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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo v.6 n.2 São Paulo dez. 2009

 

ARTIGOS

 

A escola como espaço grupal

 

The school as a group space

 

La escuela como espacio grupal

 

 

Maria Liliana Inês Emparan Martins PereiraI,1; Tatiana Inglez-MazzarellaII,III,2

ICoordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão - São Paulo
IIDepartamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
IIIPontifícia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo discutir a importância da configuração grupal na instituição escolar. Partimos da premissa da escola como uma instituição não familiar - principalmente por seu caráter social amplo-, o que demarca uma diferença radical entre o grupo família e o grupo escola. Apesar das instituições família e escola refletirem uma verticalidade dissimétrica entre adultos e crianças, o grupo-classe configura o pertencimento a um grupo horizontal e certa homogeneidade. A partir disto, pretendemos explicitar a necessidade de que o educador perceba que seu trabalho pedagógico ocorre em grupo e que, sendo assim, é necessário manejar as relações grupais para que o processo de ensino-aprendizagem possa se efetivar.

Palavras-chave: Grupo, Escola, Família, Coordenador de grupo, Sujeito.


ABSTRACT

This paper intends to discuss the importance of group configuration at the school institution. We part from the fact that school is a non familiar institution, with a large spectrum of relationship, which marks a radical difference between family group and school group. Although both family and school groups are characterized by a vertical and dissymmetric relation between adults and children, each classroom presents an experience of belonging to a horizontal and, in some ways, homogeneous group. Taking that consideration, we intend to show how important it is for the educator to realize that his/her pedagogic work relies on the group and, therefore, it is essential that he/she can manage group situation, so that the process of teaching and learning can be effective.

Keywords: Group, School, Family, Group coordinator, Subject.


RESUMEN

El presente artículo tiene como objetivo discutir la importancia de la configuración grupal en la institución escolar. Se parte de la escuela como una institución no familiar- principalmente por su carácter social amplio- lo que marca una diferencia radical entre el grupo familiar y el grupo escolar. A pesar de que las instituciones familia y escuela reflejan una verticalidad no simétrica entre adultos y niños, pertenecer al grupo clase configura horizontalidad y una cierta homogeneidad grupal. A partir de esto, pretendemos explicitar la necesidad de que el educador perciba que su trabajo pedagógico se efectúa en grupo y que, siendo así, es necesario manejar las relaciones grupales para que el proceso de enseñanza y aprendizaje se pueda hacer efectivo.

Palabras clave: Grupo, Escuela, Familia, Coordinador de grupo, Sujeto.


 

 

O SUJEITO NOS GRUPOS FAMÍLIA E ESCOLA

O sujeito é para Freud um ser de relações ou nas palavras de Carvalho (Carvalho,1986: 101) "todo sujeito é um sujeito social"3. Ele nasce no grupo família e é a partir deste que se constitui como sujeito. O sujeito do inconsciente se organiza, portanto, a partir da cultura, de uma organização social que se dá na linguagem. O grupo família estabelece formas peculiares de relação com o Outro. O sujeito tem, assim, uma configuração psíquica primordial que será vislumbrada nas relações que mantém também fora da família, com os diferentes grupos e, em especial, na escola. Paralelamente, podemos considerar que o ser humano é também um sujeito de aprendizagem e também aprende com outro. A possibilidade de transmissão, aprendizagem e reposicionamento subjetivo em relação ao herdado se tornam uma diferença fundamental em comparação aos grupos de animais, por exemplo.

Na nossa cultura existem dois grupos fundamentais: a família, espaço primordial e, a escola, espaço de legitimidade da cultura formalizada. O que se espera é que o sujeito reafirme, por um lado, o pertencimento ao grupo familiar, ao assumir-se como alguém desse grupo, mas também ao grupo escola, como um sujeito que aprende e produz cultura.

O grupo sempre foi considerado como um espaço ou organização plural. Desde sua origem etimológica a palavra groppo ou gruppo entendida como "um termo técnico das belas artes que designa vários indivíduos pintados ou esculpidos que compõem um tema" (Anzieu e Martin, 1971: 15), observamos a idéia de agrupamento.

Esta definição é interessante porque fala do grupo como uma representação, e não simplesmente das pessoas concretas que se reúnem em torno de algo comum. Ou seja, o grupo atua a partir de um processo simbólico que compõe uma unidade temática ou, em outras palavras, se organiza a partir de uma tarefa. Como no caso da escola que tem como função principal organizar os grupos ao redor da tarefa de reconstrução das diversas linguagens das quais se serviu a humanidade de forma simbólica.

Outro aspecto interessante de sua etimologia fala de groppo como nó. Em uma releitura poderíamos pensar no enodamento dos sujeitos a partir do laço social, e a escola como um dos possíveis espaços de inserção social que oferece uma pertinência.

 

O CONHECIMENTO COMO CONSTRUÇÃO GRUPAL E SOCIAL

Estamos nos apoiando, para pensar o conhecimento enquanto construção grupal, no conceito de grupo de René Kaës4. Este autor pensa o grupo em uma articulação dos fenômenos grupais com os processos individuais. Mantém o sujeito como sujeito do inconsciente e tenta articular o que surge do sujeito com a utilização que o grupo faz em seu interior. Assim, o grupo é entendido para além da soma de processos psíquicos individuais. Para Kaës é importante que não nos esqueçamos no trabalho grupal com o sujeito no grupo, mas na articulação do sujeito do inconsciente com o processo grupal; em suas palavras: "tento articular o que surge de próprio do sujeito com o modo pelo qual o grupo utiliza tal sujeito em seu próprio processo, no processo do grupo." (Kaës, 2005:38)

Pensar em conhecimento é levar em conta as relações que os homens foram construindo ao longo da história. Construção esta que não ocorre individualmente, mas a partir dos grupos nos quais estamos inseridos, especialmente família e escola. Portanto, o conhecimento é construído pelos grupos a partir do laço social que se estabelece em um determinado espaço e tempo. Sem grupo não há possibilidade de conhecer, não há história.

O conhecimento formalizado como aquele veiculado pela escola teve espaços e organizações diferentes ao longo do tempo. Porém, mesmo quando se tratava de uma relação dual como a do escravo e do aluno se pressupunha que o grupo social sustentava essa relação. Isto significa considerar que o social mediaria esta construção como objeto terceiro da relação entre aluno e conhecimento. Na relação triangular se vislumbra que existe algo que nos precede um legado herdado que será transmitido, algo entre os sujeitos.

Podemos considerar que a escola surgiu, como conceitualiza Ariès5 a partir da descoberta da infância como uma época específica da vida com características e necessidades próprias. É este conhecimento que deflagra a necessidade de cuidados das crianças, seja da família, seja de uma instituição que se ocupasse da sua formação, ou seja, os grupos família/escola deveriam se responsabilizar, cada um a sua maneira, dela.

No início, os alunos seguiam o professor e tinham várias idades. Não existia um local específico para ensinar e o ensino estava centralizado no professor e o importante era o assunto a ser dado.

Na idade média, as escolas eram asilos para estudantes pobres, ou seja, eram principalmente moradias. As mudanças que ocorreram na organização da instituição escolar se devem às novas idéias e sentimentos que se tinha em relação à primeira infância (cinco - seis anos) e posteriormente à segunda infância (sete - doze anos). Assim começaram a se organizar aulas na casa do professor, ou nas salas (scholas) que ele alugava. Crianças pequenas (cinco - seis anos) não se consideravam aptas para a aprendizagem, a idade mínima de sete anos, aos poucos, foi estendida aos nove- dez anos. Até o século XVIII se separavam apenas os adultos dos outros alunos e era comum encontrar adolescentes atrasados.

A origem das classes escolares remonta, segundo Ariès, ao século XV quando se tinha o objetivo de homogeneizar as capacidades e os graus de conhecimento dos alunos organizando-os em classes com um único professor. A preocupação era adaptar o ensino ao aluno com as particularidades da infância. Somente no século XIX se pensa nos agrupamentos por idade. Podemos acompanhar essa trajetória nas palavras do próprio Ariès:

No início do século XVII, a classe não possuía a homogeneidade demográfica que a caracteriza desde o século XIX, embora se aproximasse constantemente dela. As classes escolares que se haviam formado por razões não demográficas serviriam gradualmente para enquadrar as categorias de idades, não previstas de início. (Ariès, 1981: p. 173)

 

A ESCOLA HOJE

A particularidade da escola moderna é a de agrupar pessoas ao redor de uma idéia de homogeneidade, tal como vemos nos grupos-classe ou séries. Esta seleção e montagem grupal da qual não somente se parte- idade, por exemplo, - mas se deseja chegar - se assenta na idéia de que é possível que todos alcancem os mesmos conhecimentos no mesmo espaço de tempo. Julgamos importante aqui ressaltar a diferença entre o comum e o homogêneo, conforme lembra Fernández (2006:178) "algo em comum não significa subjetividades homogeneizadas. Ao mesmo tempo, ressaltar não implica invisibilizar as produções coletivas". A tentativa de homogeneização, além de servir muito mais a iniciativas de controle e coerção, também pressupõe uma neutralização impossível da tensão entre o singular e o coletivo.

A organização da instituição e os agrupamentos escolares podem oferecer um espaço de coesão, força e de incentivo a autonomia de docentes e alunos, mas também um espaço de alienação, de revivência do duplo, do fusional, do indiscriminado, caso não forem aceitas as produções e os percursos singulares de aprendizagem.

O grupo de alunos e as equipes de trabalho podem se tornar muito ameaçadores e persecutórios para o educador que se sentiria, assim, tanto em desvantagem numérica, quanto de força. A sala de aula aqui seria uma arena, espaço de disputas, de rivalidade e autoritarismos, temática tão atual, quando se pensa acerca dos destinos da autoridade do professor. Estas representações do professor e dos alunos são imaginárias e narcísicas. Não que situações de tensão e conflito não aconteçam em sala de aula, mas o espaço da escola precisa ser vivido como um espaço de conhecimento, de troca e de representação onde os conflitos sejam reconhecidos e traduzidos em aprendizagens e desafios relacionais. Para isto, é necessário não apenas um educador que planeje, avalie e ensine, mas um coordenador de grupo.

 

A ESCOLA COMO ESPAÇO COLETIVO E A CLASSE COMO GRUPO

As relações estabelecidas na escola -entre professor e aluno, entre colegas, entre grupo e professor- têm sua origem na relação do sujeito com seu grupo familiar. Segundo Moura (2005:44)

a instituição escola e, principalmente, o professor e colegas de classe são personagens substitutos da "órbita familiar" em que a criança passará a depositar resíduos de situações incompletas- os Complexos, retomando o termo de Lacan (1938)- vividos no contexto familiar.

Inicialmente a figura do professor concentrará os investimentos afetivos da criança por se encontrar em uma posição de autoridade que reeditará sua relação primordial com os pais. É o que se espera desta relação professor-aluno: o estabelecimento de uma relação transferencial para que a aprendizagem possa se estabelecer. Este aspecto dual e vertical da transferência entre aluno e professor não minimiza as relações entre os alunos. Qualificaremos estas relações como múltiplas e horizontais ao incidirem não somente entre os colegas do grupo, mas entre o professor e o grupo-, estabelecendo-se uma rede grupal. Consequentemente, as relações grupais afetam também a aprendizagem e sofrem o efeito da forma complexa como se dão as relações verticais e horizontais.

O educador, com suas próprias referências psíquicas, vive sua função de ensinar sofrendo as pressões relacionais, sociais e institucionais a partir da ambivalência de desejar a superação e a autonomia de seus alunos versus a dependência e a submissão dos mesmos. Enquanto função educadora o controle, o adestramento e a adaptação dos alunos, assim como a exigência curricular a qualquer custo e os métodos de ensino e avaliação autoritários serão abandonados em prol de uma atitude de autonomia e responsabilização dos componentes do grupo. Os alunos poderão ser convocados a aprender e a relacionar-se com os colegas e o professor tendo como parâmetro a independência-dependência a partir da forma original constitutiva.

Em sua função como coordenador de grupo, o educador é aquele que escuta e permite que as falas de todos circulem, entendendo que somente desta forma poderá conhecer seu grupo. Isto lhe permitirá uma leitura do funcionamento do seu grupo em prol da tarefa de aprender. Falar e escutar são faces da mesma moeda que significam que o conhecimento só se constrói a partir da relação do sujeito com a linguagem. Poder escutar, portanto, os discursos singulares e grupais em suas repetições, sobreposições, cristalizações, rachaduras, desvios e múltiplas significações.

O professor enquanto coordenador do grupo classe precisará compreender que o caráter ambivalente faz parte dos grupos e do humano para não polarizar as posições de amor/ódio, rivalidade/cooperação, autonomia/dependência etc. Em outras palavras será necessário que reconheça e administre as transferências do grupo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ANZIEU, D E MARTIN, J. El concepto de grupo. In: ANZIEU, D. E MARTIN, J. La dinámica de los grupos pequeños. Buenos Aires: Kapeluz, 1971, p. 15.         [ Links ]

ARIÈS, P. História social da criança e da família. Parte II: capítulos 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981, p. 173.         [ Links ]

CARVALHO, R. F. DE. "O que se passa neles? O que são?" In: BAREMBLIT, G. Grupos- Teoria e Técnica. Rio de janeiro: Edições Graal, 1986, p. 101.         [ Links ]

FERNÁNDEZ, A. M. O campo grupal: notas para uma genealogia. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 178.         [ Links ]

KAËS, R. Os espaços comuns e partilhados: transmissão e negatividade. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005, p. 38.         [ Links ]

MOURA, F. Um olhar clínico na sala de aula. Uma nova metodologia pedagógica? Estilos da clínica. jun. 2005,v. 10, nº 18, , p. 36-53. ISS 1415-7128, p. 44.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Tatiana Inglez-Mazzarella
Endereço eletrônico: timazza@uol.com.br

Maria Liliana Inês Emparan Martins Pereira
Endereço eletrônico: liliana@bratex.net

Recebido em: 21.08.2009
Aceito em: 19.10.2009

 

 

1 Pedagoga, psicopedagoga, psicanalista, mestre em Psicologia e Educação pela Faculdade de Educação da USP, professora de cursos de pós-graduação do COGEAE, São Paulo, Brasil.
2 Pedagoga, psicanalista, membro de Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, mestre e doutoranda em Psicologia Clínica pela PUC, São Paulo, Brasil.
3 Roberto F. de Carvalho desenvolve este conceito partindo de Freud e discute as diferentes posições teóricas sobre grupos.
4 Sabemos que o conceito de grupo não é consensual; a partir de quais referências estão em pauta, há compreensões bastante diversas e até contraditórias.
5 O autor trata em seu livro "História social da criança e da família" a história da instituição escolar.

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