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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.8 no.2 São Paulo dez. 2011

 

ARTIGOS

 

Crise na clínica na atualidade e transformações

 

Crisis in the current clinical work and transformations

 

Crisis en la clínica actual y transformaciones

 

 

Betty Svartman1

Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares - NESME

 

 

 


RESUMO

A autora defende a idéia de que o sofrimento gerado pelas exigências da vida atual tem aumentado a procura da ajuda da psicoterapia por parte de jovens adultos. Sendo a rotina de trabalho destes indivíduos um impedimento para a realização de uma psicanálise nos moldes clássicos, com atendimento em horários rígidos e com alta freqüência semanal, a autora tem observado bons resultados e condições de compreensão profunda do funcionamento psíquico, utilizando-se da contribuição da Psicanálise das Configurações Vinculares.

Palavras-chave: Psicanálise clínica, jovens, atendimento psicanalítico.


ABSTRACT

The author defends the idea that the suffering caused by the demands of modern life has increased the demand for help of psychotherapy by young adults. As the routine work of these individuals is an impediment to the realization of a psychoanalysis along classical lines and high weekly frequency, the author has seen good results and conditions of deep understanding of psychic functioning, using the contribution of Psychoanalysis of Linking Configurations.

Keywords: Psychoanalysis clinic, young adults, psychoanalytic assistence.


RESUMEN

El autor defiende La Idea de que el sufrimiento causado por las demandas de la vida moderna ha aumentado la demanda de ayuda psicoterapêutica de adultos jóvenes. Considerando que el trabajo rutinario de estos indivíduos es um impedimiento para la realización de um psicoanálisis a lo largo de las líneas clásicas, de alta frecuéncia semanal, El autor ha obtenido buenos resultados y condiciones de comprensión profunda del funcionamiento psíquico, com la contribuición del Psicoanálisis de las Configuraciónes Vinculares.

Palabras clave: Psicoanalisis clinica, jovenes, asistencia psicoanalítica.


 

 

1. Reflexões sobre a prática

São muitos os ângulos sob os quais se podem abordar o tema CRISE NA CLÍNICA NA ATUALIDADE E TRANSFORMAÇÕES. Privilegiarei o contexto de minha prática no consultório, e apresentarei algumas reflexões.

Ao longo dos 35 anos em que venho mantendo esta atividade, muitas mudanças significativas vêm ocorrendo: na sociedade, no âmbito da teoria psicanalítica e em mim.

Mudanças são intrínsecas á passagem do tempo, o que tornaria banal o que acabo de dizer. Mas, indo direto ao ponto, é fato notório que aqueles que, como eu, aprendem o exercício da clínica no modelo proposto inicialmente por Freud, que situa na transferência e em sua interpretação a mais valiosa ferramenta de trabalho, começam a encontrar muita dificuldade para uma prática nos moldes anteriormente consagrados no confronto com as condições do dia-a-dia dos tempos atuais.

Minha experiência pessoal como analisanda foi para mim uma evidência da importância da alta freqüência de sessões semanais, bem como do rigor dos horários das sessões. Tive o privilégio de, durante muitos anos manter-me em análise com a mesma analista, sem precisar diminuir o número de sessões, até o momento em que a nós duas pareceu haver chegado um momento em que valeria à pena encerrar o processo. Foi depois desta fase que , passado algum tempo, interessei-me por estudar e viver a experiência da análise de grupo.

Observem que mencionei minha condição como um privilégio e por que o fiz? São raros os jovens adultos, hoje, que podem reservar cinco, quatro, três, ou mesmo duas horas de suas semanas, com rigor, garantia, para sua sessão de análise. As empresas em que trabalham os convocam para reuniões, viagens, workshops que duram a semana toda. Eles não podem dizer não. Não podemos simploriamente interpretar muitas de suas não vindas a sessões como resistência à análise. O que dizer, então, sobre processos de tempo prolongado? É quase rotina no percurso profissional do jovem de hoje a migração: são transferidos, mudam de cidade, de país. Poder mudar, querer mudar, pode ser equivalente a querer fugir de algo, mas também pode significar ser capaz de. Nós, analistas, não podemos restringir a possibilidade de um processo de compreensão profunda dos processos psíquicos ao uso das ferramentas originais. Temos que atualizá-las, sem banalizá-las. O mundo mudou muito desde a invenção da Psicanálise. O que, porém, a Psicanálise nos ensinou definitivamente, é que podemos buscar diminuir o sofrimento humano, olhando para dentro do Homem. (Eu, Betty Svartman, quando escrevo Homem, com H maiúsculo, quero dizer, o homem na sua relação consigo, com cada outro, com sua cultura e com a natureza). Para esclarecer, cito Maldavski (1993, p.19)

(...) cada indivíduo é um conjunto de fragmentos heterogêneos, em cujo seio aparece o alheio, seja como desejos, seja como afetos estranhos e além do mais algumas de suas partes têm um selo diferencial enquanto que outras (...) são genéricas (...) e põem em evidência a eficácia do transindividual, inserido no núcleo do psiquismo, antecipando e fundando os desenvolvimentos empíricos, tanto intrapsíquicos como interindividuais.

Na minha observação pessoal das ondas de movimento no consultório, tenho observado um aumento na procura de psicoterapia. Diante de alguns tipos de sofrimento que os aflige e, muitas vezes os assusta muito, jovens, na faixa dos 25 aos 40 anos têm buscado a ajuda do psicólogo. Porque me expresso assim, dizendo AJUDA DO PSICÓLOGO? Parece-me que é o que melhor descreve os fatos: muitos jovens estão sofrendo intensamente no enfrentamento cotidiano das exigências do viver. São pessoas inteligentes, com boas formações acadêmicas, que encontram colocação no mercado de trabalho. Estão ativas, produtivas, mas sofrem muito. Obviamente, não há uma uniformidade no tipo de sofrimento, nem é o objetivo deste trabalho, classificá-lo. O que, sim, posso dizer, é que é sofrimento de enorme intensidade, que às vezes compromete a saúde física: labirintites, ô de estômago, ou de cabeça permanentes; não são raras manifestações classificadas como síndrome do pânico, com acessos súbitos de suor frio, tontura, sensação de morte iminente; ou queixas às quais se identifica como depressão, que têm a ver com não extrair prazer das próprias realizações, mesmo quando consistentes e até coincidentes com o que foram os próprios anseios. A vida é boa, mas não é freqüente a experiência emocional de felicidade. São também comuns conseqüências graves da total impossibilidade de evitar a invasão das demandas laborais em todas as outras esferas da vida, o que resulta da subjetividade constituída com inclusão de avanços tecnológicos que permitem várias formas de conexão ininterrupta. Esta geração está buscando ajuda. Sente vontade de ter uma vida mais feliz. A energia é grande nesta fase da existência, há ambição compatível com instinto de vida, há potência e potencial, há demanda de suas competências, mas muitos se sentem infelizes e desorientados. Estão procurando caminhos.

Este trabalho não é um relatório de pesquisa, portanto não se trata aqui de precisar proporções. Mas creio que uma parcela grande encontra, nesta procura, o caminho das drogas ilícitas; uma parcela acha, no percurso, o uso abusivo do álcool, com apoio de uma estrutura social já bastante articulada para a manutenção deste hábito; alguns através de várias especialidades médicas, chegam a medicamentos das famílias dos ansiolíticos e antidepressivos, e muitos lotam as academias, 24 horas por dia, fabricando endorfina em níveis que vão muito além do saudável, configurando necessidades passíveis de serem consideradas adição.

O que venho observando, porém, com otimismo, é que, cada vez mais, os recursos acima citados têm se revelado insatisfatórios. A necessidade humana de contato, em minha opinião, volta a tornar-se perceptível. CONTATO é palavra vaga, eu sei. Mas a escolhi propositalmente. Poderia ser tema de uma enciclopédia inteira. Muita pretensão seria querer aprofundar muito num texto tão breve. Mas quero incluir nela alusão aos três âmbitos da constituição de cada um de nós: contato com nossos pares, na vida, contato com nosso interior e com tudo o que nos rodeia, tanto de ordem material, como imaterial. Tenho voltado a acreditar que as pessoas vão percebendo, ao longo do tempo, que é impossível viver sem pensar sobre tudo isto. Para isto têm procurado a ajuda do psicólogo.

Já há algum tempo, o que tenho considerado fundamental nos processos psicanalíticos que conduzo é ajudar meus pacientes a identificarem, na sua relação com suas experiências de vida, quando estão prevalecendo aspectos de integração (inter, intra e/ou transubjetivos), portanto, movimentos que levam ao desenvolvimento. Isto é muito importante, pois nem sempre é uma vivência cujos benefícios se fazem notar no plano material num prazo curto. Trata-se de um ganho que, paradoxalmente, pode exigir um árduo trabalho no sentido de tolerância à frustração, até que haja a "propriocepção" do amadurecimento e fortalecimento psíquico. Em contrapartida, são enormes os riscos de um afastamento exagerado do contato com o próprio mundo interno, hoje intensamente estimulado pelo excesso de demandas da organização social.

Há várias definições de crise. Agrada-me o sentido de ponto de transição. É curioso observar que o mais freqüente é associar-se ao termo crise a direção negativa da mudança. É, de fato, uma das definições que encontramos no dicionário: Conjuntura perigosa, situação anormal e grave. , momento grave, decisivo (Michaelis, 2007). Mas ali está também: Alteração súbita, comumente para melhora, no curso de uma doença aguda. Descreverei as iniciativas que têm me permitido viver a transição evitando o colapso, seja no sentido de poder ter uma clientela, o que exige flexibilidade e também no sentido de não me afastar do que considero a essência da Psicanálise, o que exige permanente estudo dos conceitos e profunda reflexão a respeito dos mesmos.

 

2. Crise promovendo transformação

Parto do sentido mais amplo deste termo. Transformar é dar nova forma. Nada simples, embora possa parecer. Sinônimo de transformar é o vocábulo transfigurar. E, assim como "crise", "transfigurar" é freqüentemente associado a algo negativo. Considero estes fatos uma evidência das emoções ambivalentes do Homem frente ao novo, ao original, ao desconhecido.

Discutir neste artigo a crise atual na prática de consultório e opções pessoais que envolvem transformações que afetam o que está consagrado, assusta. Torna-se presente o medo de transfomar transfigurando, deformando, perdendo a essência do modelo original. Mas é necessário fazê-lo, para que as certezas perdidas não se materializem como perda da identidade de psicanalista.

Na teoria, muito já se evoluiu e a Psicanálise das Configurações Vinculares é a evidência disto. Sou adepta desta forma de pensar na constituição do sujeito e a sintetizo em alguns itens:

Em qualquer situação vincular, estão permanentemente operando todos os âmbitos, todas as dimensões da subjetividade. Prefiro dizer, todas as dimensões da vincularidade. Pois considero que cada sujeito É uma configuração vincular, uma vez que:

1. não existe o sujeito sem o outro real externo;

2. não existe o sujeito sem o outro dentro de si, como imago;

3. não existe o psiquismo humano sem fantasias;

4. as fantasias são cenas;

5. nas fantasias os personagens estão vinculados;

6. não existe o sujeito fora da cultura;

7. não existe um "fora" significativo sem um correspondente dentro do sujeito;

8. o sujeito humano é , portanto, uma articulação de vínculos reorganizando-se permanentemente num corpo pulsante, rodeado de seres e de coisas materiais e imateriais.

Esta definição nos transporta, imediatamente, da abordagem positivista, dominante na época do nascimento da Psicanálise, à noção da Teoria da Complexidade, hoje mais aceita, que propõe que são múltiplas as variáveis que se cruzam, tornando cada situação absolutamente singular e surpreendente. Somos obrigados a lidar com não saber previamente e temos que construir conhecimento o tempo todo.

Os rigores relacionados ao setting psicanalítico pensados como recurso para diminuir o número de variáveis intervenientes para poder com maior facilidade identificar as projeções e imprimir algum contorno aos fenômenos transferenciais, faz sentido dentro de um raciocínio positivista.

O conceito de interpretação mutativa, criado por Strachey na década de 30, tão valioso no desenvolvimento da Psicanálise, que propõe que a mudança na estrutura inconsciente só ocorre quando uma interpretação é dada no ponto de urgência e na transferência, perde o sentido quando se postula um inconsciente em permanente transformação. Agrada-me bastante a idéia de Etchegoyen , referido várias vezes por Manfredi quando aborda o tema da idealização da interpretação mutativa, de que a mudança psíquica resulta de micromutações ao longo do tempo. (Manfredi, 1994)

Houve um longo período na História da Psicanálise de idealização do valor mutativo de interpretações acertadas, acompanhado de desvalorização de intervenções chamadas paliativas, visando apenas diminuir ansiedade. Muita discussão é possível em torno do tema interpretação, do ponto de vista da Psicanálise. Encontrei uma colocação de Rycroft, na mesma obra acima citada ( Manfredi ,1994) que me agradou bastante onde diz que o dever do analista consiste no fato de estar com o paciente, ouvir e procurar compreendê-lo e a interpretação comunica que está havendo uma atividade mental do analista. Acrescento a isto minha definição atual de Psicanálise que é: processo de olhar para si, reconhecer e conhecer melhor o próprio funcionamento psíquico, através de uma experiência vincular da qual participa um OUTRO - o analista - preparado para utilizar esta própria experiência como matéria-prima deste processo.

Tendo isto em mente, considero que posso desenvolver um processo psicanalítico profundo e mutativo atendendo meus pacientes apenas uma vez por semana. Que o que definitivamente impediria o processo seria impor condições que seriam tão difíceis na rotina que a pessoa em sofrimento e desejosa de compreender o que está se passando com ela, não possa aderir à análise.

Tenho pensado muito sobre a resistência, conceito originalmente definido por Freud, aludindo às forças que se opõem à aproximação dos conteúdos inconscientes. Muitos dos acontecimentos no percurso para alcançar o consultório onde vai se realizar a sessão psicanalítica podem ser, equivocadamente, entendidos como resistência. Tenho visto sentido em responder a tais situações com iniciativas que podem ser consideradas atuações, mas que resultam na possibilidade de, ao final, ter o paciente junto a mim para examinar todo o processo envolvido até chegarmos naquele encontro. E com isto, ele conquista devagarzinho uma possibilidade única de identificar coisas importantes sobre si, que podem ajudá-lo.

Considero ampla a gama de atividades interpretativas possíveis no espaço psicanalítico. Parece-me útil ter em mente que somos analistas se não esquecermos que nosso papel é o de intérpretes do mundo mental de nossos pacientes. Que só podemos desempenhá-lo se os pacientes vierem a nós. Por isto e para isto, temos que criar ações e intervenções sem script; improvisar o tempo todo.

Improviso, em qualquer área, depende de talento, repertório e conhecimento.

Termino citando Puget (1997, p.137): "La subjetividad sólo se construye com un outro y com el conjunto y se sigue construyendo a lo largo de toda la vida, y por lo tanto la del psicoanalista no escapa a esta regla. Y esta manera de pensar me lleva a decir que la vincularidad puede considerarse el nuevo paradigma del psicoanálisis."

 

4. Referências

MALDAVSKY, D. Processos e estruturas vinculares - Mecanismos, Erogeneidade e Lógicas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. 251 p.         [ Links ]

MANFREDI, S. T. As certezas perdidas da psicanálise clínica. Rio de Janeiro: Imago, 1994. 195p.         [ Links ]

MICHAELIS Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Melhoramentos. 2007 (Disponível em michaelis.uol.com.br)        [ Links ]

PUGET, J ,.La mente Del psicoanalista de configuraciones vinculares. Revista de La AAPPG, Buenos Aires, Tomo XX, n 1, p. 135-150, 1997.         [ Links ]

 

Recebido em 15/09/2011
Aceito em 01/12/2011

 

 

 

1 Betty Svartman, psicóloga, grupanalista, docente do NESME e da SPAGESP.