SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.6 número2O Narcisismo dos pacientes e terapeutas: uma perspectiva vincularA comunicação da família no judiciário índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo v.6 n.2 São Paulo dez. 2009

 

ARTIGOS

 

Como trabalhamos com grupos de pacientes somáticos

 

How to work with group of somatic patients

 

Como trabajamos con grupos de pacientes somáticos

 

 

Edilberto Clairefont Dias Maia1

Centro de Estudos de Psicanálise e Psicoterapia Analítica de Grupo do Pará

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Inicialmente, o autor demonstra a importância de Danilo Perestrello na Medicina Psicossomática do Brasil. A seguir, trata a somatização sob três perspectivas: a doença, a relação médico-paciente e a ação terapêutica. O autor fala da constituição do self a partir das primeiras relações com a mãe e o ambiente, e de um potencial hereditário mórbido que irá ou não se expressar. Mostra que o somatizador apresenta um aparelho psíquico que funciona próximo ao dos psicóticos, e que o sentido é de ordem pré-simbólica, procurando esvaziar a palavra de sua significação afetiva. O autor mostra que, como os pacientes somáticos são regredidos, a psicoterapia vai de uma terapia de apoio para o trabalho focal, evoluindo até a terapia que levará a reflexão, conhecimento e insight. Em seguida, o autor traz um fragmento de sessão, e mostra a importância da palavra, da verbalização dos conflitos, pois é verbalizando que o paciente evoluirá do sentido pré-simbólico para o simbólico, refletindo sobre os significados das enfermidades, mudando para melhor sua convivência com o mundo.

Palavras-chave: Somatização, Simbolismo, Psicossomática, Grupoterapia.


ABSTRACT

At first, the author shows the importance of Danilo Perestrello for the Psychosomatic Medicine in Brazil. The somatic illness is seen under three perspectives: the illness, the relationship between doctor and patient and the therapeutic action. The author tells about the self building since the first contact with the mother and the environment and also a hereditary morbid potential that will or will not be revealed. The author also shows that the patient has a psyche that works just like the one of a psychotic person, and the meaning is pre symbolic, getting the words out of affectionate meanings. Because the patients are immature, the psychotherapy goes from a support therapy to a focused work, developing into a reflexive therapy, self knowledge and insight. Next, the author brings part of a session to show the importance of verbalization to make patients go from the pre symbolic to the symbolic meaning, thinking about the meaning of his illnesses, improving his relationship with the world.

Keywords:Somatic Illness, Symbolism, Psychosomatic, Group analysis.


RESUMEN

Inicialmente, el autor demuestra la importancia de Danilo Perestrello en la medicina psicosomática del Brasil. La somatización se aborda desde tres perspectivas: la enfermidad, la relación médico-paciente y la acción terapéutica. El autor analiza la constitución del self a partir de las primeras relaciones con la madre y el medio ambiente y de un potencial hereditario mórbido que va o no expresarse. Muestra que el somatizador presenta un aparato psíquico que funciona junto a de los psicóticos, y que el sentido es de orden pre-simbólica, intentando vaciar la palabra de su significado afectivo. El autor muestra que, como los pacientes somáticos son regredidos, la psicoterapia va de un tratamiento de apoyo para el trabajo focal, evolucionando hasta una terapia que lleva a la reflexión, conocimiento y insight. Enseguida, el autor trae un fragmento de sesión, y demuestra la importancia de la palabra, de la verbalización de los conflictos, pues es verbalizando que el paciente desarrollará del sentido pre-simbólico para el simbólico, reflejando en los significados de las enfermedades, moviendo para mejor su convivencia con el mundo.

Palabras clave: Somatización, Simbolismo, Psicosomática, Grupo terapia.


 

 

INTRODUÇÃO

A doutrina médica mostra que desde os tempos de Hipócrates os princípios da medicina psicossomática nela já se encontravam contidos. No Brasil é a figura de Danilo Perestrello que aparece como o marco da medicina psicossomática, através de sua tese de livre docência: "A Psiquiatra Atual como Psicobiologia", de 1945, da qual se torna o seu principal divulgador, tendo sido o primeiro presidente da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática. (Eksternam, 1992, p. 29). Trazendo a psicossomática para um olhar psicanalítico, podemos dizer que a Medicina Psicossomática está constantemente mantendo uma intervenção em favor da Psicanálise.

A transformação do Id em Ego descrita por Freud em sua teoria es­trutural é um exemplo da presença da psicossomática. Ter o conhecimento dessa transformação mostra a interação de psicanálise e psicossomática. Talvez ai esteja o ponto chave dessa interseção.

Freud, ao discutir a origem da mente, afirma que a atividade corporal origina o Id e que o contato com o mundo exterior faz emergir uma lâmina mais superficial, que ele chamou de Ego (FREUD, 1980, p. 283). Sendo assim, sugere que a atividade físico-biológica está representada na mente.

A percepção de Groddeck sobre essa relação manifesta-se na transformação do Isso em Mim. Ele diz: "da união entre o espermatozóide e o óvulo humanos surge um ser humano, nele há um Isso que força o desenvolvimento do ser, que constrói o corpo e a alma do ser humano" (Groddeck, 1990, p. 29-30)

Tanto para Freud como para Groddeck, é através do desenvolvi­mento e das transformações do corpo e da mente que o sujeito vai construindo sua própria imagem corporal.

Capisano, quando fala da construção da imagem corporal, mostra que ela é construída através da interação entre o Ego e o Id, em interjogo contínuo das tendências egóicas com as tendências libidinais. (CAPISANO, 1992, p. 182)

 

PSICOSSOMÁTICA: CONCEITUAÇÃO

Uma conceituação importante é aquela que integra três perspectivas: a doença com sua dimensão psicológica; a relação médico-paciente com seus múltiplos desdobramentos; e a ação terapêutica voltada para a pessoa do doente, este sendo visto como um todo biopsicossocial.

Nosso self constitui-se a partir das primeiras relações com a mãe e o ambiente, e se estrutura de modo mais sólido ou frágil de acordo com o que se recebeu de afeto, adequação, respostas, coerência e ambiguidades. O self, pois,contém um potencial hereditário mórbido que irá ou não se expressar de acordo com as situações de estresse e má adaptação que serão vividas posteriormente nas várias etapas da vida.

A doença, como ela se apresenta e como significa para nossa fantasia, pode atingir nosso self, a auto-estima, a qualidade de vida, nossas perspectivas vitais e de sobrevivência, nossa sexualidade e qualidade de relações pessoais.

O paciente somático apresenta um aparelho psíquico que funciona próximo ao dos psicóticos. Em suas angústias, encontramos a mesma confusão inconsciente a propósito da representação do corpo como continente. Existem fantasias de fusão corporal e o temor de perder o direito à identidade separada, tanto quanto de ter pensamentos e emoções pessoais. Poderíamos dizer que os pacientes somáticos constroem seus sintomas a partir de núcleos psicóticos de suas personalidades. Poderíamos ir adiante e dizer que nas afecções psicossomáticas, o sentido é de ordem pré-simbólica e provoca uma cisão na representação da palavra. McDougall (McDOUGALL, 2000, p. 22) diz que os processos de pensamentos dos somatizadores procuram esvaziar a palavra de sua significação afetiva. Nos pacientes psicossomáticos é o corpo que se comporta de maneira delirante-alucinatória. Poderíamos dizer que as reações psicossomáticas são defesas contra vivências mortíferas experimentadas em uma fase bastante primitiva na qual a sexualidade se apresenta dotada de aspectos sádicos e fusionais.

A cisão psique-soma produz-se quando a criança é obrigada a se defender com uma clivagem para evitar a ameaça de uma ruptura em sua continuidade narcísica, e mais ainda, contra o perigo de aniquilação como sujeito. É como se houvesse uma fantasia universal na experiência psíquica da criança: um só corpo e um só espírito para duas pessoas.

 

TEORIA DA TÉCNICA

Apesar de o objetivo final de nosso trabalho ser a aplicação da psicoterapia analítica de grupo, na qual a interpretação esteja vinculada ao inconsciente levando à conscientização, ao autoconhecimento e ao insight, o que temos nos grupos somáticos são pacientes regredidos, necessitados de vários aportes teóricos e técnicos.

Como há uma cisão na representação da palavra, estamos, então, sempre estimulando o grupo a falar. A catarse sempre é um objetivo presente. Falar da doença somática, de algo que não se sabe direito o que é, é sempre uma meta terapêutica, pois inclui as fantasias sobre a doença que o paciente por vezes nunca confessou a ninguém. Suas ansiedades também são trabalhadas.

Na medida em que o grupo permanece conosco por um tempo maior e percebemos certa evolução, vamos utilizando ferramentas mais complexas, através das intervenções, ajudamos o grupo a conhecer os meandros e os significados da enfermidade, as formas de conviver com o mundo e a perspectiva de mudar esta convivência para melhor, conhecendo também, do que se sofre e por que se sofre.

Assim, passamos de uma terapia de apoio para o trabalho focal, até chegar à terapia que leva à reflexão, conhecimento e insight.

 

VINHETA

Temos todos tendência a somatizar quando as circunstâncias ultrapassam nossas possibilidades de resistências.

Trabalhamos com grupos abertos, heterogêneos, em vários níveis de desenvolvimento, e com, no máximo, 05 membros. O grupo atualmente trabalhado está composto de 04 pessoas.

G, 69 anos, divorciada, três filhos, funcionária pública aposentada. Filha de mãe psicótica, e de pai extremamente autoritário, explosivo e frio afetivamente. (SIC). Paciente obesa, com artrose nos dois joelhos, anda com dificuldade, tem psoríase, miopia e retinopatia com perda parcial da visão. Está no grupo há três anos.

M, 37 anos, casado, sem filhos. Não quer filhos. Bancário. Filho de pais separados. O pai, nas brigas com a esposa, ameaçava a família de que seria muito difícil sobreviver sem ele. Vive sentimentos de culpa pela separação dos pais. Há seis anos, quando era caixa de um banco, este foi assaltado por quatro bandidos e um deles deu um tiro em sua direção, não o atingindo, porém, sua vista escureceu e ele desmaiou no local. Depois de algum tempo, passou a sentir desânimo, fraqueza geral, tonturas, tremores de extremidades e muita enxaqueca. No trabalho, com certa freqüência está de licença saúde, e durante muito tempo pensou em aposentadoria por invalidez. Está no grupo há dois anos e meio.

V, 43 anos, casada, três filhos. Funcionária Pública. Filha de pai alcoólatra, agressivo e violento, que espancava a mãe e a paciente injustamente. Sua mãe era insegura, porém, autoritária. A paciente, como primogênita, era obrigada a cuidar dos irmãos e a fazer tarefas domésticas e quando não era do agrado da mãe era espancada e proibida de chorar. (SIC). Estava com nove anos quando o pai abandonou a família sem nenhuma explicação. Quando casou, levou a mãe para morar com ela. Apresenta dores na coluna vertebral, hemorróida, disfunção sexual e taquicardia. Está no grupo há dois anos.

S, 35 anos, casado, um filho. Funcionário público. Filho único. Sua mãe é extremamente autoritária, rígida, explosiva, dona da verdade. Seu pai é passivo, submisso e sem autoconfiança. (SIC). O paciente sofre de retocolite ulcerativa. Está no grupo há mais ou menos dois anos.

Esta é a primeira sessão após as férias do último mês de julho.

G - Lembram que eu estava na maior dúvida se trazia minha filha que mora em Goiânia para passar as férias aqui? Parece que sabia que não ia dar certo. Ela veio, e eu comentei com ela que a S (outra filha) estava tentando me convencer a passar para o nome dela a sala comercial que acabei de comprar. Ela se queixa que o salário do trabalho não dá pra viver e que o aluguel da sala seria uma complementação.

A C (filha de Goiânia) falou pra ela que estava sabendo de tudo, então, numa manhã a S entrou em casa totalmente descontrolada, me chamando de louca, que eu queria ver os filhos brigados, que o que ela vinha conversando comigo era pra ter ficado entre nós. Ela estava com muito ódio de mim. O olhar dela parecia o olhar enlouquecido da minha mãe, que eu odiava. Não consegui reagir, apenas falei "ei, menina, tu não és a única filha".

No dia seguinte, acordei com muitas dores nos braços sem conseguir levantá-los e o problema da retina piorou, pois acordei sem enxergar direito. A vista estava embaçada, e eu estava com muita raiva. Então, mandei trocar as fechaduras da porta do apartamento. Agora, filho tem que avisar pra entrar em casa.  Quando ela soube ficou mais furiosa ainda e me destratou por telefone e eu novamente não reagi.

M - Vejo como muito séria essas questões familiares. Meu pai, na época da separação, ameaçava a gente dizendo que seria muito difícil a gente sobreviver sem ele. Aquilo me deixava com ódio, e eu desejava que ele fosse mesmo embora ou até morresse para provar que poderíamos viver sem ele. Talvez venha daí o meu sentimento de culpa, a somatização e o sentimento de invalidez. No meu casamento estou sempre em conflito com minha esposa. Ela quer filhos e eu não. Como posso ter filhos se me sinto enfraquecido com esses tremores? Filho é muita responsabilidade. Olha a senhora, com filhos adultos e tendo que passar por isso.

S - Concordo que a convivência familiar é complicada. Quando casei minha mãe ia todo dia à minha casa, dava ordens para a empregada, mudava móveis de lugar, até que minha mulher brigou com ela. Quando chegou neste ponto, decidi conversar e explicar que na minha casa as decisões são tomadas por mim e minha mulher e que por mais que a amássemos, ela na minha casa era apenas visita. Ela ficou magoadíssima, se afastou por um tempo, mas agora está voltando a freqüentar nossa casa, porém com outra postura. Aprendi aqui no grupo que não posso fazer como meu pai faz, tenho que enfrentá-la, falando, conversando das minhas necessidades e desejos, fazendo com que ela os considere. Acho que muita coisa acontece porque nos calamos. Aprendi que temos que falar sempre, e sabe que falando meus sintomas praticamente sumiram?

G - Você tem razão, se eu tivesse falado com a minha filha, logo que ela veio com o assunto da sala, não teria chegado aonde chegou. Deixei que ela chamasse a arquiteta, assumisse a reforma e fiquei quieta. Se tivesse dito que não iria prejudicar os outros filhos logo na primeira conversa, não teria passado aquela raiva toda.

 

CONCLUSÃO

É reconhecido que, desde Freud, a psicanálise privilegiou o papel da linguagem na estruturação do psiquismo e no tratamento psicanalítico, porém sabemos que há outras vias de comunicação além da linguagem. Na tentativa de abordar a percepção de determinados pensamentos, de determinadas fantasias ou situações conflituosas, um paciente pode, por exemplo, desencadear uma explosão somática. Procuramos, então, neste trabalho, privilegiar a palavra, mostrando que é através da fala, da verbalização de seus conflitos que o paciente vai conseguir passar do sentido pré-simbólico para o simbólico, assim, refletindo sobre os verdadeiros significados de suas enfermidades, e com isso mudar para melhor sua convivência com o mundo.

Como trabalhamos com seres humanos em vários níveis de desenvolvimento, podemos dizer dessa vinheta o seguinte:

S - Parece que já compreendeu que é falando de seus conflitos e dialogando com seus pares que vai conseguir relações estáveis e respeitosas, não se sentindo mais invadido e violentado, deixando de sangrar pelo ânus, aliviando assim sua retocolite.

G - Por não encarar seus conflitos com maturidade, por não falar de suas necessidades, sente raiva. Sua vontade era esmurrar a filha e acordou com bursite sem conseguir levantar os braços. Por não conseguir enxergar com clareza o seu funcionamento emocional e a necessidade de mudar, defende-se com a miopia, a retinopatia e, com isso, vai vivendo com passos miúdos com artrose nos joelhos.

M - Apesar de não pensar mais em aposentadoria por invalidez, ainda acha que a origem de seus distúrbios está na separação dos pais, mas também no assalto sofrido no banco, porém, parece-me que aquele tiro só veio confirmar seu sentimento de culpa e a necessidade inconsciente de punição por ter desejado a separação de seus pais e a morte de seu pai. Ele se pune com a fraqueza, tontura, sentimento de invalidez, levando-o paulatinamente a morrer para a vida. Apesar de temer a perda da esposa, reproduzindo inconscientemente as desavenças dos pais, não pode ainda assumir o papel de homem, marido e pai.

Para finalizar, poderíamos dizer que a maioria dos pacientes que vivem neste universo psicossomático recusa qualquer ajuda, pois sair do status quo seria mergulhar novamente na experiência traumática da infância. A tarefa do psicanalista consiste em traduzir o drama misterioso que se desenrola nas expressões corporais em verbalizações analisáveis.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAPISANO, H. F. Imagem Corporal. In: Mello Filho, Júlio de. Psicossomática hoje. Porto Alegre. Artes Médicas, 1992, p. 182.         [ Links ]

GRODDECK, G.. Sobre o Isso. Estudos psicanalíticos sobre Psicossomática. São Paulo. Editora Perspectiva S.A., 1992,  p. 29-20.         [ Links ]

EKSTERMAN, A. Medicina Psicossomática no Brasil. In: Mello Filho, Júlio de. Psicossomática hoje. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992, p. 29.         [ Links ]

FREUD, S. Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. O caso de Schreber e artigos sobre técnica. Vol XII. Rio de Janeiro. Imago Editora, 1980. p. 283.         [ Links ]

MCDOUGALL, J. Teatros do Corpo. O psicossoma em psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 22.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Edilberto Clairefont Dias Maia
Endereço eletrônico: edilbertocdmaia@hotmail.com

Recebido em: 01.06.2009
Aceito em: 20.09.2009

 

 

1 Médico psiquiatra e psicanalista, presidente do Centro de Estudos de Psicanálise e Psicoterapia Analítica de Grupo do Pará., Belém, Pará, Brasil.

Creative Commons License