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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo v.5 n.2 São Paulo dez. 2008

 

ARTIGOS

 

Psicoterapia analítica de grupos com drogadictos: há uma especificidade afinal? Contribuições para uma discussão

 

Analytic group psychotherapy for drug addicts: so is there any specificity? Contributions for the discussion

 

¿Psicoterapia analítica de grupo con drogadictos: después de todo, hay una especificidad? Contribuciones para una discusión

 

 

Silvia Brasiliano1

Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares
Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A origem da psicoterapia analítica de grupo com drogadictos pode ser remetida ao trabalho dos Alcoólatras Anônimos e seus dois pressupostos: a importância da dinâmica grupal e a centralidade da abstinência. Embora o primeiro possa ter sido amplamente favorável à instalação da psicanálise de grupo, a questão da direção para a cura do sintoma parece ter constituído uma marca que dificultou a sua expansão. O percurso desta terapêutica parece ter sido dificultado também pelas resistências da instituição psicanalítica clássica ao desenvolvimento de concepções não restritas à prática ortodoxa. O marco com que a clínica psicanalítica com drogadictos pode operar é definido a partir da construção de novos dispositivos, que, fundamentalmente respeitem a escuta do funcionamento psíquico dos drogadictos.

Palavras-chave: Drogadicção, Psicoterapia de grupo, Psicanálise.


ABSTRACT

Analytic group psychotherapy for drug addicts has its origin in the Alcoholic Anonymous initiative and its two premises: the importance of group dynamic approach and withdrawal as a core element. While the former may has favored group psychoanalysis, focusing on symptom cure seems to have prevented its widespread application. The advance of this therapy apparently has also been hindered by resistance from classic psychoanalysis institution against the development of conceptions unrestrained by traditional practice. The framework of psychoanalysis in drug addicts is based on the construction of new resources that essentially respect the listening to drug addicts’ psychic functioning.

Keywords: Drug addiction, Group psychotherapy, Psychoanalysis.


RESUMEN

El origen de la psicoterapia de grupo con drogadictos puede ser relacionada al trabajo de los Alcohólicos Anónimos y sus dos postulados: la importancia de la dinámica grupal y el papel central de la abstinencia. Aunque el primero pueda haber sido muy favorable a la instalación del psicoanálisis de grupo, la problemática de la dirección de la cura del síntoma parece haber constituido una marca que dificultó su expansión. El camino de esta terapéutica parece también haber sido dificultado por las resistencias de la institución psicoanalítica clásica, al desarrollo de conceptos no restrictos a la práctica ortodoxa. El marco con que la clínica psicoanalítica con drogadictos puede trabajar es definido a partir de la construcción de nuevos dispositivos, que, fundamentalmente respeten la escucha del funcionamiento psíquico de los drogadictos.

Palabras clave: Drogadicción, Psicoterapia de grupo, Psicoanálisis.


 

 

A tarefa de refletir sobre a psicoterapia analítica de grupo1 com drogadictos não é simples. Inúmeras questões, dificuldades e controvérsias permeiam essa modalidade de abordagem na drogadicção e, ainda que estas a transcendam enquanto técnica, por muito tempo atravessaram o seu caminho, influindo consideravelmente no seu desenvolvimento.

Para iniciar esta reflexão e entender as dimensões atuais da grupanálise com drogadictos é necessário que destrinchemos algumas destas questões ao longo de um percurso histórico.

A primeira diz respeito à origem das intervenções grupais com dependentes. Embora definida como doença desde a metade do século XVIII, a drogadicção só vai encontrar um lugar no campo da medicina e da psicologia no período entre a I e a II Guerras Mundiais, quando a associação do conceito de alcoolismo ao de adição dá início à construção tanto de um discurso, quanto de uma intervenção terapêutica. A implementação desta intervenção, entretanto, demoraria ainda muitos anos para ocorrer, pois o discurso da saúde iria encontrar muitas resistências. Estas resistências provinham fundamentalmente do modelo moral, expresso tanto pela corrente ambientalista (“hábito a ser rompido”), quanto pela concepção legalista do problema (“alcoolismo como falha de caráter”) (TOSCANO JR, 2001). Coerentemente a este modelo, a abordagem para os drogadictos era realizada através das condutas punitivas, como o encarceramento de alcoolistas ou seu encaminhamento para os chamados asilos de pacientes inebriados, ou da assistência religiosa e ritualística (MARQUES, SILVA, 2001). Foi somente nos anos 60 quando JELLINEK (1960) introduziu a noção de doença, associada á tolerância, abstinência e perda de controle que os programas de saúde para drogadictos começam a ser disponibilizados.

Neste cenário o surgimento dos grupos de Alcoólatras Anônimos em 1935 demarcou um novo espaço para o tratamento. Embora ligados ao Cristianismo e ainda consoantes com as tendências morais da época, sua conceituação do alcoolismo como doença e sua proposta baseada no encontro, na troca de experiências e no respeito ao indivíduo, introduziram mudanças que vão influenciar a abordagem para os drogadictos até os dias de hoje.

Conquanto sejam grupos de trabalho leigos, o enorme sucesso obtido com muitos pacientes teve como conseqüência sua rápida difusão no mundo e sua progressiva incorporação aos tratamentos médicos (MARQUES; SILVA, 2001).

Em um momento em que a psicoterapia grupal afirmava-se como modalidade de intervenção psicológica, seja através de sua conceituação (a partir de Moreno), seja através de seus diferentes desenvolvimentos (Foulkes, e, mais tarde, Bion) seja pelo momento social (posterior à II Guerra), a “técnica” dos Alcoólatras Anônimos, calcada nas possibilidades do dinamismo grupal, encontrou um amplo e favorável espaço de crescimento. Sem sombra de dúvida, hoje é possível afirmar que ela constituiu uma das bases fundamentais para o impulso e a popularização das abordagens psicoterapêuticas grupais com drogadictos (ZIMERMAN, 2000; MARQUES; SILVA, 2001).

Sob esta perspectiva, pode-se pensar que a clínica psicológica com estes pacientes desenvolveu-se a partir de dois pressupostos: a importância da dinâmica grupal, que ao longo do tempo irá ser trabalhada sob as mais diversas orientações (LIMA; FUKS, 2006) e a centralidade da abstinência, meta da intervenção. Embora o primeiro pressuposto possa ter sido amplamente favorável à instalação da grupanálise, a questão da direção para a cura do sintoma parece ter constituído uma marca que dificultou a sua expansão.

De maneira simplificada, seja de que linhagem for qualquer psicoterapia psicanalítica tem como base o encontro com um sujeito específico, que sofre com um sintoma que lhe é próprio e que tem uma significação particular em sua existência. No campo das dependências esta conceituação significa fundamentalmente que o uso de drogas não qualifica o sujeito, ou seja, que se é verdade que não existe drogadicção sem uma relação aditiva a uma droga, por outro lado não é esta adição que vai definir o indivíduo (BITTENCOURT, 1993; INEM, 1993).

Assim, propõe-se que a droga não vai atacar qualquer sujeito, independentemente de quem ele seja, o que deseja ou que conflitos tenha. A drogadicção envolve a globalidade do indivíduo em um inter-relacionamento variável e único, de tal forma que se pode dizer que a categoria dos drogadictos como grupo é composta de indivíduos com realidades psíquicas muito diferentes entre si (GURFINKEL, 2001).

Nesta perspectiva, a psicanálise tem como objetivo primordial buscar e apreender o sentido da droga na vida do indivíduo (LAUFER, 1990). Este objetivo é completamente diferente do almejado nas psicoterapias desenvolvidas tanto a partir do modelo de Alcoólatras Anônimos, quanto como produto da moderna orientação psiquiátrica americana. Nestas abordagens, a terapêutica é dirigida para a droga e a sua atuação pretende, então, ensinar, orientar e auxiliar o paciente a livrar-se delas.

Se este fator já interpôs dificuldades razoáveis à psicanálise com drogadictos, a postura dos psicanalistas naquela época, clássica, ortodoxa e com restrita pretensão terapêutica, também, não favoreceu seu desenvolvimento.

Neste sentido, não é surpresa que a intervenção psicanalítica, enquanto tratamento para a dependência tenha sido objeto de numerosos questionamentos. Desde o estudo clássico de Vaillant (1981), várias investigações têm sustentado que a psicanálise convencional e intensiva é ineficaz, quando não contra-indicada para os drogadictos (FRANCES; KHANTZIAN; TAMERIN, 1989). Como conseqüência, com freqüência a prática psicanalítica foi e tem sido a grande ausente na terapêutica da drogadicção.

E aqui certamente situa-se o segundo fator que atravessou o percurso da grupanálise com drogadictos: a ausência da psicanálise neste campo. Embora possa ser verdade que esta ausência seja o resultado dos estudos sobre efetividade, parece ser algo simplista adotá-la como única justificativa, já que desconsidera a constatação fundamental de que também os pacientes drogadictos são os grandes ausentes no campo do tratamento psicanalítico.

É fato que os grandes mestres da psicanálise ocuparam-se muito pouco da drogadicção e que, no correr do tempo, a relutância ou mesmo a recusa de muitos psicanalistas a tomarem em análise drogadictos dificultou o desenvolvimento de formulações teóricas sólidas e consistentes sobre o tema (STERN, 1997).

Se esta é uma realidade fácil de constatar, o mesmo não ocorre quando buscamos as referências que nos permitam refletir sobre estas lacunas. E não se trata aqui de que não existam respostas. Trata-se, outrossim, do fato de que todas elas parecem convergir para o mesmo ponto: o tênue limite que separa a firmeza de uma postura, fundamental para a preservação da identidade, do rigor e da ética da psicanálise, do exercício rígido de sua atuação, que serve na melhor das hipóteses para proteger o analista de suas próprias angústias frente ao não saber. Dito de outra forma, durante muitos anos, a instituição psicanalítica clássica mostrou-se bastante crítica, quando não totalmente cética, quanto ao desenvolvimento de novas concepções advindas de sua teoria, ou quaisquer tentativas ou propostas de rearticulação de sua técnica. Se este processo teve o mérito de preservar os grandes eixos conceituais da psicanálise, em vários momentos, ele constituiu somente uma franca resistência ou intolerância a tudo aquilo que fosse diferente da denominada cura-tipo (KERNBERG, 1995). Como diz Birman (2002), nestes momentos, a teoria transformou-se em doutrina e, a partir de um paradigma supostamente absoluto, as verdades foram cultuadas como dogmas. Dessa forma, qualquer inovação ou possibilidade de pluralismo era descartada, muitas vezes através das já conhecidas desqualificações: “não isso aqui não é psicanálise. Isso é uma sub-psicanálise; isso é uma falsa maneira de se entender a psicanálise...” (Birman, 2002, p. 105). Por outro lado, não é possível negar também, que estes dogmas somente se estruturaram como tais, por que muitos analistas, embora atuando clinicamente com modificações – em instituições, com crianças, com menor freqüência, por exemplo – erigiram sua prática de forma oficiosa. Ao não tornarem público o seu trabalho, estes profissionais acabaram por contribuir para que, durante muitas décadas, fosse mantida quase intacta uma “psicanálise ideal” (VILUTIS, 2002).

Neste processo, a grupanálise com drogadictos parece ter tido suas dificuldades duplicadas. Por um lado, tratava-se de uma modalidade psicoterapêutica sem o status de “verdadeira análise”, que havia sido negado pela psicanálise oficial (ZIMERMAN, 2000). Por outro, atuava junto às pacientes em que as modificações eram imprescindíveis, já que o processo clássico não comportava as novas formas de subjetivação da pós-modernidade (ESCOBAR, 2006).

Sob esta ótica, é coerente supor que a instituição psicanalítica oficial ao circunscrever a psicanálise somente à prática ortodoxa, acabou contribuindo por reforçar as conclusões dos estudiosos em drogadicção. Mais além, é como se em um dado momento a psiquiatria e a psicanálise oficial se encontrassem e, em conjunto, colocassem à margem a intervenção psicanalítica com drogadictos.

E neste ponto é importante retomarmos a questão proposta por este artigo. Tendo em vista que a grupanálise com drogadictos não se define em conformidade ao diagnóstico médico-psiquiátrico, por um lado, nem às regras ditas como fundamentais pela instituição psicanalítica, por outro, qual seria então a sua especificidade? Em outras palavras, se as referências para a sua prática não estão fundadas em nenhum dos dois discursos, com que marcos ela opera? Em que lugar é possível inscrever a sua clínica?

Antes de respondermos a estas perguntas vamos nos deter brevemente para discutir qual seria a propriedade de atuar psicanaliticamente com drogadictos.

Sabemos que toda modalidade psicoterapêutica tem alcances e limitações, que circunscrevem um campo onde sua prática pode ou não trazer benefícios para os diferentes indivíduos. No caso da psicanálise, como ela não trata das doenças, mas sim de processos psíquicos, todo sujeito é tomado singularmente e é quase impossível estabelecer categorias apriorísticas para as quais sua abordagem é mais ou menos indicada. Assim, a contra-indicação fundada no diagnóstico psiquiátrico, não só não se aplica como parece um contra-senso. Definir as limitações de uma clínica a partir de operadores inerentes a outra é, no mínimo, um mal entendido do ponto de vista epistemológico. Quanto aos critérios que têm sido habitualmente utilizados para indicar a abordagem psicanalítica senso latu, como, disponibilidade para análise, capacidade de transferência, possibilidade de deslocamento do investimento narcísico, entre outros, a questão que se coloca é outra. Mesmo que seja possível inferir que eles estão ausentes na drogadicção, não se trata aqui se eles indicam ou não a psicanálise, já que, por exemplo, não existe uma disponibilidade para análise que não esteja referida a certo enquadre, mas sim de qual psicanálise está se falando. Se estivermos nos referindo ao enquadre clássico, ortodoxo, a cura-tipo, muito provavelmente a contra-indicação para os drogadictos existe.

Desde os anos 40, sabemos que a cura-tipo é um caso particular de análise e não seu objeto único e exclusivo (BIRMAN, 2002). Mais além e, muito mais importante, sabemos que psicanálise e ortodoxia não estão obrigatoriamente implicadas. Fazê-lo seria o mesmo que afirmar que a clínica psicanalítica é derivada de sua técnica, pois transformaríamos o dispositivo concreto, inventado para que a análise possa ocorrer, na coordenada que define a própria psicanálise (OCARIZ, 2002; VILUTIS, 2002).

Não podemos esquecer que os “sintomas são históricos e não há como pensar o ser humano fora do tempo e do espaço que lhe são próprios” (Ocariz, 2002, p. 33). O mesmo ocorre com a clínica psicanalítica e seus dispositivos. Quando Freud inventou-as:

“A perversão era o negativo da neurose,... os recalques eram severos e o complexo edipiano funcionava como regulador da ordem interna. O dispositivo analítico pretendia então criar condições para amenizar superegos, diminuir resistências, censuras, abrir, ampliar, levantar as restrições à circulação de conteúdos inconscientes, de lembranças infantis, pela via da associação livre e do trabalho com a transferência” (Uchitel, 2002, p. 25).

No mundo contemporâneo, onde o individualismo é extremo, o consumo a pedra filosofal e a rapidez e o imediatismo tem lugar privilegiado, as neuroses parecem ter cedido espaço para apresentações psicopatológicas, que se não são uma invenção da modernidade, têm como elemento comum a freqüência quase epidêmica com que atualmente se apresentam na nossa clínica. Agrupadas naquilo que se tem denominado de patologias do narcisismo, do desamparo ou do vazio manifestam-se em quadros multiformes, mais comumente sob a forma de drogadicções, quadros psicossomáticos, personalidades borderline e transtornos alimentares. Denunciando as características de nossa época, estas patologias não são derivadas dos conflitos entre as pulsões, as defesas e as ameaças do superego. Ao contrário, o que as caracteriza são as falhas nas bases de constituição da subjetividade, que não encontra apoios e lugares de sustentação, que permitam o seu desenvolvimento. A angústia não simbolizada aparece sob a forma de atuações, em que a incorporação substitui a elaboração. O consumo é a via privilegiada de acesso à plenitude, já que o imaginário social favorece a passagem da carência ao vazio, que pode, então, ser preenchido (BRASILIANO, 2006).

Sob esta perspectiva, para preservar a essência da psicanálise, as mudanças no seu dispositivo são fundamentais. Como manter o analista silencioso, se o que está em pauta não é favorecer com que o paciente continue falando, mas sim que se criem condições para expressar em palavras, aquilo que só pode ser falado na dor do corpo ou nas atuações desesperadas? Criar formas diferentes de intervir para fazer face às novas demandas do sofrimento humano não é conformar a psicanálise às exigências culturais. Ao contrário, é manter vivo o seu principal legado, pois como Freud já nos ensinava, é a partir do reconhecimento de nossas fragilidades e limites (neste caso enquanto analistas), que podemos reinventar o fazer, buscar alternativas, para que a experiência de acesso ao inconsciente possa ocorrer (BRASILIANO, 2001).

Para que o rigor da prática analítica se mantenha, é fundamental que o trabalho de construção destes novos dispositivos se faça a partir de referências que o fundamentem e o embasem. Neste sentido, definimos o lugar que falamos de nossa clínica grupanalítica institucional com drogadictos, a partir de duas delas.

A primeira provem de Freud que já em 1918 (p. 2460-2) colocava:

"Não podemos evitar aceitar, para tratamento, determinados pacientes que são tão desamparados e incapazes de uma vida comum que, para eles, há que combinar a influência psicanalítica com a educativa; (...) Defrontar-nos-emos, então, com a tarefa de adaptar a nossa técnica às novas condições. (...) No entanto, quaisquer que sejam os elementos dos quais se componha - a análise -, os seus ingredientes mais efetivos e importantes continuarão a ser, certamente, aqueles tomados à psicanálise estrita e não tendenciosa".

A clínica psicanalítica com drogadictos coloca ao analista uma série de impasses. Estes, em última instância, remetem-se aos próprios limites da analisabilidade. No nosso entender, a possibilidade de suplantá-los, quando ela existe, está estritamente vinculada à construção de um dispositivo analítico flexível, onde a mobilidade do analista é fundamental e tem pelo menos dois sentidos. Primeiramente, ser móvel refere-se à técnica que não poderá estar limitada à interpretação. Isto não significa a utilização indiscriminada de qualquer instrumento técnico em qualquer momento. O fundamental é que os diferentes recursos sejam congruentes ao lugar analítico definido pelo campo transferencial configurado em cada momento, onde a não imposição de valores próprios do analista e o respeito à realidade vivida e suportada pelo paciente são elementos primordiais. Mobilidade significa também o reconhecimento que a abordagem psicanalítica tem limitações importantes com drogadictos, o que requer do analista disponibilidade para inserir-se em outros espaços terapêuticos, confrontando-se com outros saberes e práticas e, principalmente, implicar-se no desafio da interdisciplinaridade (BRASILIANO, 1997). Em suma, na relação com drogadictos, o setting estará tanto mais resguardado, quanto maior for a possibilidade de o analista poder criar e ousar (BIRMAN, 1993).

Neste contexto, desde a nossa perspectiva, para que a essência da psicanálise seja mantida seu uso deve estar centrado na promoção do desenvolvimento (FERNANDES, 1995), sendo impositivo respeitar seu elemento fundamental, ou seja, a "consideração da escuta do funcionamento psíquico dos drogadictos, como condição sine qua non para seu manejo terapêutico" (BIRMAN, 1993, p.58).

A segunda referência diz respeito à abordagem grupal. Como nossa intervenção ocorre em uma instituição, torna-se fundamental que respeitemos o espaço que lhe é próprio, construindo e desenvolvendo modelos que considerem tanto a sua estrutura, como a população que atende. No nosso entender, com drogadictos, o modelo que melhor atende a estas características é a psicoterapia em grupo, já que ela alia ao seu potencial terapêutico, a possibilidade de questionamento contínuo da estrutura institucional (BRASILIANO, 2007).

Assim, operamos nossa clínica institucional com drogadictos em grupanálise. Esta abordagem não é única, nem se realiza de forma isolada. Ela faz parte de um programa multidisciplinar, no qual um conjunto de intervenções integra-se em uma estratégia terapêutica conjunta2.

Nestes grupos o objetivo é o de é criar um espaço de reflexão, onde o paciente possa buscar o sentido de suas próprias vivências, na tentativa de encontrar uma resposta diferente, que não a droga, para a transformação de sua realidade (BRASILIANO, 1997).

Hoje sabemos que são lentos e tortuosos os caminhos que o grupo percorrerá. Neles, o analista deve ter claro que a proposta de dar sentido às vivências é totalmente nova para o drogadicto. Até o momento da análise, ele age como se seu mundo interno não existisse e ele não soubesse o que tem de se perguntar, ou mesmo, se é preciso fazer alguma pergunta. Assim, a psicoterapia funciona como um longo processo de construção, onde é necessário oferecer alternativas, para que a correlação entre o vivido e o sentido possa ser experimentada. Vários mecanismos serão postos em ação na situação grupal, até que seja possível a cada um captar a dimensão psíquica do drogar-se e a articulação real e simbólica deste com os acontecimentos da sua própria vida (BRASILIANO, 1997).

A complexidade do processo psicanalítico com drogadictos consiste primordialmente na entrada no jogo paradoxal que eles estabelecem com a morte, onde para autorizar-se a viver é obrigatório roçar o morrer. Seu grande desafio funda-se, então, na instauração do discurso, que pode mediar, através da simbolização, a relação entre o sujeito e a morte como prova concreta (LOUREIRO; VIANNA, 2006). Sua possibilidade é de articular um sentido ali onde ele se perdeu, ou seja, na experiência com a droga, onde não há palavras, nem comunicação e é impossível ao indivíduo identificar como seu e de sua vida (JORGE, 1994). Sua proposta remete ao despertar impossível para o drogadicto, reconstruindo o que não é dado anteriormente, mas pode ser buscado, inscrevendo o antes e o depois da droga em uma história pessoal de um sujeito particular (PONCZEC, 1993; JORGE, 1994).

 

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Endereço para correspondência
Email: brasili@aclnet.com.br

Recebido em: 08.04.08
Aceito em: 20.09.08

 

 

1 Psicóloga – Psicanalista – Membro efetivo do Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares (NESME) – Coordenadora do Programa de Atenção à Mulher Dependente Química (PROMUD) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – Doutora em Ciências pela Faculdade de Medicina da USP, São Paulo, Brasil.
2Nestes artigos, os termos psicoterapia analítica de grupo e grupanálise serão usados como sinônimos. Para informações detalhadas sobre a abordagem realizada consultar Brasiliano, 1997, 2001 e 2007.

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