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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo v.6 n.2 São Paulo dez. 2009

 

ARTIGOS

 

O grupo com autistas como instrumento psicoterapêutico

 

The group with autists as a therapeutic device

 

El grupo com autistas como instrumento psicoterapéutico

 

 

André Apolinário da Silva Marinho1

Centro de Atenção Psicossocial de Higienópolis
Escola do Autista "Maria Lúcia de Oliveira" - São José do Rio Preto
Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares - São José do Rio Preto

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo examina a utilização do grupo como instrumento psicoterapêutico em casos de autismo, tendo como objeto de discussão o relato de uma sessão de um grupo de autistas que acontece em uma instituição municipal na cidade de São José do Rio Preto.

Palavras-chave: Autismo, Grupo, Psicanálise.


ABSTRACT

This paper examines the utilization of the group as a psychotherapeutic device for cases of autism. It has as discussion object the description of a session of a group of autists, which happens in a public institution in São José do Rio Preto, Brazil.

Keywords: Autism, Group, Psychoanalysis.


RESUMEN

Ese articulo investiga la utilización del grupo como un instrumento psicoterapéutico para casos de autismo, y tiene como objeto de discusión la descripción de una sesión de un grupo de autistas que acontece en una institución publica en la ciudad de Sao José do Rio Preto, Brasil.

Palabras clave: Autismo, Grupo, Psicoanalisis.


 

 

INTRODUÇÃO

O presente artigo visa examinar a utilização do grupo como instrumento psicoterapêutico em casos de autismo.

Freud (1987), em texto publicado originalmente em 1921, compreende o grupo como constituído pelas identificações de seus membros com um mesmo objeto, sendo que a partir delas identificam-se entre si. Um grupo é formado por relações estabelecidas e por vínculos construídos entre os sujeitos que dele fazem parte. Nele se supõe dois planos: um que se refere às interações nas quais são observados indivíduos em relação; e outro, no qual os vínculos se estruturam e que não é diretamente observável. As interações e os vínculos do campo grupal possuem componentes tanto conscientes quanto inconscientes. Um grupo com finalidades psicoterapêuticas pretende atuar em ambos os planos e com isto ensejar transformações psíquicas em seus membros.

O DSM-IV-TR (2003) classifica o autismo como um transtorno global do desenvolvimento com aparecimento anterior aos três anos de idade. As suas principais características são o comprometimento da interação social e da comunicação, além de um repertório muito restrito e repetitivo de comportamentos e interesses.

A psicanálise entende o autismo como uma falência no processo de constituição da subjetividade de seus portadores expressa na dificuldade severa para a formação de vínculos, na precariedade da capacidade simbólica e na frágil inserção no mundo da cultura. Enquanto estrutura clínica, é anterior à psicose. A marca do recalque que circunscreve o inconsciente, e organiza a neurose, não se instaura. Se fosse permitido o uso de uma metáfora, poder-se-ia dizer que no autismo há mais corpo do que mente, pois o desenvolvimento responsável por inscrever psiquicamente as pulsões falha. Os conteúdos e os processos utilizados para se lidar com eles são predominantemente corporais. As pulsões permanecem em estado bruto, ou seja, a partir delas quase não se derivam os impulsos mais sofisticados que permitem a inclusão do sujeito no mundo sócio-cultural.

A consideração destas características conduziria à quase inevitável conclusão de que a psicoterapia de grupo não seria indicada nestes casos. O que o cotidiano da clínica psicanalítica do autismo tem a dizer sobre isto? A discussão deste questionamento é baseada no trabalho terapêutico de grupo realizado pelo autor deste artigo em instituição pública municipal destinada ao atendimento de portadores de autismo e psicose na cidade de São José do Rio Preto.

O grupo, cuja sessão é descrita e discutida neste texto, possui finalidades psicoterapêuticas, é formado por quatro pacientes autistas do sexo masculino fixos, tem freqüência semanal com duração de uma hora cada sessão e acontece há aproximadamente três anos. A sala de atendimento é ampla, montada com um tapete central onde ficam distribuídas almofadas. Há uma mesa, cadeiras, uma pia com gabinete e uma caixa de brinquedos. Os integrantes são (nomes fictícios): Gilmar, 12 anos; Roberto, 16 anos; Jéferson, 11 anos; Emerson, 14 anos.

 

MATERIAL CLÍNICO

O terapeuta dirige-se ao pátio da instituição onde os pacientes aguardavam o atendimento. Roberto está ausente. Os integrantes são encaminhados para sala de grupo. Jéferson dirige-se para as almofadas, deita-se sobre elas. Emerson coloca-se em frente às portas do gabinete da pia, nelas batendo com suas mãos e demonstrando desejo de abri-las. O terapeuta diz:

- O que será que tem atrás destas portas?

Gilmar anda pela sala. Nesta configuração inicial, aparentemente não há interação entre os participantes do grupo; cada um realiza ações diferentes e desconectadas. Cada um está em um canto da sala. Terapeuta senta-se sobre uma cadeira. 

Gilmar aproxima-se de Jéferson, senta-se ao seu lado.

Terapeuta diz:

- Gilmar está procurando contato com Jéferson.

Jéferson encosta suas mãos em Gilmar que, por sua vez, esquiva-se do contato sem, no entanto, sair de perto do colega. Terapeuta aponta sua ambivalência, dizendo:

- O Gilmar, ao mesmo tempo em que procura contato com Jéferson, o rejeita, mas não sai de perto dele.

Émerson não se aproxima dos colegas, porém, ergue a sua camiseta, mostrando a barriga, ou melhor, oferecendo sua barriga para ser acariciada. Terapeuta diz:

- Emerson quer carinho.

Jéferson e Gilmar estão no tapete, próximos. Emerson está fora do tapete e começa a emitir alguns sons vocálicos. Já há algumas sessões ele tem emitido o som da letra "e" e da letra "u", de tal modo que em dados momentos emite o som "eu".

Gilmar fica de quatro sobre o tapete. Terapeuta aponta a posição que ele assume e pergunta:

- O que Gilmar está propondo para Jeferson?

Jeferson, na seqüência, encosta-se com os joelhos no chão atrás de Gilmar, que se afasta mais uma vez, mas mantendo-se na mesma posição. Ele ensaia uma reação de choro. Terapeuta assinala que Gilmar se angustiou. 

Jeferson pede para ir ao banheiro, quer sair da sala. Diz:

- Xixi.

Terapeuta comunica ao grupo o pedido de Jeferson, abre a porta e o conduz ao banheiro. Gilmar fica curioso, nota o movimento e permanece olhando pela porta. O banheiro e a sala de grupo são contíguos e as sua portas estão em posição perpendicular uma à outra. Após fazer xixi, Jeferson não quer voltar para sala. Terapeuta, porém, o reconduz ao grupo. Jeferson joga com força uma bola no ventilador. Terapeuta diz que ele está realizando ações para ser mandado para fora, porque talvez tenha se angustiado com a intensidade de alguns sentimentos e sensações vividos no grupo, por isto estaria tentando evitar estar ali.

Sobre a pia há uma caixa de brinquedos que está fechada. Gilmar passa pela caixa e toca-a. Terapeuta entende que Gilmar quer que ela seja aberta, abrindo-a então. Gilmar pega um tijolinho, coordenador pega vários outros e monta um castelinho. Diz ao Gilmar, oferecendo-lhe uma parte do brinquedo:

- Põe esta peça aqui, sobre o castelo.

Gilmar compreende e aceita a proposta do terapeuta, colocando uma peça do telhado sobre as que já estavam montadas.

Gilmar propõe ao terapeuta uma brincadeira habitual: bater as palmas da mão de um nas do outro. Gilmar demonstra muito prazer na brincadeira e, rindo, olha para o terapeuta. A intensidade das palmas é variável e sugere que tenha valor de comunicação.  

Emerson continua emitindo sons deitado em um dos cantos da sala. Terapeuta resolve aproximar-se dele, pois entende estes sons como um chamado. Passa a mão na barriga de Emerson, que gosta e sorri. Gilmar observa a situação e é convidado a dela participar. Neste momento se configura uma relação triangular. Terapeuta passa uma mão na barriga de Emerson e oferece a outra para Gilmar tocar. Ambos começam a disputar a atenção e as mãos do terapeuta, um empurrando a mão do outro. Jeferson está longe, mas fala algumas palavras cujo conteúdo não é prontamente identificado. Jeferson levanta-se e vai em direção ao terapeuta. Senta-se no seu colo, tira seus óculos e os coloca em seu rosto. Terapeuta diz:

- Agora o Jeferson virou o André.

Todos os membros do grupo estão próximos, buscando contato. Jeferson diz:

- "O amor é o calor que aquece a alma Jota Quest".

 

DISCUSSÃO TEÓRICA

O cotidiano da clínica com grupos de autistas, orientado pela leitura psicanalítica, tem demonstrado que apesar da precariedade dos seus recursos simbólicos, estes indivíduos são capazes de, quando agrupados, formar grupo.

O relato acima procura mostrar o movimento grupal configurado dentro dos limites de uma sessão psicoterapêutica. No início, as manifestações de relacionamento não são perceptíveis. Os membros posicionam-se separados em locais diferentes da sala. As suas ações, porém, se conectam com o passar do tempo e revelam elementos de sociabilidade, de interação afetiva, de possibilidade de construção de sentido e de comunicação.

No início do trabalho, logo após a formação do grupo, as sessões eram realizadas de portas abertas. Os pacientes freqüentemente entravam e saiam da sala. Eram raros os momentos em que todos ficavam reunidos. Emerson, por exemplo, quase nunca entrava na sala, corria pela clínica, produzia sons batendo com algum objeto em extintores e janelas; foi aos poucos se aproximando da sala, permanecendo, porém, deitado na soleira da porta. Jéferson levava o terapeuta até a porta da sala onde era anteriormente atendido em psicoterapia individual. Estas manifestações que ocorriam mesmo fora da sala eram compreendidas como comunicações referidas ao grupo e assim assinaladas aos seus membros na tentativa de "infundir musicalidade nos sons rudes e nos gestos bruscos deste corpo devastado pelo desamparo" (BIRMAN, 1997). Após meses de trabalho foi possível conduzir todos os membros à sala e a sessão acontecer de portas fechadas. Este momento foi considerado um marco evolutivo na história do grupo, pois a sala de atendimento, com todos os elementos do setting terapêutico, pode ser reconhecida como o espaço onde as sessões ocorriam.

Bleger (1991) apresenta um importante conceito para a compreensão do funcionamento dos grupos formados por psicóticos e autistas: a sociabilidade sincrética.

O conceito de sociabilidade sincrética é ilustrado por Bleger com a situação de uma mãe e um filho, numa sala, realizando atividades diversas e isoladas. Ela vê televisão ou lê; ele se ocupa com um jogo. Entre eles não há comunicação verbal, nem contato físico ou visual, inexistindo interação. No entanto, quando a mãe sai da sala o garoto a acompanha, o que atesta a existência de um laço que os mantinha juntos no mesmo espaço, apesar de aparentemente isolados. A este laço, que lembra a força gravitacional entre os corpos celestes, Bleger chamou de sociabilidade sincrética.

Há, no material clínico, algumas situações nas quais os membros do grupo mostram-se isolados. Porém, a ação de um provoca reação em outro. Por exemplo, quando Jéferson vai ao banheiro, Gilmar o observa pela porta, curioso. Quando Émerson recebe carinho do terapeuta, Gilmar novamente se coloca na posição de observador. Mesmo não havendo interações verbais, um membro toma uma posição em referência aos demais. É esta "referência ao outro" que alude a um fundo de sociabilidade sincrética e que se constitui na matéria-prima com a qual o terapeuta trabalha. Diz Bleger:

Ocupei-me com essa questão em outras ocasiões, tomando como ponto de partida o problema da simbiose e do sincretismo: ou seja, aqueles estratos da personalidade que permanecem num estado de não discriminação e que estão presentes em toda constituição, organização e funcionamento do grupo; eles existem sobre a base de uma comunicação pré-verbal, infraclínica (subclínica) difícil de se detectar e conceitualmente difícil de se caracterizar, em razão da necessidade na qual nos encontramos de formular, com um determinado tipo de pensamento e de categorização, fenômenos muito distantes da estrutura desses últimos.

Minhas proposições nesse sentido me levam a considerar em qualquer grupo, um tipo de relação que, paradoxalmente, é uma não-relação, ou seja, uma não-individuação; esse tipo de relação impõe-se como matriz ou como estrutura de base de todos os grupos e persiste de maneira variável durante toda a sua vida. Chamarei esse tipo de relação de sociabilidade sincrética, para diferenciá-lo da sociabilidade por interação, noção pela qual se estruturou o nosso conhecimento atual da psicologia grupal. (Bleger, 1991, p. 41)

Bleger (1991) afirma que nos grupos se estabelece uma espécie de clivagem entre a estrutura organizada onde se encontram as "manifestações compreendidas naquilo que denominamos verbalização, motricidade, ação, julgamento, raciocínio, pensamento etc." e a estrutura sincrética onde predomina a indiferenciação e na "qual os indivíduos enquanto tais não têm existência e entre os quais opera uma transitividade permanente". O trabalho terapêutico, mediante esta clivagem, poderá operar "sobre os aspectos mais integrados da personalidade e do grupo" (BLEGER, 1991).

Bleger afirma, ainda, que um trabalho terapêutico aprofundado demanda a mobilização da parte clivada do grupo, que é inconsciente. Há, porém, situações em que a clivagem não ocorre, como é o caso dos grupos de psicóticos e de autistas. Os grupos formados por autistas possuem características muito específicas. As comunicações são predominantemente pré-verbais, constituídas por ações e por fenômenos fisiológicos concretos. Conteúdos primitivos que aparecem nos grupos de neuróticos modificados pelas defesas e mediados pela linguagem, nos grupos de autistas se manifestam na sua forma bruta e de modo concreto. Se na, neurose, as intervenções visam atingir os níveis mais profundos e primitivos do funcionamento mental imiscuídos no material clínico produzido pelo grupo, na psicose e no autismo elas objetivam oferecer recursos simbólicos para representar os conteúdos expressos primitivamente.

O terapeuta, tentando caminhar na direção da construção de significados, narra ao grupo as suas interações e dá nomes aos conteúdos constituintes dos vínculos entre os membros. Além disto, ele exerce uma função de continência para o grupo que existe inicialmente em seu próprio desejo. Sua fala vincula eventos aparentemente desconectados atribuindo-lhes sentidos e assim construindo uma trama. Assim como uma mãe em relação ao seu bebê, o coordenador sonha com a existência e a constituição do grupo. Segundo BIRMAN (1997), "exige-se destes [dos terapeutas de autistas] uma aposta, a antecipação desejante de um sujeito possível onde existe apenas a pontualidade de um proto-sujeito". Ao narrar os acontecimentos da sessão, o terapeuta cria condições para que os indivíduos se reconheçam como sujeitos das ações.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final das considerações, é pertinente indagar se o material clínico exposto apresenta elementos suficientes para que se possa afirmar que houve formação grupal. E, mais ainda, se houve grupo, se ele pode ser considerado como terapêutico.

Existem, no material clínico, indícios de que o coordenador funciona como um elemento de identificação grupal. Isto é observado, por exemplo, quando Jéferson tira os óculos do terapeuta e coloca-os em seu próprio rosto, o que claramente sugere uma identificação. Jeferson concretamente passa a ter consigo um "pedaço" do terapeuta através do qual, naquele momento, enxerga as coisas.  Ao final da sessão os três integrantes disputam a atenção do terapeuta e ficam, assim, identificados entre si como rivais. A menção aos afetos contida na frase "o amor é o calor que aquece a alma" aponta para a construção vincular dentro do grupo.

Identificações mútuas a partir de um mesmo objeto, construção de vínculos e interações são os constituintes específicos para a formação de um grupo segundo a psicanálise. Tais elementos se insinuam no material clínico descrito e permitem conjecturar que um grupo se configurou. Considerando-se a dificuldade de desenvolver vínculos e estabelecer relações sociais como a marca distintiva e diagnóstica do autismo, é permitido afirmar que o objetivo de um grupo psicoterapêutico com autistas é fomentar que eles se configurem como grupo, o que, por si só, já é transformador. 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

American Psychiatric Association. Referência rápida aos critérios diagnósticos do DSM-IV-TR. 4a. Ed. Porto Alegre: Artmed, 2003.         [ Links ]

BIRMAN, J. A Gramática do Impossível. In: ROCHA, P. S. (org.). Autismos. São Paulo: Escuta, 1997. Apresentação, p. 11-13.         [ Links ]

BLEGER, J. O Grupo como Instituição e o Grupo nas Instituições. In: KAËS, R. et al. A Instituição e as Instituições. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1991. Cap. 2, p. 41-52.         [ Links ]

FREUD, F. (1921) Psicologia de Grupo e Análise do Ego. In: Além do Princípio do Prazer, Psicologia de Grupo e Outros Trabalhos. Edição Standard Brasileira das Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1987. v. 18, p. 89-179.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
André Apolinário da Silva Marinho
Endereço eletrônico: psiandremarinho@ig.com.br

Recebido em: 23/05/2009
Aceito em: 30/08/2009

 

 

1 André Apolinário Silva Marinho, psicólogo, técnico do Caps Higienópolis/Escola do Autista "Maria Lúcia de Oliveira" na cidade de São José do Rio Preto, aluno do curso de Especialização em Coordenação e Psicoterapia de Grupo do NESME, São José do Rio Preto, SP, Brasil.

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