SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.7 issue1Indications for a couple therapy author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Vínculo

Print version ISSN 1806-2490

Vínculo vol.7 no.1 São Paulo June 2010

 

ARTIGOS

 

Vínculos conjugais na contemporaneidade: revisitando parâmetros definitórios

 

Conjugal bonds in contemporary: revisiting definitors parameters

 

Vínculos de pareja en la contemporaneidad: revistando parámetros definitorios

 

 

Carla P. DonnamariaI,1; Fátima R. M. Nascimento2; Antonio TerzisI,3

IPontifícia Universidade Católica de Campinas

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo propõe uma re-leitura dos parâmetros definitórios de casal apresentados por Puget e Berenstein, tendo em vista a relevância dos mesmos nas pesquisas de referencial psicanalítico voltadas à compreensão dessa instituição, atualmente legitimada em diferentes configurações e inserida num cenário social diverso daquele no qual os parâmetros foram inicialmente estabelecidos. Para tanto, retomamos as principais pontuações dos autores supracitados, articulando-as com observações quanto aos fenômenos que colaboraram na transformação do chamado mundo moderno em reconhecido mundo contemporâneo, incluindo estudos e discussões da Psicologia, da Sociologia, e da área do Direito, para a atualização das variáveis em torno da dimensão trans-psíquica, relevante na proposta dos nossos principais referenciados. Concluímos que os parâmetros definitórios, tal como originalmente concebidos, preservam seu valor enquanto referencial para se pensar o casal, em sua dinâmica e variabilidade. Deve-se, contudo, cautela quanto às tipologias vinculares, as quais, no cenário contemporâneo, podem ser confundidas com movimentos do casal em resposta a demandas e valores de seu contexto de vida, e não, necessariamente, expressando uma dinâmica inconsciente própria do casal.

Palavras-chave: Contemporaneidade; Psicanálise; Configurações vinculares; Casal.


ABSTRACT

This study proposes a re-reading of couple’s definitories parameters presented by Puget and Berenstein, considering their relevance in researches focused on the psychoanalytic understanding about this institution, nowadays/now legitimized in different configurations and placed in a different social setting than the parameters that were initially set. For this, we take up the main ideas of the authors mentioned above, linking them with observations about the phenomena that collaborated in the processing of so-called modern world in recognized contemporary world, including studies and discussions of psychology, sociology, and law’s area, for update of the variables on the trans-psychic dimension, relevant in the proposal of our main references.  We concluded that the definitories parameters, as originally designed, preserve its value as reference to think the couple in their dynamics and variability. It is necessary, however, caution about the types bound, which, in the contemporary scenario, may be confused with the couple’s movements in response to demands from its context and values of life, and not necessarily expressing a couple’s own unconscious dynamics.

Keywords: Contemporary; Psychoanalysis; Setting link; Couple.


RESUMEN

Este estudio propone una vuelta a los parámetros definitorios de la pareja presentados por Puget e Berenstein, en vista de la relieve de su importancia en investigaciones de referencia psicoanalítica dedicadas a la comprensión de esta institución, actualmente legitimada en diferentes configuraciones y que se coloca en contexto social  distinto de aquél en lo cual los parámetros fueran establecidos. Para ello, articulamos sus principales ideas con observaciones sobre los fenómenos que han colaborado en el cambio del llamado mundo moderno en el reconocido mundo contemporáneo, incluidos referencias de la Psicología, Sociología, y del ámbito de la ley, para actualización de las variables del espacio trans-psíquico, relevante en la propuesta de nuestros principales referidos. Concluimos  que los parámetros definitorios, como originalmente diseñados, preservan su valor como referencia para pensar la pareja en su dinámica y variabilidad. Sin embargo, se recomienda precaución acerca de los tipos vinculares, que, en el escenario contemporáneo, pueden ser confundidos con los movimientos de la pareja en respuesta a las demandas y valores de su contexto de vida, y no necesariamente expresan una dinámica propia de la pareja.

Palabras clave: Contemporaneidad; Psicoanálisis; Configuraciones vinculares; Pareja.


 

 

Partindo da observação de que a dinâmica das relações conjugais é influenciada pelos fatores culturais, sociais, econômicos, bem como pelas particularidades do momento do processo civilizatório no qual se inserem, propomos uma re-leitura sobre os parâmetros definitórios de casal, discorridos por Puget e Berenstein (1993), a fim de articulá-los com variáveis contextuais que vieram marcar o cenário da contemporaneidade, conforme reveladas por outros estudos citados ao longo deste trabalho.

 

Os Parâmetros Definitórios

Na essência do desenvolvimento dos parâmetros está a constatação de Puget e Berestein (1993) sobre a peculiaridade do vínculo conjugal quanto à presença de certos elementos constantes e de pressupostos de conduta.

O primeiro parâmetro apresentado pelos autores é o da cotidianidade, fazendo referência à estabilidade temporal-espacial, caracterizada pelos intercâmbios diários, organizando o ritmo de encontros e não-encontros do casal, que serve como marco para a aquisição da identidade. Afirmam os autores:

A estabilidade no vínculo pode ser semantizada de diferentes maneiras: como vida [itálico dos autores], equivalente ao predomínio de Eros, se ao longo da complexificação da identidade, o ritmo de estabilidade foi um sustentáculo para a possibilidade do crescimento e a abordagem de situações novas. Mas também pode se impregnar de Tanatos e transformar-se em um equivalente de morte [itálico dos autores], estabilidade cerceante, que no casal é registrada como tédio, aborrecimento (Puget e Berenstein,1993 p. 7).

Compreendemos, assim, que o modo como o casal busca alcançar a estabilidade é mais relevante do que a estabilidade em si. Retomaremos este ponto nas considerações adiante.

O segundo parâmetro, o projeto vital compartilhado constitui-se da ação de unir, e no casal, re-unir representações de realizações e conquistas futuras. O primeiro projeto vital do par conjugal, segundo os autores, é compartilhar de um espaço-tempo vincular. E seu modelo paradigmático passaria pela criação de filhos, reais ou simbólicos.

O terceiro parâmetro faz referência às relações sexuais, pressupondo sua manutenção, não limitada à atividade genital propriamente dita.

O quarto e último parâmetro apresentado é o da tendência monogâmica, a qual pressupõe o relacionamento com um só cônjuge, em conotação de preferência.

Ao redor dos parâmetros definitórios, Puget e Berenstein (1993) afirmam a existência de verdadeiras relações contratuais (acordos e pactos inconscientes).

Os acordos inconscientes são resultado de um tipo de combinação entre aqueles aspectos compartilháveis, partindo de cada um dos espaços mentais dos sujeitos, e resultam do desdobramento da tendência de unificar seus funcionamentos mentais e vinculares. (...) Os pactos inconscientes [itálico dos autores], apesar de poderem reforçar os acordos [itálico dos autores], tendem a especificar elementos diferentes, provenientes do espaço mental incompartilhável de cada ego. Compartilhar o incompartilhável obriga os egos a realizar uma série de concessões, para, dessa maneira, pactuar, fazer o desejo do outro, colocando se em posição favorável (Puget e Berenstein,1993, p. 21).

Essas relações contratuais podem ser entendidas como uma incorporação, por identificação, ou seja, um ego incorpora um determinado traço do outro que passa, assim, a funcionar como próprio: o acordo como uma apropriação mútua e compartilhada e o pacto como uma permuta de algo incompartilhável, por algo equivalente ao ego, ambos visando à conservação do vínculo.

 

Tipologias do Vínculo Conjugal

Com base no reconhecimento de emoções básicas circulantes na semantização dos parâmetros definitórios, Puget e Berenstein (1993) esboçam as possíveis tipologias de vínculo conjugal. Para isto, partem do que identificam como a estrutura zero de casal, definida como a “matriz inconsciente na qual a sociedade situa pessoas de sexo diferente que nela circulam e para as quais incluir-se em um vínculo de casal leva necessariamente a ocupar um desses dois lugares [esposo/esposa]” (Puget e Berenstein,1993 p.34), e verificam os diferentes investimentos que esta recebe por parte dos casais:

•Estrutura 1: Dual

Caracterizada pelo predomínio do vínculo do tipo fusão, sob idealização mútua, e diferenciada por possibilidades de simetria (ou de gemelaridade, definida ainda em erotizada e tanática) ou de assimetria estável (ou complementariedade enlouquecedora), embasadas no modelo de Objeto Único, onde o outro é dotado de caráter de exclusividade, sem possibilidade de substituição, e cuja ausência implicaria numa ameaça de aniquilação.

Na gemelaridade de tipo erotizada, os membros do casal tendem a definirem-se como um ser único. A falta de um marco espaço-temporal, para estes, tira-os da possibilidade de confronto ante a convicção ilusória do igual. O projeto vital é único e limitado, sustentado pela recusa de qualquer representação do diferente (clivagem). O pacto é pela imobilização do tempo objetivando manter o vínculo sempre igual. A maior probabilidade de conflito ocorre em torno das relações sexuais, uma vez que, para aceder à genitalidade, é necessário o reconhecimento das diferenças. E a tendência monogâmica se confirma, visto a superposição entre monogamia e fusão.

Na gemelaridade tanática continua a fantasia de fusão e dependência máxima, porém produtoras de mal-estar. Cada ego está conectado principalmente com seu objeto imaginado, na tentativa de manter-se afastado de tudo aquilo que frustre sua ilusão de possuí-lo, pois, a presença real do outro representa uma ameaça a essa ilusão. Exige-se a adivinhação e antecipação e, ao mesmo tempo, a aproximação entre eles é rechaçada, pois, compartilhar é persecutório e a autonomia inconcebível. A distância é regulada pela angústia confusional. A cotidianidade, aqui, é produtora de mal-estar. A tendência monogâmica é respeitada, porém subjaz a fantasia de poder alguma vez realizar uma relação com o objeto imaginado ou com algum outro que o represente.

Na tipologia denominada de complementaridade enlouquecedora, ou de assimetria estável, o casal sela, inconscientemente, um pacto de não-agressão, contendo, de maneira geral, a idéia de concessão. Tanto o cotidiano quanto o projeto vital são o resultado do desejo de apenas um. As relações sexuais são de nível pré-genital, e a tendência monogâmica não é conflitiva.

•Estrutura 2: Terceridade Limitada

Aqui, o terceiro ocupa um lugar de excluído, em diferentes posições. Continua, como na Estrutura 1, uma dualidade indiscriminada, porém não auto-suficiente. Sob funcionamento do tipo pervertedor-pervertido, o terceiro ocupa a posição do observador impotente. O casal utiliza-se deste apenas para triangular a relação e não sucumbir à indiscriminação. De sexualidade pré-genital insatisfatória, o cotidiano é marcado por desencontros e encontros idealizados. Muitas vezes o projeto vital implica numa manifestação de separação, mas, em condição latente, prevalece a possibilidade de conservar esse funcionamento, seja qual for o projeto. A tendência monogâmica não é respeitada. Sob funcionamento enciumante-ciumento, um dos egos é visto pelo outro como fundido a um terceiro. Sob funcionamento de hiperdiscriminação, a condição de dois egos aparentemente isolados é compensada pela hipertrofia de alguns dos parâmetros definitórios. Divergências dificultam a cotidianidade, o projeto vital é resultado da superposição de dois projetos individuais, ou, pelo menos, com marcas individuais, e a tendência monogâmica não é tolerada. Relações de amantes chegam até mesmo, em alguns casos, a serem fomentadas. Relações sexuais são escassas.

•Estrutura 3: Terceridade Ampla

Nesta, há dois sujeitos discriminados, com representação interna do outro. A linguagem tem código e valor de comunicação, em condição de desfazer mal-entendidos. O compartilhar comporta o intercâmbio de significados diferentes a respeito do comum, podendo realizar recortes sem temor à perda do vínculo. O cotidiano remete a um lugar de reencontro no tempo e de conhecimento renovado. O projeto vital compartilhado inclui o terceiro, com capacidade de elaboração do sentimento de exclusão. A fusão não é evitada, mas, por outro lado, não é necessária. As relações sexuais podem passar por momentos de assimetria de desejo dos dois egos. A tendência monogâmica resulta de uma elaboração genital da relação de Objeto Único:

Chamamos essa condição de passagem de Objeto Único a Objeto Unificado. Neste último, considerado o índice de acordos e o tempo de elaboração para determinados intercâmbios, cada um se constitui no melhor acompanhante para o outro, não mais sendo aquele Objeto Único de sobrevivência infantil, com o caráter de obrigatoriedade, descrito para os vínculos de tipo 1 [dual] ou de tipo 2 [terceiridade  limitada], mas um outro, buscado por sua especificidade. A elaboração genital de Objeto Unificado é a de um objeto com especificidade (Puget e Berenstein, 1993, p. 48).

Após a exposição das diferentes tipologias do vínculo conjugal propostas por Puget e Berenstein (1993) dirigimos nossa atenção para as transformações sociais que vieram definir o mundo que passamos a reconhecer como o da contemporaneidade, nas variáveis que nos instigaram à releitura dos parâmetros definitórios de casal.

 

Da modernidade à contemporaneidade: a legitimação da diversidade

Um dos mais instigantes traços do cenário contemporâneo, no que diz respeito aos relacionamentos conjugais, está na extinção de determinados pressupostos quanto a papéis socialmente definidos de ser marido e de ser esposa. Vaitsman (1994) observa o nascimento de relações matrimoniais “flexíveis e plurais”, onde os casais definem seu próprio jeito de ser, e com aval da sociedade para que sejam do jeito que quiserem. E só não estão livres porque estão obrigados a serem felizes, como observa Rossi (2003). Na era moderna, quando os parâmetros definitórios foram então esboçados, a sociedade ainda preservava para o casamento o valor de instituição indissolúvel, cujos integrantes recebiam tarefas bem demarcadas: mulher dona de casa e marido provedor. Porém, com o aumento do número de mulheres em cargos mais elevados, com as transformações diversas decorrentes dos movimentos de globalização, dos avanços tecnológicos que trazem o efeito colateral do consumo desenfreado, entre outras variáveis, a sociedade se transforma. E se a sociedade se transforma é porque suas unidades se transformam. O casal é uma destas unidades.

Paulatinamente, em decorrência destas transformações, o casamento tradicional, regido pela dominação masculina, vem cedendo a uma nova forma de relacionamento onde a mulher reivindica igualdade e há uma negociação constante, levando a intimidade a se estruturar fundamentalmente com base em valores de amizade e de companheirismo.

Giddens (1993) pontua as novas formas de relacionamento decorrentes das transformações na intimidade e na vida dos indivíduos, baseados na igualdade e princípios democráticos, em três categorias básicas: 1) o amor confluente, que presume igualdade na relação, nas trocas afetivas e no envolvimento emocional, transformando a realização do prazer sexual recíproco em um elemento chave na manutenção ou dissolução do relacionamento; 2) a sexualidade plástica, descentralizada, desvinculada aos imperativos da reprodução, possibilitada pela emancipação sexual e autonomia feminina que provocaram as mudanças nas relações de gênero; 3) o relacionamento puro, centrado no compromisso, na confiança e na intimidade, diferenciando-se da idéia de casamento como uma “condição natural”. Nesse tipo de relacionamento o que conta é a própria relação e a sua continuidade está condicionada ao nível de satisfação que cada um dos membros do casal pode obter da mesma.

 

Os Parâmetros diante do novo contexto

Exposto o perfil de uma sociedade onde a vida íntima torna-se centralmente sustentável pelo exercício de concessões e pela manutenção da satisfação, voltemos a cada um dos parâmetros.

Quanto à Cotidianidade, essencialmente caracterizada pela estabilidade temporal-espacial e pelos intercâmbios diários, tem se revelado o parâmetro mais sujeito às transformações sociais citadas. Há cônjuges, por exemplo, que, por motivos profissionais, passam a viver à distância por dias, semanas, ou até mesmo meses. Com o aumento da inserção da mulher no mercado de trabalho, numa sociedade que valoriza como nunca o sucesso e a individualidade, uma eventual necessidade de mudança de local de trabalho do marido deixa de implicar uma mudança de endereço da família. Se não levarmos em conta estes novos valores, correríamos o risco de prematuramente remetermos um casal à tipologia gemelaridade erotizada, para a qual, como vimos no primeiro item deste estudo, a falta da cotidianidade colaboraria para a manutenção da idéia de fusão que teria o casal.

No tocante ao projeto vital compartilhado, o modelo apresentado como o paradigmático, o de ter filhos, parece perder este status. Rios (2007) entrevistou casais que no mundo contemporâneo assumem a opção de não tê-los, ou desprivilegiam sua vinda em prol de outros projetos de vida. Como observa a autora, embora Puget e Berenstein (1993) não afirmem categoricamente o desejo de ter filhos como indicativo de normalidade, usam o exemplo dos casais sem filhos por opção para ilustrar um contexto de complementariedade enlouquecedora, de tipo amparador-desamparado. Rios argumenta:

(...) o fato de um projeto não incluir filhos não significa que não haja uma estrutura de terceiridade ampla, com aceitação do diferente – seja o diferente que se mostra a cada dia no próprio cônjuge, seja qualquer tipo de terceiro. Assim como o fato de se incluir um filho no projeto não significa uma plena capacidade de recebê-lo e suportá-lo, em todos os sentidos da palavra. A grande questão é a de que, em uma época em que o pensamento unitário deixa de fazer sentido, e que mais de um modelo de família pode ser reconhecido como legítimo, o olhar contemporâneo possa contemplar a diversidade e a alteridade, permitindo que o ser – humano, casal, família, sociedade – possa se colocar sempre como devir, com toda sua possibilidade de desenvolvimento e de criatividade (RIOS, M. G. 2007 p.137).

E se não pela decisão voluntária de não ter filhos, há casais que, aproveitando da condição social que lhes oferece liberdade de escolha, confiantes nos avanços da medicina reprodutiva, ou que simplesmente cedem à pressão pela busca do sucesso individualizado, adiam o projeto parental até a proximidade do fim do ciclo reprodutivo. A impossibilidade de realização do projeto parental e as repercussões para a vida conjugal decorrentes desse movimento, não estão necessariamente relacionadas a uma tipologia que já o caracterizassem. Além disso, os significados atribuídos ao projeto parental e seus efeitos determinantes na intersubjetividade do casal, sobretudo nos discursos que reproduzem a hegemonia da maternidade biológica e as representações de família, acabam intensificando a dor e sofrimento daqueles casais que enfrentam a esterilidade e, por vezes, se sobrepondo ao desejo genuíno de ter um filho (NASCIMENTO, 2009).

À parte o projeto de filhos, a sexualidade permanece apontada como central e inquestionável na existência do casal, ao ponto de sua falta implicar uma ameaça ao edifício conjugal (FÉRES-CARNEIRO, 1998; BOZON, 2003). Por outro lado, toda vida conjugal é atravessada por questões da cotidianidade, para a qual o mundo contemporâneo oferece constantes desafios a sua estabilidade. Se, por exemplo, um casal passa a viver à distância por dias, às vezes por semanas, por adaptação a uma demanda externa a sua própria dinâmica, ou que independe da forma como o casal desejaria conduzir sua vida íntima, ainda assim não poderíamos inferir que não haveria a manutenção das relações sexuais, a não ser quando a reduzimos ao encontro físico e genital, e se desconsiderarmos a qualidade e a intensidade com as quais poderiam viver os citados casais, em suas oportunidades de encontro. Ou seja, a investigação da presença deste parâmetro não pode ser reduzida a qualquer crivo genérico de avaliação.

Quanto à tendência monogâmica, encontramos discussões na área do Direito que nos levam a ressalvas também quanto a este quarto parâmetro. Donoso (Donoso, 2009) nos informa que apesar do sistema jurídico brasileiro ser regido pelo princípio da monogamia, “... em Direito à Família não se deve permanecer no apego rígido à dogmática, o que tornaria o julgador cego à riqueza com que a vida real se apresenta” (p. 3). E cita alguns casos nos quais vidas conjugais estáveis concomitantes ganham legitimação. Seria suficiente apenas um único caso para que esse parâmetro fosse comprometido, caso Puget e Berestein (1993) não tivessem o cuidado científico de falar em “tendências”, já que em ciência basta uma exceção para derrubar uma afirmativa generalizante.

 

Conclusão

Apesar das necessárias ponderações quanto à sua aplicação, concluímos que os parâmetros definitórios propostos por Puget e Berenstein para o reconhecimento do casal, tal como originalmente concebidos, preservam seu valor enquanto referencial para o estudo dessa particular instituição. Cautela, contudo, é devida para os procedimentos de avaliação e diagnóstico, pois, como vimos, os movimentos do casal em resposta às demandas e valores de seu contexto podem conduzi-lo a vivências similares àquelas decorrentes de uma tipologia vincular específica, caso a vivência estivesse justificada pela dinâmica inconsciente do próprio casal.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOZON, M. Sexualidade e conjugalidade: a redefinição das relações de gênero na França contemporânea. Cadernos Pagu, Campinas, vol. 20, p. 131-156,2003.         [ Links ]

DONOSO, D. União estáveleentidadesfamiliaresconcomitantes: o poliamor como critério jurídico do Direito de Família, 2009. Disponível em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.ph p/buscalegis/article/viewFile/30168/29562>. Acesso em: 03 fev. 2009.         [ Links ]

FÉRES-CARNEIRO, T. Casamento contemporâneo: o difícil convívio da individualidade com a conjugalidade.Psicologia Reflexão e Crítica, Porto Alegre, vol.11, n.2, p. 379-394, 1998.         [ Links ]

GIDDENS, A. A transformação da Intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: Ed. UNESP, 1993. 228 p.         [ Links ]

NASCIMENTO, F. R. M. Adiamento do projeto parental: um estudo psicológico com casais que enfrentam a esterilidade. 2009. 170f. Dissertação de Mestrado em Psicologia como Profissão e Ciência - Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas.         [ Links ]

PUGET, J.; BERENSTEIN, I. A psicanálise do Casal. São Paulo: Artes Médicas, 1993. 170 p.         [ Links ]

RIOS, M. G. Casais sem filhos por opção: análise psicanalítica através de entrevistas e TAT. 2007. 183f.  Dissertação de Mestrado em Psicologia Clínica - Universidade de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]

ROSSI, C. Os novos vínculos conjugais: vicissitudes e contradições. In: GOMES, P. B. (Org.). Vínculos Amorosos Contemporâneos. São Paulo: Callis, 2003. cap. 5, p. 77-108.         [ Links ]

VAITSMAN, J. Flexíveis e plurais: identidade, casamento e família em circunstâncias pós-modernas. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. 203 p.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Carla P. Donnamaria
E-mail: carlapd@uol.com.br

Fátima R. M. Nascimento
E-mail: fatimamn@gmail.com

Antonio Terzis
E-mail: aterzis@uol.com.br

Recebido em: 01.08.2009
Aceito em: 21.03.2010

 

 

1 Psicóloga, Mestre e Doutoranda em Psicologia como Profissão e Ciência pela PUC-Campinas/SP, bolsista CAPES.
2 Psicóloga, Mestre em Psicologia como Profissão e Ciência pela PUC-Campinas/SP
3 Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia como Profissão e Ciência da PUC Campinas/SP.

Creative Commons License