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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.7 no.1 São Paulo jun. 2010

 

ARTIGOS

 

Transformando as demandas sociais em espaços terapêuticos

 

Transforming social demands into therapeutic spaces

 

Transformando las demandas sociales en espacios terapéuticos

 

 

Ana Margarida T. Rodrigues da Cunha1; Marilda Goldfeder2

Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A transmissão e representação dos vínculos sociais, suas repercussões para o psiquismo e relações interpessoais, apontam insegurança, confusão e a necessidade de novos espaços e instrumentos terapêuticos. Os avanços tecnológicos e dos meios de comunicação, imprimiram grande velocidade às transformações vividas pela Cultura contemporânea, repercutindo nas famílias e instituições além de comprometer sua função de comunicar e transmitir valores e compromissos, inerentes aos diferentes tipos de vínculos. As demandas de elaboração das mudanças e transmissão de valores em diferentes contextos chamam a atenção para a comunicação, a clareza na transmissão das regras e expectativas, para os ritos e mitos, segundo as autoras. Para fazer frente à perda da segurança dos modelos instituídos da vida social, propõe o grupo e o referencial vincular, como instrumentos para ampliar e flexibilizar as possibilidades de atuação nos diferentes ciclos vitais, nos rituais de passagem, na comunicação, até no uso da linguagem. Fica pois o convite, para a criação e discussão de possibilidades inexploradas.

Palavras-chave: Família; Vínculos; Demandas sociais; Ritos; Comunicação.


ABSTRACT

The transmission and representation of social binds its repercussion for psychological development and inter personal relationship, point out to insecurity, confusion and the need of new spaces and therapeutic instruments. Technological development and new ways of communication, pushed great velocity to contemporaneous Culture transformations, interfering with families and institutions, besides of compromising its functions of communicate values and commitments, as part of various types of bonds. Social demands of working trough changes and its meanings, values transmission on different contexts, ask for attention on communication, and clarity in transmission of rules and expectations, into rituals and myths says the authors. To face the lost of security on institutionalized patterns, they propose working on groups and binds, as instruments for extend and get more flexibility and possibilities of working on vital cycles, in passage rituals, on communication and even on language use. So, the invitation is for creating and to discuss unexplored possibilities for social demands.

Keywords: Family; Linking; Social demands; Rituals; Communication.


RESUMEN

La transmisión y representación de los vínculos sociales, sus repercusiones para el desarrollo psíquico y relaciones interpersonales, apuntan  inseguridad, confusión y la necesidad de nuevos espacios y instrumentos terapéuticos. Los avanços tecnológicos y de los medios de comunicación, imprimieron grande velocidad a las transformaciones vividas pela cultura contemporánea, repercutiendo en las familias y instituciones además de comprometer sus funciones de comunicar y transmitir valores y compromisos inherentes a los diferentes tipos de vínculos. Las demandas de significación, elaboración de las mudanzas y transmisión de valores en distintos contextos,llaman la atención para la comunicación, la clareza  en la transmisión de las reglas y expectativas, para los rituales y mitos, segundo las autoras. Para hacer frente a la  pérdida de la segurança de los modelos instituidos de la vida social, proponen  lo grupo y lo referencial vincular, como instrumentos para ampliar y flexibilizar las posibilidades de actuación con los diferentes ciclos vitales, los rituales de pasaje, la comunicación y  mismo en lo uso de la linguagem. Fica así, la invitación para la creación y la discusión de posibilidades inexploradas.

Palabras clave: Familia; Vínculos; Demandas sociales; Ritos; Comunicación.


 

 

O objetivo deste trabalho é pensar a comunicação, como instrumento terapêutico na abordagem dos vínculos familiares e sociais, prestando-se ainda a refletir, através de sua funcionalidade e ou disfuncionalidade, a organização que a sustenta.

“As perturbações na transmissão psíquica transgeracional, dão lugar a uma patologia variada que têm como base comum, as perdas e lutos não elaborados ou uma série de situações em geral traumáticas que evocam diversos graus de violência do nível intra e intersubjetivo, interferindo na capacidade de organizar representações e simbolizações do aparelho psíquico singular ou do grupo familiar” (Correa, 1998 p. 64).

Poderíamos pensar então, que no processo de transmissão de valores e normas culturais, possam ocorrer dificuldades de representação e simbolização daqueles conteúdos que não tendo sido suficientemente metabolizados, carecem da elaboração adequada para mediar as transformações da experiência, através das palavras, mitos, ritos ou representações sócio-culturais.

O foco que desejamos imprimir neste trabalho, diz respeito aos vínculos com o macro-contexto social, mediados pela palavra e lei, regulados pelo pertencimento a um grupo, uma família, instituição, na sua interação com a cultura; portanto, aos vínculos transubjetivos, no contexto das grandes e rápidas transformações que temos vivido.

Adaptar-se ativa e criativamente à sociedade e cultura contemporâneas, nos envolve a todos, na busca de sintonia, integração e elaboração, destas transformações.

Bons tempos aqueles em que sabíamos o que esperavam de nós! As demandas familiares assim como as sociais estavam instituídas e aconteciam naturalmente na vida de cada sujeito, cada família, nos diferentes contextos e ciclos vitais. É verdade que a continência para o diferente era pequena, campo fértil para preconceitos e modelos previsíveis, compartilhados e moldados pela cultura vigente. Em casa, nas escolas, a comunicação de valores, rituais e comportamentos adequados a cada situação, eram transmitidos sem grandes contradições, permitindo uma aprendizagem no campo social que servia de apoio e dava segurança ao “ser” de cada um em conformidade com sua pertença a determinada classe social, gênero, família, nacionalidade, estado civil...

A socialização produzia seres humanos moldados em nome de um bem comum e o destino dos diferentes, subprodutos indesejáveis, era a marginalidade.

Mas afinal, bons tempos para quem e para quê?  Porque o saudosismo? Pela insegurança e confusão engendradas pelas mudanças? Pensamos que o saudosismo, a insegurança, a confusão, são sintomas que apontam para a necessidade de pensarmos seu significado e desdobramentos para o psiquismo, para a convivência e a interação com o meio social.

Os tempos são outros agora. Evoluindo de comunidades paralelas, modelos diferentes foram aparecendo e se integrando par e passo e através, dos grandes avanços tecnológicos e dos meios de comunicação. O ideal de integração entre os povos (a aldeia global), entre classes sociais, corpo e mente, transformaram-se em ideologias que escorregam muitas vezes para a outra face da mesma moeda, levando a confusões e demandando significações. O comum, deixa de ser valorizado para dar lugar ao original, o diferente; ao ideal “ser” (as vezes parecer), em detrimento do “pertencer”. Ao mesmo tempo, os meios de comunicação nos invadem, dizendo o que devemos ser, como nos comportar, o que é politicamente correto sentir, falar, fazer; “por pensamentos palavras e obras”.

Maria Cristina Rojas (2005), comenta como o pensamento moderno, sustenta modalidades de exclusão apesar das revisões e atualizações teóricas e clínicas, citando como exemplo a heterossexualidade e o modelo da família burguesa como ideal social que exclui as diferenças, em oposição à nova lógica do pensamento marcado pela complexidade e diversidade de configurações.    Nossos referenciais ficam então desafiados, na busca do diálogo e equilíbrio ótimo entre o indivíduo e o grupo, entre as instituições e a cultura entre o ser e o pertencer, entre o que permanece e o que se modifica nas novas configurações vinculares.

Como conseqüência do borramento das diferenças, a ânsia por discriminar-se, individualizar-se, convive com massificação e estereotipia de respostas que devem servir para todos. Neste processo de transformação, perdeu-se o significado de muitas palavras do universo familiar: tia pode ser professora, casar pode ser coabitar, ficar pode ser conversar, também namorar, e namorar pode significar casar, se incluir convivência por mais de dois anos. (Não eram cinco?). No universo profissional, por exemplo, ter tido um emprego estável por vários anos (um dado bom em um currículo antigamente), pode significar acomodação, falta de ambição. Confiança é uma palavra cujo sentido se modificou: virou sinônimo de ser bôbo ou no mínimo se tornou ambíguo. Esperto é ser desconfiado, não cair nas armadilhas veiculadas pelo telefone, internet; exigir comprovação de identidade para o cara que se diz prestador de serviços, ou para a voz que pede socorro ao telefone: “mãe, estou na mão dos bandidos!”. Ser esperto é o que antes conhecíamos como perseguido paranóide? Isso nos remete à importância da comunicação, instrumento privilegiado da transmissão intergeracional. Afinal, o que vamos transmitir; como lidar com a transição, neste processo vital para o crescimento?  A conversa que se segue, exemplifica este caldeirão onde distintas gerações tentam encontrar uma linguagem comum:

- Alô, Mãe! Acabei de me casar...

- Como assim?

- Viemos ao cartório pra fazer uma declaração de união estável; pro seguro saúde, sabe? Descobrimos que é igual ao casamento, com escolha para comunhão ou separação de bens e tudo; então casamos.

- Mas isso não é casamento; e os votos, o que diz a sua carteira de identidade? Diz solteiro não é? Parece casamento, mas não é.

Dias depois...

- Mãe ficamos noivos! Vou mandar as fotos por e-mail.

- Com pedido e tudo, filho? Parabéns; passa o telefone pra minha nora.

- Ora essa, diz o pai, pensei que estava acertado que não houve casamento! Portanto você ainda não tem nora.

- Vocês não têm jeito mesmo! Diz a irmã.

Compreender a complexidade das relações e fenômenos do campo grupal, institucional e social, suas transformações e conseqüências é condição para a eleição de abordagens e recursos que ao mesmo tempo abracem as grandes transformações e preservem o que na linguagem de Janine Puget (1993) são os parâmetros definitórios das relações, dos vínculos e se expressam na comunicação. É o cuidado com os vínculos nas suas diferentes dimensões: intra, inter e transubjetivas que caracteriza nosso referencial, a Psicanálise dos Vínculos o que inevitavelmente organiza nossa tarefa em torno da comunicação, interação e interdependência do indivíduo, família, sociedade e cultura.

Transcendendo os limites da família de origem, cada indivíduo se transforma em portador de um mandato de continuidade histórica e da espécie através de valores ógicos, científicos e éticos entre outros, nos dizem Janine Puget e Berenstein (1993). Consideram ainda, que a transmissão se dá, via mitos, ritos, tradição e ainda por normas, que distribuem papéis e hierarquias, estruturantes da identidade social. A dificuldade de definir e caracterizar as representações inconscientes relativas ao sociocultural (transubjetivo), requer que se leve em conta as raízes da identidade social, assim como as do sentimento de pertença, os usos e costumes, hábitos compartilhados e também os ritos dizem eles. (Puget & Berenstein, 2007). Em seu trabalho “Pertencimento” (Silva, 2000) a autora nos mostra como este, enquanto “sustentáculo narcisista, favorece o desenvolvimento físico, psíquico e cultural do ser humano e ao se articularem nos níveis intra, inter e transubjetivo, permitem a continuidade transgeracional”. Ao mesmo tempo, fazem do indivíduo um ressignificador, um criador e um transmissor da cultura; um “sujeito do grupo”.

As grandes transformações tornaram imperiosa, a necessidade de espaços de elaboração das mudanças e ressignificação das relações e ainda dos diferentes dispositivos terapêuticos que dispomos. Tais demandas, porém, submetidas que estão às leis do mercado, ao dogmatismo religioso, às pesquisas de opinião, à propaganda, aos modismos, muitas vezes travestidos de ciência, não encontram continentes adequados para pensar e significar.

Aqui, portanto, reside um terreno propício para uma atuação grupal no campo das demandas sociais, na elaboração, significação das transformações. Desta elaboração depende o “produto” a ser transmitido e ela não ocorre sem um continente adequado para isto; tanto interno, como externo. Nos remetem a abordagens diferentes de um grupo terapêutico clássico, constituindo-se mais à semelhança dos rituais de passagem, na busca de elaboração das perdas e lutos próprias das crises de desenvolvimento.

A adaptação aos novos papéis e funções que o ser profissional, ser mulher, homem, pai, mãe, casal, estudante, têm sido retardadas na atualidade, pela própria Cultura, que faz da adolescência, do não envelhecer, o ideal de ser. Problemas de pertença, inclusão e exclusão têm transformado os costumes, a classificação do normal e patológico, as leis e também as abordagens terapêuticas que, a partir das mudanças de paradigmas teóricos, se abrem para novas e criativas experiências.

O dispositivo grupal, o potencial das abordagens dos vínculos familiares, apontam resultados promissores

“...exigindo de nós uma adaptabilidade e o desenvolvimento de novas estratégias mais sintonizadas com as características dos novos contextos e objetivos. Isso introduz porém, uma precariedade em relação ao referencial que dispomos, já que um sistema científico tem sua coerência interna e a sua modificação, produz um novo sistema com uma nova coerência.” (Cunha,  2000).

“Na aplicação do referencial analítico, ocorre uma modificação dos objetivos e métodos que não podem ser confundidos com os da terapia familiar ou de casal e precisam ser, não apenas reconhecidos como diferentes, mas ressignificados e aí então conceitualizados a partir da experiência” (Cunha, 2003).

Encontros para discutir temas trazidos pela literatura, por filmes ou apenas a possibilidade de pensar juntos uma experiência, tem nos mostrado que o cuidado com a comunicação, com o respeito às diferenças, o outro real externo, a continência do espaço grupal e de uma coordenação preparada, sua ética, podem fazer a diferença no processo de elaboração, sem contudo implicar em um “setting” terapêutico tradicional, no que diz respeito ao tempo de duração, fenômenos envolvidos e estratégias. Requerem, porém uma coordenação habilitada na leitura e manejo dos fenômenos grupais e os envolvidos na tarefa específica.

Mais do que sugerir uma técnica determinada, gostaríamos de levantar pontos para pensarmos os nichos destas demandas no processo de desenvolvimento do nosso referencial e da nossa prática.

Que instrumentos nossa sociedade tem disponíveis e que poderiam ser otimizados para este fim? Que outros poderiam ser criados? Em que contextos?

Pensando na função organizadora e estruturante de uma comunicação clara das expectativas e leis que regem, por exemplo, a entrada e a saída nos grupos, podemos cuidar de fases de transição através da comunicação; função tão importante no contrato terapêutico e que transmite um compromisso com a cultura, as leis e ideais de convivência. Quantos contextos não se beneficiariam desta postura? Como somos recebidos em diferentes instituições? Quão explícitos são, por exemplo, os contratos de trabalho? E as demissões?

Falávamos na transmissão através de ritos. De que forma atualizamos os nossos rituais de passagem? Ou as palavras que usamos para significar coisas diferentes? Eles se transformaram, mas foi no sentido de preservar a sua essência, desenvolver sua função? Ou apenas se modificaram mecanicamente, submetidos a pressões de várias ordens?

O que ocorre, por exemplo, nas formaturas hoje em dia? O que colocar no lugar da festa de quinze anos? Que contratos as escolas fazem com seus alunos? Como lidam com o processo de seleção e avaliação? E com suas famílias? Com seus professores? E no campo da saúde? Levamos em conta, as angústias e conflitos implícitas nestas relações? Que dizer das angústias próprias das transições dos diferentes ciclos vitais que implicam expectativas diferentes por parte da sociedade? (a adolescência, a escolha profissional, a aposentadoria).

Virgínia Satir (1980), que trabalha com a comunicação, pensa a tarefa terapêutica como “ensinar uma nova linguagem” através da qual os membros envolvidos, sejam capazes de: 1) checar suas percepções com o outro. 2) enxergar a percepção do outro sobre si mesmo. 3) dizer seus próprios medos e expectativas ao outro. 4) enviar ao outro mensagem clara, com alto grau de congruência entre o verbal e o não verbal.

Temos notícias de muitas iniciativas neste sentido, mas também de uma demanda que requer de nós, atenção e criatividade no uso de nosso referencial. 

 

Referências Bibliográficas

Correa, O. B. R. Os elos geracionais na transmissão psíquica do grupo familiar. Revista  ABPAG. vol. 07, 1998.         [ Links ]

Cunha, A. M. T. R. Potencialidades do Trabalho com os Vínculos Familiares: Novas Demandas. In: Fernandes, W. J., Svartman, B. e Fernandes, B. Grupos e Configurações Vinculares. Porto Alegre: Artmed, 2003, p. 226.         [ Links ]

___________ Caminhando na contramão: Perspectivas do trabalho grupal. Revista daSPAGESP. Ribeirão Preto, n. 1, p.135-139, 2000.         [ Links ]

Puget, J. & Berenstein, I. Psicanálise do Casal. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.         [ Links ]

___________  Lo Vincular. Clínica Y Técnica Psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, 2007.         [ Links ]

Rojas, M. C. Implicaciones y complicaciones del trabajo con grupos – administrando diferencias. Incluir – excluir – convivir. Vínculo – Revista do NESME. São Paulo, n.2, p. 89-98, 2005.

Satir, V. Terapia do grupo familiar. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1980.         [ Links ]

Silva, M.C. R. Pertencimento. Trabalho apresentado para passagem a membro efetivo do NESME, Julho de 2001.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Ana Margarida T. Rodrigues da Cunha
E-mail: anamargc@yahoo.com

Marilda Goldfeder
E-mail: marildagold@uol.com.br

Recebido em: 14.08.09
Aceito em: 21.10.09

 

 

1 Psicóloga, psicoterapeuta individual e de grupo, familia e casal. Membro efetivo do NESME, Coordenadora da área de Familia e Casal e membro do corpo docente do Curso de Especialização “Psicanálise dos Vínculos, Coordenação de Grupos e Grupoterapia”.
2 Psicóloga, psicoterapeuta individual e de grupo, familia  e casal. Membro efetivo e Coordenadora da Clínica do NESME, docente do Curso de Especialização “Psicanálise dos Vínculos, Coordenação de Grupos e Grupoterapia”.

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