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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.7 no.1 São Paulo jun. 2010

 

ARTIGOS

 

A invasão das novas formas de comunicação no setting terapêutico1

 

The invasion of new forms of communication in the therapeutic setting

 

La invasión de las nuevas formas de comunicación en el setting terapéutico

 

 

Ruth Blay LeviskyI,II,III,2; Maria Cecília Rocha da SilvaI,3

INúcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares
IISociedade Internacional de Psicanálise de Casal e Família
IIIAssociação Paulista de Terapia Familiar

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

Mudanças na expressão da linguagem, na relação com o espaço, com o tempo, com o corpo e com a sexualidade são alguns dos inúmeros fatores que tem interferido na maneira do individuo viver na atualidade. A construção de novos paradigmas trouxe como consequência a necessidade de rearranjos e transformações nos tipos de vínculos entre os indivíduos. O conceito de família tem sofrido adaptações e mutações em relação aos valores, papéis e sistemas hierárquicos, impostos pelo mundo atual. O trabalho discute impactos da sociedade pós-moderna que tem invadido nossos consultórios, trazendo consequências que interferem na relação terapeuta-paciente e no setting analítico. Essas novas vivências geram dúvidas, necessitam adequações, e nos levam a questionamentos que necessitam tempo de digestão e de elaboração.

Palavras-chave: Mudanças; Pós-modernidade; Transformações do setting analítico; Relações familiares; Relações virtuais.


Abstract

Changes in the language expression and the relation to space, time, body and sexuality are some of the innumerous factors that have interfered in the individual way of living. The construction of new paradigms brought as a consequence the requirement of rearrangements and transformations in types of bonds among the individuals. The concept of family has undergone changes and adjustments concerning the values, roles and the hierarchical systems which are imposed by nowadays world. This paper discusses the impact of postmodern society that has invaded our offices, bringing consequences that interfere with the therapist-patient relationship and the analytic setting. New doubts arises from these experiences which need to be elaborated, moreover, they are leading  us to new questions that demand time to be digested.

Keywords: Changes; Post modernity; Transformations of analytic setting; Familiar’s relationships; Virtual relationships.


Resumen

Los cambios en la expresión del lenguaje en relación con el espacio, con el tiempo, con el cuerpo y con la sexualidad son algunos de los múltiples factores que han interferido en la forma en que el individuo vive en el momento actual. La construcción de nuevos paradigmas han traído como consecuencia una necesidad de reorganización y cambios en los tipos de vínculos entre los sujetos. El concepto de familia ha sufrido mudanzas y ajustes en relación a los valores, funciones y sistemas jerárquicos, impuestos por el mundo de hoy. Este trabajo analiza el impacto de la sociedad posmoderna que ha invadido nuestros consultorios, trayendo consecuencias que interfieren en la relación terapeuta-paciente y en “setting” (encuadre) analítico. Estas nuevas experiencias generan preguntas, requieren de ajustes, y nos llevan a cuestionamientos que precisan de tiempo para digerirlos y elaborarlos.

Palabras clave: Cambios; Pos-modernidad; Transformaciones del setting de análisis; Relaciones familiares; Relaciones virtuales.


 

 

Nossa caminhada pelo século XXI apenas se inicia e, no entanto, os impactos oriundos dos grandes avanços científicos e tecnológicos mostram suas repercussões sociais.

Fora e dentro dos consultórios nos perguntamos sobre o destino do diálogo, da confidência, do direito à privacidade, dos limites e direitos de interferência na “liberdade de expressão”.

Uma nova fisionomia vai sendo impressa em todas as áreas da sociedade e como não poderia deixar de ser, se imiscuindo também nas concepções e metodologias do nosso instrumento de trabalho: o vínculo terapêutico, seu enquadre e processo.

Pressionados a atender as demandas atuais e considerando as variáveis que afetam nosso objeto de estudo, vários profissionais da área da saúde se perguntam: que homem é esse que emerge nesta época histórica onde se diluem as fronteiras culturais, onde o indivíduo sucumbe aos apelos da “massa”, ao refinamento da propaganda que o incita ao narcisismo, ao consumo, ao individualismo? Agarrado ao celular, ao computador, ao carro, ao avião, este homem se envolve cada vez menos com o “outro”, consigo mesmo e com os valores fundamentais consagrados pela cultura do viver em grupo.

Por outro lado, o setting analítico representa um espaço potencial, onde as mais variadas expressões de fantasias de nosso mundo interno emergem e se misturam aos discursos do real e do cotidiano das pessoas.

Já a era pós-moderna caracteriza-se pelo desenvolvimento da alta tecnologia e de grandes descobertas que revolucionaram a vida, aproximaram os continentes, trazendo conseqüências e transformações que se refletem na formação da identidade do sujeito. A difusão do conhecimento, das trocas de experiências e a maior facilidade na comunicação modificaram substancialmente a maneira de o sujeito “ser e estar” no mundo globalizado.

Mudanças na expressão da linguagem, na relação com o espaço, com o tempo, com o corpo e com a sexualidade são alguns dos inúmeros fatores que tem interferido na maneira do individuo viver na atualidade. A construção de novos paradigmas trouxe como conseqüência necessidade de rearranjos e transformações nos tipos de vínculos entre os indivíduos. O conceito de família tem sofrido adaptações e mutações em relação aos valores, papéis e sistemas hierárquicos, impostos pelo mundo atual.

Os vários aspectos que permeiam a cultura pós-moderna trouxeram impactos que invadiram nossos consultórios, assim como outros setores da sociedade. São situações novas que geram dúvidas, questionamentos e nos inquietam; necessitam de tempo de digestão e de elaboração. As mudanças vêm para ficar e não pedem licença para entrar, cabendo a nós encontrar modos para se adaptar ao mundo da realidade (Blay Levisky, 1999).

Discutiremos alguns pontos impactantes que hoje fazem parte do dia a dia do trabalho psicanalítico, principalmente com casais e famílias, que merecem nossa reflexão:

 

1. Contrato analista-paciente:

Como lidar com o contrato tradicionalmente feito entre analistas e pacientes, se é cada vez mais freqüente a influência de fatores externos que invadem o setting? Congestionamentos imprevisíveis, enchentes na cidade, reuniões agendadas nas empresas em cima da hora tem impossibilitado a chegada dos pacientes à sessão.  A reposição é hoje uma questão a ser considerada de modo diferente do que entendíamos há alguns anos. Era freqüente interpretar os atrasos dos pacientes como possíveis resistências ao trabalho analítico. Atualmente, além das questões intrasubjetivas, das fantasias e dos mecanismos defensivos inconscientes, é necessário considerar e investigar os fatores relacionados com as influências do mundo real, da transubjetividade.

 

2. Uso do computador:

a. a escolha do analista por vezes é feita através de pesquisa feita no computador. Alguns pacientes telefonam para marcar consulta e, quando perguntamos quem nos indicou, respondem que acharam nosso nome através do “Google”. É uma situação inusitada;

b. como lidar com pacientes que querem se comunicar conosco através de e-mails, para desmarcar ou marcar consultas? E aqueles que desejam fazer o pagamento através da internet e solicitam nossos dados pessoais? E quando um dos cônjuges, em uma terapia de casal, envia um e-mail confidencial para o analista, com um pedido para discutir um determinado problema na sessão? E quando surge um pedido de um adolescente, numa terapia de família, para colocar o analista no seu grupo de MSN?

c. crianças e adolescentes têm solicitado o uso de computador nas sessões, que acaba funcionando como material lúdico ou como um instrumento de comunicação entre analista e paciente. Tem sido interessante o uso do computador em alguns momentos da sessão, como um instrumento que viabiliza outras formas de comunicação do material reprimido. Pode funcionar também como um espaço potencial entre a realidade concreta e a psíquica;

d. supervisões clínicas pelo Skype: alguns colegas tem tido oportunidade de fazer supervisões através do Skype com pessoas que residem em locais distantes, ou até em outros países. A experiência tem se mostrado bastante interessante. São questões muito recentes para se avaliar resultados.

 

3.Telefone celular:

Tem sido bastante usual os pacientes esquecerem de desligar seus celulares quando entram na sessão. Muitos resistem até a não atender às ligações recebidas. Tem sido material de análise a ambivalência de sentimentos que emerge na relação transferencial-contratransferencial com o analista, onde o paciente quer estar dentro e fora ao mesmo tempo. No mundo contemporâneo é difícil o envolvimento das pessoas e a capacidade de olharem para dentro de si e se distanciarem das influências do mundo externo. Percebemos esse fenômeno principalmente com adolescentes nos trabalhos terapêuticos com famílias.

 

4.Natureza dos conteúdos trazidos para as sessões:

Solidão, vazio, dificuldades para criar vínculos, patologias da contemporaneidade, como anorexia, bulimia, drogadicção, são queixas freqüentes que aparecem em nossos consultórios, sem deixar de lembrar os ciúmes de amantes virtuais que penetram na vida dos casais criando desafetos e até rompimentos de casamentos.

 

5. Intimidade do analista sendo vasculhada através do Google:

A busca de neutralidade do analista, se antes já era questionada, o que diríamos hoje, que é possível saber dados sobre a vida dele através da internet? O limite entre o público e o privado está esgarçado e novos modelos estão sendo construídos.

 

6. Novas demandas buscam terapias:

Casais que passam pelos métodos de fertilização assistida, casais de homossexuais e famílias reconstituídas têm buscado terapias com maior freqüência. O papel e o lugar dos pais têm sofrido modificações na dinâmica familiar. Observa-se que o aumento da taxa de desemprego trouxe oportunidades para a mulher assumir o sustento da família e o homem para se ocupar das tarefas domésticas.

Vivemos momentos de mudanças e transformações. A psicanálise também passa por um processo de construção e desconstrução, assim como a identidade do analista. A psicanálise assume nos dias atuais uma necessidade cada vez mais premente de ser uma ferramenta muito preciosa para colaborar para a compreensão dos fenômenos que emergem no mundo pós-moderno, assim como para ajudar a encontrar meios para lidar com tantas situações novas e angustiantes. As salas de bate-papo virtuais têm sido muito utilizadas para sublimar o vazio e a solidão dos seres humanos. Lévy (2002) define o virtual como uma mutação da identidade, que dá origem a uma nova re-configuração. Os objetos virtuais potencializam a tendência narcísica da cultura atual pela abolição dos limites das relações objetais humanas (Levy, 2002).

Podemos atribuir esses fenômenos virtuais à contemporaneidade, ou sempre existiram, e se expressavam de outras formas?

Freud (1912) já citava a virtualidade como parte do processo psicanalítico, quando dizia que:

“É preciso perceber com clareza que a doença do paciente não cessa com o início de sua análise, e que devemos tratar sua doença não como um evento do passado, mas como uma força atual. Esta reencarnação da doença é providencial, já que não podemos vencer um inimigo que esteja ausente ou fora de nosso alcance, ou seja, é preciso tirá-la da virtualidade e atualizá-la”.

Junqueira (2002) também discute da mesma forma que Freud, a relação paradoxal entre analista-analisando, uma vez que o processo analítico fica circunscrito ao espaço mental dessas duas pessoas, e se passa num nível que é ao mesmo tempo real e ilusório. O autor discute que a emoção básica do ser humano nasce do encontro com o seu objeto. Quando não é possível esse encontro, nasce o sentimento do desencontro e da falta, que são os precursores do desejo e de um reencontro criativo. Penso que essa falta no mundo atual também pode ser vivenciada de outras maneiras, pois na relação com o “ciberespaço” o outro com quem se conecta é, ao mesmo tempo, real quando está disponível para o internauta e um não-objeto quando ele se ausenta. Fantasias de abandono, de desencontro, de falta e de rejeição também invadem a mente fantasiosa do internauta.

O que vale a pena refletir é a maneira como o sujeito tem lidado com essas transformações da subjetividade. No mundo real o sujeito se comunica com o outro real, mas no mundo virtual é com o objeto idealizado do desejo. O uso de defesas sublimatórias e a formação de sintomas têm sido recursos mentais freqüentes utilizados para disfarçar a dor mental do sujeito.

A constituição emocional do ser humano se forma a partir de fenômenos identificatórios que se desenvolvem na vivência com o outro. Será que é possível a formação de vínculos virtuais com natureza afetiva? Na experiência virtual o “outro” está presente apenas no mundo imaginário do internauta. Esse outro virtual provoca na mente do sujeito um sentimento de ambivalência, uma vez que esse “objeto” com quem ele se relaciona está ao mesmo tempo presente e ausente no seu mundo real. Esse estado cria uma confusão e uma dificuldade de discriminação na mente do sujeito entre aquilo que é real e aquilo que é ilusório.

A falta do outro pode ser vivenciada como um vazio existencial. Nesse sentido é possível se pensar na constituição de um vínculo afetivo no campo virtual.

A ideia de falso ou verdadeiro, segundo Bion, só pode ser decifrada a partir da formação de vínculo e da possibilidade de compartilhamento de experiências.

O sujeito pode se reconhecer como tendo um desejo próprio, facilitado pela presença da mãe que reconhece este desejo. O falso “self” seria submeter o indivíduo a um desejo que não é seu, mas adotá-lo como sendo seu (Winnicott,1975). Levy (2002) também concorda que o “self” verdadeiro só adquire realidade viva pela presença do outro que lhe reconhece o desejo.

Compreendendo a formação do sujeito a partir desse vértice, pode-se levantar a hipótese de que as realidades virtuais poderão conduzir o indivíduo à alienação de seu próprio desejo, uma vez que elas não possibilitam ao sujeito olhar para o outro e ser reconhecido por ele, como no campo do real que estamos habituados a conviver (Blay Levisky, 2009).

Sabemos que o novo sempre vem carregado de conteúdos ameaçadores e fantasmáticos, por isso cabe a nós abrirmos um espaço mental para sua reflexão e digestão, ser possível representá-los simbolicamente, nomeá-los e encontrar um modo de sua assimilação e transformação. Dessa maneira, teremos condições internas para lidar com o sofrimento e as ameaças persecutórias que invadem o nosso mundo mental diante da aparição de um novo fenômeno (Blay Levisky, 1999).

Assim como em nossas vivências do dia-a-dia, a psicanálise também tem trazido novos referenciais que ampliam nosso conhecimento, mas produzem resistências, como todo fenômeno novo que é introduzido. Novas reflexões surgem no campo analítico, tanto nos aspectos teóricos quanto na forma do analista trabalhar. Se antes o psicanalista estava voltado para o mundo interno do paciente, hoje ampliou-se este olhar para incluir também os aspectos inter e transubjetivos. Todas essas inovações produzem estranhamentos e inquietações que nos levam a questionar o que transformar e o que conservar? Como se nós pudéssemos ter esse controle!

 

Referências bibliográficas

Blay Levisky, R. Vínculos virtuais: novas formas de amor. Um percurso entre o imaginário e o real. In: Desafio do Amor, questão de sobrevivência - Associação Paulista de Terapia Familiar, no prelo, 2009.         [ Links ]

Blay Levisky, R. Apresentação: “O Novo Já Não é Mais Novo. Já Era!”. III Congresso de Psicanálise das Configurações Vinculares e II Encontro Paulista de Psiquiatria e Saúde Mental, Águas de São Pedro, junho de 1999.

Freud, S. La dinámica de la transferencia. In: Obras Completas, Tercera Edición. Madrid: Ed. Biblioteca Nueva, 1912. Tomo II, p. 1648-1653.         [ Links ]

Junqueira. L.C.U. A virtualidade no método psicanalítico Rev. Bras. Psican. São Paulo, Vol. 36 (1), p.31-50, 2002.         [ Links ]

LEvy, P. O que é virtual? In: Levy, R. - Rev. Bras. Psican. São Paulo, Vol.36 (1), p. 51, 2002.         [ Links ]

Levy, R. A cerca da verdade, do desejo e da virtualidade - As relações com objetos virtuais. Rev. Bras. Psican, São Paulo. Vol.36 (1), p. 51-65, 2002.         [ Links ]

Winnicott, D. O Brincar: a atividade criativa e a busca do eu (self). In: O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975. p. 79-93.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Ruth Blay Levisky
E-mail: ruthlevisky@terra.com.br

Recebido em: 19.06.09
Aceito em: 09.10.09

 

 

1 Trabalho apresentado no VII Congresso Brasileiro de Psicanálise das Configurações Vinculares de 20 a 24 de maio de 2009.
2 Psicóloga. Terapeuta de casal e família. Grupo-analista. Membro efetivo do NESME, da Sociedade Internacional de Psicanálise de Casal e Família e da Associação Paulista de Terapia Familiar.
3 Psicóloga. Psicoterapeuta individual e de grupo (família e casal). Formação em grupo no NESME e Psicanálise das Configurações Vinculares e no curso Intervenção no campo da família (PUC-SP). Membro efetivo do NESME.

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