uma sala de aula cedida por uma escola privada situada na região central da cidade de Ribeirão Preto-SP.

2.3. Procedimento

O grupo teve como objetivo fornecer orientação psicológica a pessoas que se candidataram à adoção de uma criança e também contribuir com informações sobre os trâmites legais desse processo. A intervenção foi implementada por meio de encontros semanais, com duração de uma hora e meia cada, tendo duração limitada a nove encontros, que foram antecedidos por um encontro preliminar no qual foi apresentada e discutida a proposta de trabalho.

A extensão limitada da intervenção foi motivada pela proposta de promover reflexões a respeito dos principais temas implicados nas vivências do processo de adoção. Esses temas – tais como: motivação para adotar, o impacto sobre a rede familiar, o preparo para a chegada da criança, adoção tardia e inter-racial, entre outros – foram levantados em estudos anteriores desenvolvidos pelo Grupo de Apoio Integral à Adoção (GAIA-USP) (Santos & Pizeta, 1999).

A equipe de coordenação do grupo foi composta por alunas da graduação em Psicologia de uma universidade pública e por duas profissionais, técnicas do Setor de Serviço Social e Psicologia do Fórum, sob supervisão de um especialista em psicoterapia de casal e família.

 

3. Resultados: apresentação e discussão

A análise dos resultados circunscreveu-se às falas que se enquadravam nas categorias convergentes: “aprendizado por intermédio do outro” e “aconselhamento”.

3.1. Aprendizado por intermédio do outro

Na segunda sessão esse fator terapêutico despontou em vários momentos. Em um deles o participante M. relata que titubeou ao vir para o grupo, mas que se lembrou de que, nesse espaço, ele podia aprender com os demais:

M: (...) Aqui a gente sempre está aprendendo alguma coisa, né?

O mesmo participante (M), no final da segunda sessão, trouxe uma percepção de que estar com pessoas diferentes pode proporcionar diferentes aprendizados:

M: Eu acho que, a cada dia, a gente está aprendendo mais coisas, mais conhecimento... Por exemplo, o que elas falaram [profissionais do Fórum], esclareceu bastante.

Esse aprendizado por intermédio do outro é potencializado, em outra situação, vivenciada já na oitava sessão, quando outro participante (L.) comenta que aprendeu bastante no grupo, o que o fez, inclusive, mudar a sua perspectiva quanto à adoção tardia, depois de ouvir as considerações de um casal. Esse casal, que havia adotado duas crianças simultaneamente – dois irmãos – com idades acima de dois anos, havia sido introduzido pelos coordenadores com o intuito de provocar o debate sobre formas menos tradicionais de adoção.

A fala de L. revela que esse objetivo foi alcançado, pois o testemunho do casal contribuiu para desmistificar alguns preconceitos e estigmas construídos em torno da temática, que acabam funcionando muitas vezes como verdadeiros “pré-conceitos” que interferem na apreensão da experiência nova. Os significados emocionais que suscitavam rejeição da opção pela adoção tardia puderam ser desvelados, como o sentimento de que só conseguiriam se realizar se pudessem desempenhar os cuidados básicos com uma criança recém-nascida e se tivessem oportunidade de incutir seus valores desde o início do desenvolvimento infantil, “lapidando [a personalidade do bebê] do jeito que se quer”. Isso fica evidenciado no seguinte trecho da oitava sessão:

L: É, assim... Mudou um pouquinho a conversa, né? Porque a gente tava entendendo, assim, novinho; queria pegar bem novinho porque dava menos trabalho, não sei... Aquela preocupação de não dar conta, de querer educar do nosso jeito, de não pegar maior... Mas a conversa que a gente teve com eles passou segurança para a gente, que você pode pegar numa idade mais avançada que você consegue lapidar ele do jeito que você quer.

A rotação de perspectiva, operada a partir do olhar e da voz do outro, pode ser contemplada ainda em outros segmentos da sessão, que mostra uma mudança de percepção/opinião quanto à possibilidade de adoção de crianças mais velhas. Desse modo, podemos pontuar certa tendência à mudança, ou mesmo de desconstrução de um mito, a partir da experiência emocional do grupo e das trocas ali possibilitadas.

Segundo Bion (1970, p. 61|), “a controvérsia é o ‘ponto crescente’ de onde surge o desenvolvimento, mas este precisa ser uma confrontação genuína e não um impotente bate-boca entre oponentes cujas diferenças de visão nunca se encontram”. A fala de uma participante a esse respeito, enunciada em dois momentos distintos, exemplifica claramente o fator terapêutico aprendizado por intermédio do outro:

I: Então, eu achei bem interessante isso: eles [o casal que deu o depoimento] quebram o rótulo que a gente fazia da criança maiorzinha ou, pelo menos, que eu fazia da criança maior.

I: Então, aí... Eu achei, assim, em minha opinião, agora eu não sei... A gente tava assim: “Ai, meu Deus, nós vamos pegar uma criança maior? Já vem com aquelas manias, você não consegue tirar...”. Mas, agora eu acho que não, né? Pelo assunto que foi esclarecido aqui, pelo o que eles falaram, acho que você tem que conversar.

3.2. Aconselhamento

O aconselhamento, ou a troca de informações ou mesmo orientação, pôde ser vislumbrado na oitava sessão, também como efeito da participação do referido casal na sessão anterior, que acabou contribuindo para modificar alguns pensamentos e idéias prontas dos participantes do grupo acerca da adoção. Aqui, o aconselhamento surge no sentido da aceitação de uma sugestão a respeito da idade com que as crianças podem ser adotadas. Desse modo, o trecho a seguir é bastante elucidativo do efeito que isso desencadeou em um dos participantes:

I: Eu acho que eles vieram mostrar que as crianças que a gente imagina que tem um monte de mania, que é isso, que é aquilo... Na verdade, que o que é que elas têm é carência. (...) Então, eu achei bem interessante isso: eles quebram o rótulo que a gente fazia da criança maiorzinha ou, pelo menos, eu fazia da criança maior. (...) Tanto que a gente pensou, conversou a respeito de mudar a idade, de mudar para uma idade maior.

Na seqüência dessa fala, L. relata que mudara de idéia sobre a adoção tardia por influência da troca de experiências proporcionada pela vinda do casal na reunião anterior. Aqui, o fator aconselhamento surge no sentido de que o participante comenta sobre a orientação que recebeu de outrem, que o fez mudar de opinião, ampliando sua visão.

L: Então, aí... eu achei, assim, na minha opinião, agora eu não sei... A gente tava assim: “Ai, meu Deus, nós vamos pegar uma criança maior? Já vem com aquelas manias, você não consegue tirar...” Mas agora eu acho que não, né? Pelo assunto que foi esclarecido aqui, pelo o que eles falaram, acho que você tem que conversar.

Para Bion, o pensamento é sempre mutável porque as formulações não correspondem jamais à verdade dos fatos. Nossas idéias a respeito das coisas não se confundem com as próprias coisas. Assim, as interpretações que fazemos esclarecerem algum aspecto da realidade, mas correspondem sempre a verdades parciais. As alterações promovidas pelas “idéias novas” fomentariam o que Bion (1965) denominou de mudança catastrófica, que incidem sobre a estruturação do campo no qual essa mudança se manifesta. A idéia nova seria um conteúdo do grupo e o grupo, por sua vez, seria o continente dessa idéia nova.

A mudança de percepção em relação à adoção tardia é considerada importante pela equipe técnica do Fórum, uma vez que a maioria das pessoas cadastradas, ao traçarem o perfil da criança “ideal”, indicam como características desejadas a pouca idade (alguns meses de vida, no máximo), além da pele branca e da ausência de doenças infecto-contagiosas ou de anomalias congênitas.

Esse perfil, bastante seletivo, restringe a possibilidade de inserção da maioria das crianças disponíveis atualmente nos abrigos para adoção. Tais crianças dificilmente serão aceitas, a menos que a mentalidade reinante em nossa cultura se altere drasticamente, contemplando suas necessidades de um lar e o direito à convivência familiar. Além disso, o perfil desejado pela maioria dos candidatos à adoção no contexto brasileiro pode ser um fator dificultador da satisfação das necessidades dos próprios adotantes, na medida em que os expõe à frustração de uma longa espera até que possam gratificar seu desejo de parentalidade.

 

4. Conclusão

O estudo apresenta os resultados obtidos com a implementação de uma intervenção em grupo para pessoas cadastradas no Fórum e que aguardavam na “fila da adoção”. A análise das falas dos futuros pais adotivos evidencia a aplicabilidade do dispositivo grupal nesse contexto, particularmente pela perspectiva que se abre de aprendizagem por intermédio do outro e do aconselhamento.

É preciso compreender o fenômeno grupal como facilitador da emergência de diversos sentidos e saberes, que são constantemente reconfigurados e ressignificados a partir das contribuições dos diferentes interlocutores. Essas vozes distintas podem se presentificar de diversas maneiras, incluindo pessoas parcialmente presentes ou ausentes, como foi o caso do casal que teve participação propositalmente episódica (apenas uma sessão) e que mesmo assim deixou vívidas marcas nos participantes do grupo, dinamizando o grupo e potencializando uma série de transformações. Desse modo, observou-se que os membros do grupo não apenas se remetiam às falas de participantes presentes, mas também a outras pessoas cujas vozes eram atualizadas a partir da situação discutida.

Como se pôde perceber no material analisado, os fatores terapêuticos de aprendizado aparecem demarcados pelas contribuições que os participantes oferecem uns aos outros, por terem vivenciado a situação que todos almejam (é caso do casal que ofereceu generosamente seu depoimento) ou por compartilharem de expectativas e vivências semelhantes. Estar em grupo, nesse caso, parece ter favorecido a capacidade para tolerar frustração suscitada pela espera do filho a ser adotado. Como diz Bion (1965), em situações favoráveis como essa a mente pode desenvolver pensamentos que permitem tornar a frustração tolerada ainda mais tolerável, o que é essencial para o crescimento e para o poder pensar – entenda-se aqui o pensar como experiência emocional.

O grupo nesse contexto funciona não apenas como um espaço possibilitador de diálogo e troca de informações, como também uma instância potencializadora de mudança. Esse poder transfigurador do grupo é colocado em ação pelo cuidado compartilhado, no qual as percepções e concepções de cada um podem ser expostas e divididas, afetando e sendo afetadas pelas relações de reciprocidade que se desenvolvem entre os parceiros da tarefa grupal.

Nesse sentido, o grupo pode adquirir realmente a função de apoio, no qual os diferentes sentidos que podem ser atribuídos à experiência de adotar podem ser confrontados, negociados, rebatidos, desconstruídos e co-construídos continuamente, o que corrobora a importância da troca e do compartilhamento de experiências na configuração de novas possibilidades, que podem resultar em um maior grau de satisfação com a adoção.

 

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Endereço para correspondência
Fabio Scorsolini-Comin
E-mail: scorsolini_usp@yahoo.com.br

Manoel Antônio dos Santos
E-mail: masantos@ffclrp.usp.br

Recebido em: 19.11.07
Aceito em: 10.02.08

 

 

1 Psicólogo, mestrando em Psicologia e Educação pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Supervisor de estágio social do Centro de Atendimento à Criança e ao Adolescente Vitimizados de Ribeirão Preto (CACAV). Pesquisador nas áreas de conjugalidade, família e desenvolvimento humano. SP – Brasil.
2 Psicólogo, professor doutor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Coordenador do Grupo de Apoio Integral à Adoção (GAIA-USP). SP – Brasil.

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