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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.7 no.2 São Paulo  2010

 

ARTIGOS

 

A função continente e o uso da contratransferência como instrumentos na psicoterapia de grupo com pacientes com severas pertubações no desenvolvimeto do psiquismo1

 

The container and function the use of counter' transference as a tool of group psychotherapy in patients with severe mental disorders in the development of the psychism

 

La función continente y el uso de la contratransferencia como instrumento en psicoterapia de grupo de los pacientes con transtornos graves en el desarrollo de la psique

 

 

Carina Rugai Moreira de Macedo,2

Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste trabalho é identificar e descrever fenômenos e processos grupais, observados durante as sessões de um grupo terapêutico com pacientes autistas e psicóticos adultos em uma instituição especializada no atendimento destas patologias. O foco da observação se dirige especialmente para a importância e decorrências da função continente dos coordenadores e do próprio grupo, e do uso da contratransferência como instrumento de decodificação dos afetos inerentes às interações e manifestações emergentes no decorrer das sessões, avaliando a viabilidade técnica de sua utilização enquanto promotores de interações e do desenvolvimento psíquico do grupo e de seus elementos. Tendo como foco a psicogênese destes quadros, percorreremos o caminho inaugurado por Léo Kanner, seguindo em direção a autores que posteriormente desenvolveram conhecimentos e reflexões sobre os transtornos mentais que afetam o desenvolvimento psíquico desde o início da vida da criança, tendo como principal norteador teórico a psicanálise. Por se tratar de uma patologia do vínculo é que buscamos recursos técnicos que ofereçam maior diversidade de situações que promovam abundância de possibilidades de iterações e vinculações.

Palavras chave: psicanálise, autismo, contratransferência, grupoterapia.


ABSTRACT

The objective of this study is to identify, describe phenomena and group processes, observed during the sessions of group therapy with autistics and psychotic adult patients in a specialized institution in the treatment of these pathologies. The focus of the study is specifically directed to the importance and the consequences of the container function of the coordinators and the group itself, and the use of counter-transference as a tool for decoding the inherent emotions in the interactions and events that emerged during the sessions, assessing the technical feasibility of its use as promoters of interaction and psychic development of the group and its elements. Focusing on the psychogenesis of these clinical disorders, we will follow the opened door by Léo Kanner, passing through the authors who subsequently developed knowledge and reflections on mental disorders, which affect the psychological development from the beginning of a child's life, with psychoanalysis as a main theoretical guiding. Because we are dealing with a bond's pathology, we are looking for technical resources that offer greater diversity of situations, which promote abundant opportunities of iterations and bonding.

Keywords: psychoanalysis, autism, counter-transference, group therapy.


RESUMEN

El objetivo de este trabajo es identificar y describir fenómenos y procesos de grupo, observados durante las sesiones de terapia de grupo con pacientes adultos autistas y psicóticos en una institución especializada en el cuidado de estos trastornos. El foco de la observación es específicamente la importancia y las consecuencias de la función continente de los coordinadores y el propio grupo y el uso de la contratransferencia como una herramienta para traducir las emociones inherentes a las interacciones y los acontecimientos que surjan durante las sesiones, evaluando la viabilidad técnica de su uso como promovedores de la interacción y el desarrollo psíquico del grupo y de sus elementos. Centrándose en la psicogénesis de estos transtornos clínicos, seguiremos el camino inaugurado por Léo Kanner y en seguida por los autores que desarrollaron el conocimiento y la reflexión sobre los trastornos mentales que afectan el desarrollo psicológico desde el comienzo de la vida de un niño, con el psicoanálisis como la guía teórica principal. Por tratarse de una patología del vínculo es que buscamos los recursos técnicos que ofrezcan una mayor diversidad de situaciones que promuevan abundantes oportunidades de iteraciones y vinculaciones.

Palabras clave: psicoanálisis, autismo, contratransferencia, terapia de grupo.


 

 

Introdução

A trama deste trabalho se desenrola dentro de um contexto complexo, imerso em um emaranhado de maciças projeções, transferências cruzadas e sentimentos contratransferenciais intensos, tendo como cenário o campo grupal no âmbito institucional. O grupo ocorre desde 1996 em uma clínica-escola municipal de São José do Rio Preto-SP, que atende portadores de Transtornos Invasivos do Desenvolvimento. Conta com duas coordenadoras e 6 pacientes entre 17 e 34 anos, todos com diagnóstico de Autismo Infantil (CID X -F 84.0), com exceção do paciente mais novo, que apresenta funcionamento psicótico desde tenra infância. Alguns deles, assim como uma das coordenadoras, estão no grupo desde sua formação, outros iniciaram nos anos subseqüentes e alguns há apenas poucos meses.

São pacientes com ausência ou sério prejuízo na comunicação verbal. A maioria dos autistas não fala, seus comportamentos são repetitivos e estereotipados, seus interesses são restritos, e a atividade simbólica e imaginativa empobrecidas. Protegidos por uma barreira invisível evitam olhar nos olhos, parecendo olhar através das pessoas, demonstrando não se interessarem por elas. (KANNER, 1942). Estes pacientes têm na base de sua patologia, severas perturbações do desenvolvimento emocional primitivo, que se expressam na forma de um isolamento extremo (TUSTIN, 1990).

O quadro pode nos levar a pensar nas inegáveis inabilidades para a grupalidade e vinculação, e para a falta de perspectiva de um bom prognóstico em grupoterapia. Contudo, é a severidade das dificuldades, e a densidade inerenteà patologia que criam a necessidade de lançarmos mão de recursos mais ricos e complexos. Por ser uma patologia do vínculo é que buscamos recursos técnicos que ofereçam maior diversidade de situações que promovam abundância de possibilidades de iterações e vinculações. Os grupos oferecem constantemente uma multiplicidade de contextos, cenas e papéis a serem assumidos transferencialmente, permitindo a vivência de uma infinidade de atualizações de conflitos, angústias e sentimentos aterrorizantes, freqüentemente vivenciados por estes pacientes.

A técnica psicanalítica clássica, mesmo aquela que se destina ao tratamento de crianças ou das psicoses, não abarca as condições necessárias para a clínica do autismo e das psicoses da infância, seja na relação da dupla ou do grupo. é na intersecção das possibilidades oferecidas pelo contexto grupal, do rodamoinho da contratransferência e do olhar e da escuta psicanalítica, que buscaremos compreender os processos nele vividos.

O autismo foi descrito pela primeira vez por Leo Kanner no artigo "Os Distúrbios Autísticos do Contato Afetivo", publicado em 1943, a partir da observação de um grupo de crianças com características fascinantemente peculiares, constituindo uma "síndrome" específica. Dentre as mais importantes estava a incapacidade de estabelecerem relações de maneira adequada com as pessoas e situações desde o princípio de suas vidas, não reagindo a nada que viesse do exterior. A necessidade de permanência, completude e repetição limitavam demasiadamente a atividade espontânea e criatividade. Qualquer alteração ou estímulo exterior era sentido como intrusão, sendo então ignorada ou provocando crises intensas de pavor e pânico. Para interagir é preciso considerar o outro, abrir mão de si mesmo, se deixar invadir.

Hoje existem diversas teorias sobre a gênese do autismo, mas há duas grandes correntes em extremos opostos. Uma defende a origem orgânica e outra a psicogênese do autismo, porém, para os psicodinamicistas independentemente da etiologia, a terapia psicanalítica pode ajudar pacientes em ambos os casos (ALVAREZ, 1994). As concepções organicistas, ao considerarem o quadro de natureza exclusivamente endógena, aniquilam a possibilidade de modificá-lo, e despotencializam o sujeito da enfermidade, alienando o paciente e o ambiente na medida em que promove a dissociação entre o endógeno e o exógeno (PICHON, 1994).

A psicogênese do autismo considera que quando não se estabelece uma demanda adequadamente do bebê em relaçãoà mãe, seja por falta de recursos de um ou de outro, a dialética da comunicação fica perturbada e ambos ficamà deriva em relação ao outro, gerando um momento catastrófico para o bebê. A frustração e o sentimento de incapacidade materna podem desencadear uma desistência da mãe em relação a ele, e deste em relação a ela, aumentando progressivamente o abismo entre eles.

O uso da contratransferência como recurso no método psicanalítico, é uma prática controversa, em contrapartidaà posição mais tradicional de neutralidade e abstinência do analista. Este conceito é usado de diversas maneiras, mas "atualmente a maioria dos analistas usa o termo "contratransferência" de forma mais ampla, abrangendo todas as fantasias e sentimentos neles despertados em relação ao paciente, quaisquer que sejam suas origens". (SEGAL, 1998, p. 121). Para o presente trabalho vale a seguinte reflexão. Como tratar pacientes graves que não associam livremente da forma que exige a técnica tradicional. Para Ferenczi, a insensibilidade do analista, protagonizada pela regra da abstinência, era uma defesa para não ser afetado pelo encontro com seu paciente. (KUPERMANN, 2008, p. 80)

Seja em decorrência da pobreza de acolhimento da mãe, ou da grandeza da demanda e intensidade dos conteúdos psíquicos projetados pelo bebê, as mães destas crianças não foram capazes de atingir o necessário estado de "preocupação materna primária", descrita por Winnicott (1956). A continência materna e a capacidade de "rêverie" descritas por Bion (1962), certamente foram também insatisfatórias. (ZIMERMAN, 2004). São sujeitos marcados por uma grave falha na vinculação primeira de suas vidas. Deste modo, o trabalho com tais pacientes requer do terapeuta uma entrega absoluta. Precisam ser providos de características pessoais que permitam uma atuação sob a influência destes processos, que muitas vezes os colocam no lugar de objetos autísticos, anônimos e inanimados.

Inicialmente Freud considerou a transferência como resistência ao tratamento, depois como uma atualização necessária do inconsciente para o acesso às fantasias recalcadas da primeira infância (FREUD, 1912/1980c, p. 143). Reconhece então, a importância da sensibilidade do analista na produção de sentido na relação transferencial e o efeito terapêutico que produz sua interpretação. Figueira argumenta que "Uma leitura mais rigorosa dos trabalhos de Freud ligadosà técnica eà clínica, mostra que sua posição em relaçãoà contratransferência é mais complexa do que possa parecer inicialmente." (FIGUEIRA, 2008, p 01)

(...) também o médico deve colocar-se em posição de fazer uso de tudo o que lhe é dito para fins de interpretação e identificar o material inconsciente oculto, sem substituir sua própria censura pela seleção de que o paciente abriu mão. Para melhor formulá-lo ele deve voltar seu próprio inconsciente, como um órgão receptor, na direção do inconsciente transmissor do paciente. (Freud, 1912/1980 f, p.154)

Bion adverte para o fato de se tratar de um fenômeno de natureza prioritariamente inconsciente, e questiona a possibilidade de se fazer uso terapêutico daquilo que não tem consciência, nem domínio. (ZIMERMAN, 2004). Mas Zimerman aponta que, por outro lado, em "Experiências com Grupos" (1948), Bion defende que os sentimentos contratransferenciais podem ser utilizados de forma positiva, promovendo insight do analista, ou reflexões analíticas posterioresà sessão. Existe atualmente o reconhecimento de que os sentimentos que o analista tem em relação ao paciente durante a sessão podem indicar a forma como o paciente está se relacionando e se sentindo, através das fantasias despertadas no analista.

Beatriz Fernandes (2003, p. 237) afirma que a contratransferência ocorre em qualquer faixa etária e pode ocorrer em relação ao grupo como um todo. Svartman recorre às idéias de Kohut (1984) para a compreensão da transferência na situação grupal. Ela se refere à idéia de que o processo analítico ocorre na intersecção de duas subjetividades (analista-analisando), configurando a psicanálise como uma ciência do intersubjetivo e não do intrapsíquico. Para ela "Tal formulação é útil quando se tenta compreender a complexidade do que se passa nos grupos, já que se tem aí, como território, a interação entre os mundos subjetivos diferentemente organizados dos diversos integrantes do grupo e do terapeuta". (SVARTMAN, 2003, p. 37)

Transferência recíproca é a expressão que Pichon prefere utilizar para nomear o que se chama de contratransferência. Considera tal fenômeno como "um elemento de valor inestimável, visto que alimentará no operador a capacidade de fantasiar para estabelecer hipóteses sobre o acontecer implícito do grupo". E conceitua a transferência recíproca como "um conjunto de reações inconscientes do operador frente ao grupo" (PICHON, 1994, p. 166)

Winnicott, trabalhando com bebês e pacientes gravemente comprometidos, passa a atribuir grande valorà contratransferência eà personalidade do analista na sessão. (RAMOS, 1994). Alguns autores admitem além das transferências clássicas, outras formas de transferência encontradas no trabalho com pacientes com psiquismo primitivo. Paulina Rocha (1996) afirma que na clínica do autismo e das psicoses infantis existem movimentos transferenciais e contratransferenciais diferentes dos encontrados nos trabalhos com outros pacientes, que causam grande angústia no terapeuta, decorrentes do estranhamento de si mesmo diante do silêncio mortificante, do modo bizarro de agir, ou da angústia aterrorizante vivenciada por estes sujeitos.

 

Material Clínico

é a primeira sessão depois da morte de Regina, que fez parte deste grupo por alguns anos. Virgíio estava bastante agressivo, como não acontecia há algum tempo. Bate e cospe em todos. Digo que ele está diferente, questiono se está comunicando alguma coisa com isso. Ewerson olha uma foto, depois de algum tempo chora um choro doído, porém sem lágrimas. A terapeuta comunica ao grupo que a foto que ele olha é de Regina. Aproveitamos para introduzir o assunto da sua morte, que ocorreu poucos dias antes. Assinalamos que Ewerson e alguns outros talvez já soubessem do ocorrido. Ewerson intensifica seu choroà medida que as terapeutas nomeiam suas expressões. Seu choro aos poucos ganha lágrima,s até se converter em pranto. Ele nos emociona. O grupo se cala. As coordenadoras falam da morte e do que ela acarreta. Nunca mais ver a pessoa, sentir sua falta, tristeza, saudades. Virgíio se acalma no decorrer da sessão. Edson, que dormia, acorda e permanece deitado perto de Ewerson. Eles costumam ficar próximos. à medida que falamos, chora mais e mais. A terapeuta se aproxima e diz que ele está triste. Ele retira uma gota de lágrima dos olhos, e olhando nos seus olhos entrega a ela, pondo na palma da sua mão. O grupo o observava em silêncio, acompanhando seu sofrimento. As coordenadoras se emocionam e são tomadas pela sensação de um vazio enorme, de muita dor e de não terem nada a dizer, apenas compartilhar. Mais duas sessões se seguiram com Ewerson olhando as fotos de Regina e chorando.

 

Discussão

"As fantasias se expressam por meio de um ou vários porta-vozes que dão indícios que permitem ao coordenador a decodificação e adjudicação de papéis, a confrontação do grupo com a realidade concreta" (PICHON, 1994, p.164). Ewerson é porta voz dos sentimentos decorrentes da notícia da morte de Regina. Expressa a dor que o grupo nega. Seu choro sem lágrimas é sentido como expressão de muita dor pelas terapeutas, que passam a nomeá-la. A dor sem nome, aos poucos se transforma em sofrimento.

Ewerson verte lágrimas à medida que o "sentimento coisa" é convertido em sofrimento pela perda. Sua dor é acolhida, decodificada, compreendida e nomeada. Ele por fim pode chorar aos cântaros até que a dor se amenize como esperado no processo de luto. Oferece ao grupo a possibilidade de entrar em contato com a dor negada, mostra que é possível sofrer, e o grupo não rejeita a experiência. Observamos a continência do grupo para os intensos sentimentos. Tal qual o faz a mãe com seu bebê, o grupo os recebe como parte natural da experiência. Os analistas, tomados pelos sentimentos contratransferenciais, nomeiam e apontam, tanto a dor como a continência do grupo. Ewerson ainda hoje olha fotos da Regina, mas agora não chora mais. Não negou autisticamente o objeto do sofrimento se esquivando da lembrança como poderia se esperar. Ao contrário, usa as fotos para lembrar, o que nos fez pensar que Regina deve estar guardada em algum lugar dentro dele e do grupo. Quando coloca a lágrima na mão da terapeuta, entrega concretamente seu sofrimento nas mãos dela. As terapeutas se sentem absolutamente tomadas pela sua dor. Elas se emocionam e compartilham o sofrimento com ele e com o grupo. Sentem que este ato comunica a necessidade de ajuda para lidar com seus sentimentos, e o reconhecimento na figura das terapeutas, de uma fonte de recursos que ele ainda não construiu em si mesmo. Restaura assim, uma falha na formação da estrutura autística que, no desenvolvimento normal, levaria o bebê a buscar no outro os recursos capazes de neutralizar as tensões instintuais. Nos autistas, ao contrário, elevam-se mais e mais as tensões, comprometendo mais e mais a estrutura, que se torna progressivamente ineficiente para lidar com elas (MAHLER, 1965).

Pacientes com desenvolvimento gravemente perturbado revelam tamanha peculiaridade na estrutura e funcionamento psíquicos e nas suas manifestações, que exigem uma práxis igualmente peculiar em seu atendimento. Uma práxis que põe o terapeuta diante de experiências viscerais, ao modo daquelas vividas pela dupla mãe-bebê no início de suas vidas. A capacidade do analista em exercer as funções de "reveri" e de "continência" segundo Bion, são essenciais para o sucesso da análise. é através delas que o terapeuta pode acolher, conter, decodificar, transformar, elaborar e devolver, em doses apropriadas, as identificações projetivas do paciente, depois de nomeadas e significadas (ZIMERMAN, 2004). Os sentimentos rudes são projetados no analista, como o fez com a mãe anteriormente. O que se espera é que o analista consiga contê-los, para que o paciente possa continuar a ser sem ser interrompido pela reação do analista de se sentir invadido por estes sentimentos (KHAN, 1943).

Ao mesmo tempo em que se evidencia a importância da atenção permanente às manifestações que emergem no grupo, o seu manejo deve ser igualmente sutil e cuidadoso: um manejo que anteceda a interpretação, fazendo frente às necessidades manifestadas e promovendo a confiança para que possam continuar a se expressar livremente. Cabe aos coordenadores deixar fluir a experiência, apontando a fluência delas. Qualquer interpretação mais complexa interrompe o continuar a ser do paciente (WINNICOTT, 1945). Bion ressalta a importância da capacidade negativa, que se refereà capacidade do terapeuta de conter suas angústias, quando se vê na situação de não compreender o que está se passando na sessão. Fazer interpretações precipitadas para aliviar suas angústias, impede o paciente de deixar emergir seus sentimentos reais (ZIMERMAN, 2004).

Pichon considera o vínculo um instrumento no trabalho terapêutico. Compreende o funcionamento psíquico do paciente, a partir da compreensão dos seus vínculos internos, ou seja, a partir dos vínculos que ele estabelece com seus objetos internos, e da interferência que têm na relação do sujeito com a realidade externa. Através do manejo de experiências e vínculos estabelecidos no grupo terapêutico, é possível operar mudanças na relação do sujeito com a realidade externa. O grupo terapêutico nesta perspectiva mostra-se um instrumento técnico muito valioso no tratamento de pacientes mais regredidos.

"Quanto mais próximos da psicose, mais os pacientes funcionam através de identificações projetivas primitivas, e mais ocorre manifestação da contratransferência" (SEGAL, 1998, p.123). Para compreender as experiências contratransferenciais, o analista precisa ter uma disposição básica de receptividade das projeções, sem se identificar com elas, estando em sintonia com o paciente, e em contato com sua própria experiência infantil, se identificando com o continente materno. Assume uma dupla função, enquanto é receptivo e continente, adota também uma postura observadora e interpretativa destes mesmos sentimentos. Está dentro e fora ao mesmo tempo. Precisa estar atento, ter um olhar aguçado, estar ali de corpo e alma, imerso no universo que invade seus sentidos, se deixando tomar pelas sensações, tal como faz a mãe com seu bebê. O terapeuta tem que abrir mão de seu estado organizado, se flexibilizar sem perder a sanidade, oferecendo a confiança e garantia necessárias ao paciente, sem se esquivar da experiência.

Ao descrever processos primitivos da vida do bebê, Winnicott (1956) levanta um aspecto, já abordado por Freud, no qual algumas experiências primitivas, ocorridas em ambiente deficiente e insatisfatório em relação às suas necessidades, foram vividas num momento em que ele só tinha a condição de registrar tais experiências, por isso não é possível falar delas. Pacientes regredidos não alcançaram o universo do desejo, estão ainda no campo das necessidades. Para Ferenczi, a neutralidade do analista com pacientes graves corre o risco muitas vezes de ser sentida por eles como "frieza", retraumatizando o paciente (KUPERMAN, 2008).

(...) o que podemos almejar é que a atitude do analista diante de seus sentimentos não seja paranóica nem fóbica. Na realidade, a impermeabilização vinda daí é o maior risco da contratransferência... O medo de ser inundado pelo amor, pelo ódio e pela angústia, que o paciente desperta, pode levarà negação desses sentimentos... Se a contratransferência não puder ser elaborada explicitamente pela dupla analítica o paciente poderá se identificar com o analista nesta dificuldade... A contratransferência não interpretada pode ser responsável pela ruptura ou pela análise interminável. A atitude do analista em relaçãoà contratransferência reflete sua atitude para com seus próprios sentimentos e impulsos. (Ramos, 1994, p.146)

 

Considerações Finais

Ser continente, nomear e promover a elaboração dos intensos e maciços conteúdos de estados mentais primitivos, reconhecer sinais sutis e peculiares de interações e manifestações grupais, além de não depender da gratificação narcísica da evolução do grupo, consistem nas características mais importantes do terapeuta para o trabalho de ajudar estes pacientes a se tornem mais permeáveis, flexíveis e continentes, ampliando seu universo simbólico. O grupo como um instrumento de evolução para sujeitos cujo traço mais significativo é a dificuldade em estabelecer interações, se mostra eficaz em oferecer uma multiplicidade de papéis e cenas a serem vividas no contexto terapêutico, favorecendo a ocorrência de uma rica rede de transferências e contratransferências que ajudam na compreensão dos afetos emergentes.

Neste grupo observamos a diluição das defesas autísticas de isolamento e negação do externo, condições indispensáveis para o desenvolvimento psíquico. Além disso, no grupo, o ambiente e o outro impõem sua presença, e freqüentemente, isso não leva à intensificação das defesas, ao contrário, cria condições para as mais variadas formas de interação.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência
Endereços eletrônicos : sylcarin@terra.com.br

Recebido em: 27/09/2010
Aceito em: 26/11/2010

 

 

1 Artigo elaborado com base no trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito do curso de especialização do Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares -NESME, como requisito para obtenção do título de especialista em Psicologia Clínica: Psicanálise dos Vínculos -Coordenação de Grupos e Grupoterapia.
2 Especialista em Psicologia Clínica: Psicanálise dos Vínculos - Coordenação de Grupos e Grupoterapia pelo NESME; Cursando Formação em Psicanálise no GTEP (Grupo de Transmissão e Estudos de Psicanálise) do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

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