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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.9 no.1 São Paulo jun. 2012

 

ARTIGOS

 

A tutoria na grade curricular do ensino médio como contribuição para a formação do grupo escolar

 

High school curricular guidance as a contribution to student group development

 

La tutoría como parte del plan de estudios obligatorio como contribución a la formación del grupo escolar

 

 

Alexandre dos Santos1; Ana Carolina Godoy F. Lojo2; Bruna Ronchi Oliveira3; Cibelle Ladeira Scudeler Martino4; Marcos Lanner de Moura5; Pedro da Cunha Del Picchia6; Silvia de Souza Alves7

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho desenvolve uma reflexão sobre a disciplina de tutoria como parte da grade curricular obrigatória do 1º ano do Ensino Médio em uma escola particular da Grande São Paulo e de como este espaço pode favorecer a constituição de uma identidade de grupo. A tutoria consiste em um espaço conduzido por um professor-tutor que acompanha a turma ao longo do ano letivo. Sem conteúdo programático pré-definido, abordam-se questões emergentes em cada turma, favorecendo assim a expressão e a elaboração de angústias e sofrimentos próprios deste momento de formação. F azem parte dos recursos utilizados ferramentas como auto-avaliação individual e em grupo - baseadas nos critérios estabelecidos pela própria turma - e portfólio. A partir de um caso ilustrativo, discute-se o processo de mudança nas visões dos integrantes da turma sobre si e sua implicação com o universo escolar: inicialmente tida como "bagunceira" e "sem futuro" pelos docentes, pôde re-significar seu lugar na escola, transformando o olhar da instituição sobre eles. Conclui-se que a tutoria, integrada à grade curricular, contribui para a formação de identidade grupal e desenvolvimento integral do aluno.

Palavras-chave: Tutoria, Ensino Médio, Identidade Grupal


ABSTRACT

This paper discusses the high school curricular guidance as part of the mandatory curriculum in the first year of a private high school in the Sao Paulo metropolitan area, focusing on how it can promote the development of the group identity. Guidance is conducted by a teacher - tutor who accompanied the group throughout the school year. Without pre - defined content, the teacher opens the opportunity to address emerging issues in each class, thereby facilitating the expression and elaboration of students' anxieties and sufferings which are usual at this stage. Individual or group s elf - assessment— based on criteria established by the class itself — and reflective portfolio are tools used in the process. From an illustrative case, is discussed the process of perspective changes of the students about themselves and their involvement with the school environment: initially the class was seen as "messy" and "futureless" by teachers, along the process they could re - signify their own meaning at school, transforming the institutional sight over them. It was concluded that integrating guidance into the curriculum contributes to the formation of communitarian relations and the integrative development of the student.

Keywords: Guidance, High School, School Group


RESUMEN

Este artículo reflexiona sobre la disciplina de la tutoría como parte del plan de estudios obligatorio en el 1er año de secundaria en una escuela privada en el área metropolitana de Sao Paulo y cómo se puede promover la formación de una identidad de grupo. La tutoría consiste del profesor-tutor que acompaña al grupo durante todo el año escolar. Sin plan de estudios pre-definidos, para hacer frente a nuevos problemas en cada clase, lo que facilita la expresión y la elaboración de sus propias angustias y los sufrimientos de este tiempo de formación. Son parte de los recursos utilizados como herramientas de grupo de auto-evaluación e individuales - sobre la base de criterios establecidos por la propia clase - y el portfólio reflexivo. A partir de un caso ilustrativo, se discute el proceso de cambio en las opiniones de los miembros de la clase acerca de sí mismos y su implicación con el entorno escolar: en un principio considerado como "ruidoso" y "sin futuro" por los profesores, el grupo pudo volver a indicar su lugar en la escuela, transformando el aspecto de la imposición sobre ellos. Se concluye que la tutoría, integrada en el plan de estudios, contribuye a la formación de una identidad de grupo y promoción del desarrollo integral del alumno.

Palabras clave: Tutoria, Educación Secundária, Identidad del Grupo


 

 

"Cultivamos os grupos como telas impressionistas;
de longe são imagens azuladas de uma harmonia
inamovível, de perto, manchas saturadas de cor, cintilações
particulares existindo para lá de qualquer desenho"

Inês Pedrosa, Nas tuas mãos

O presente trabalho visa apresentar a experiência da tutoria no projeto pedagógico de uma escola particular de Ensino Médio na grande São Paulo e, a partir da apresentação de um caso, discutir sobre a validade e importância deste recurso no favorecimento da aprendizagem significativa e da formação integral (MÜLLER, 2007) do jovem estudante.

A tutoria é um projeto desenvolvido pela equipe de orientadores educacionais desta escola desde 2007. Inicalmente implantada como um projeto experimental, constituía-se num espaço optativo para os alunos do 1º ano, em horário fora da grade curricular obrigatória, com o intuito de auxiliá-los na adaptação à metodologia de ensino da escola e dar espaço para a manifestação de outros temas pertinentes ao universo adolescente que, muitas vezes, surgiam no dia-a-dia escolar e não eram abordados coletivamente. A partir de 2010, a disciplina passou a fazer parte da grade curricular obrigatória dos alunos do 1º ano, tendo sido reconhecida pela instituição como um espaço importante para a formação do aluno. Tal mudança traz duas implicações imediatas: a obrigatoriedade da participação de todos os alunos, favorecendo o trabalho com o grupo da turma, e o desenvolvimento de um sistema de avaliação coerente com a proposta. Procuraremos explorar aqui o primeiro aspecto por entender que trouxe impactos significativos no alcance da tutoria enquanto espaço complementar para o favorecimento do desenvolvimento emocional e pedagógico dentro da instituição escolar.

Características da escola

A experiência apresentada se dá em uma escola particular da Grande São Paulo, conhecida por oferecer um ensino exigente e preparatório para a aprovação em grandes vestibulares. Embora ofereça também o Ensino Fundamental, a maior parcela de seus alunos frequentam o Ensino Médio e o curso pré-vestibular. O primeiro ano do Ensino Médio, ano em que a tutoria faz parte da grade curricular obrigatória, é organizado em 4 bimestres. São, em média, 25 a 30 alunos por sala. O sistema de avaliação é composto em sua maioria por provas e simulados individuais (dissertativos e testes de múltipla escolha), representando 80% ou mais da média bimestral. Os alunos enfrentam uma ampla grade de aulas, em sua maioria expositivas, que ocupa todas as manhãs e duas tardes por semana. A carga de estudos extra-classe prevista pela escola é de, em média, 15 a 20 horas semanais.

A tutoria

Cada turma é acompanhada por um professor-tutor ao longo do ano letivo, em uma aula semanal de 50 minutos. O professor-tutor é um professor da própria turma em outra disciplina que se candidata voluntariamente para assumir a aula semanal de tutoria, podendo esta ser, no entanto, também conduzida por um Orientador caso não haja professor disponível. A equipe de Orientação oferece encontros de capacitação aos professores-tutores antes do início do ano letivo, onde se discute o papel do tutor, os propósitos da tutoria, experiências anteriores, diferentes técnicas para condução das discussões em aula e formas de avaliações coerentes com a proposta. A capacitação tem por objetivo problematizar sobre diferentes formas de abordar temáticas (discussão em roda, dramatização, dinamica de grupo, etc) e suas implicações, oferecer recursos para o trabalho futuro dos professores-tutores e sensibilizar para a importância da tutoria na vida escolar dos alunos de forma geral e na presente instituição em que se insere. Ao longo do ano, a equipe de Orientação se reune com a equipe de professores-tutores para discutir o andamento das turmas, compartilhar experiências e práticas (em média 4 encontros anuais). O orientador responsável por cada unidade acompanha através de reuniões regulares (a cada 15 dias) os tutores de suas turmas (de 1 a 4 primeiros anos, dependendo da unidade), nas quais discutem sobre os encontros – falas, conteúdos manifestos, sentimentos, situações, atividades realizadas, casos individuais, etc. – e possibilidades de intervenções para os próximos encontros.

Nos primeiros 5 encontros da tutoria, com o intuito de estabelecer os laços entre professor e turma e definir o enquadre para os encontros seguintes, são abordados: apresentação (dos alunos e do tutor); expectativas sobre a tutoria; oficina de organização pessoal (planejamento semanal, agenda, etc); orientação/organização de estudos; construção coletiva de combinados e regras que todos devem respeitar ao longo dos encontros (apelidado de "Código de Honra") e levantamento de temas que gostariam de abordar ao longo dos demais encontros. É importante destacar que, por se tratar de uma escola onde a grande maioria dos alunos que ingressam o Ensino Médio vem de outras instituições escolares, as oficinas de organização pessoal e de estudos têm o intuíto de aproximar os alunos do método de ensino do colégio ao mesmo tempo em que buscam oferecer instrumentos para que desenvolvam suas próprias estratégias de organização e estudos, tratando-se tanto de uma demanda da escola como uma necessidade dos alunos. A partir destes 5 encontros iniciais não há conteúdo programático pré-estabelecido, sendo os temas e atividades definidos pela turma juntamente com o professor-tutor de acordo com o que emerge nos encontros, apenas respeitando o calendário escolar no que concerne a avaliação e entrega de notas.

Fazem parte dos recursos utilizados para a avaliação ferramentas como auto-avaliação individual e em grupo - baseadas nos critérios estabelecidos pela própria turma - e portfólio reflexivo (SÁ-CHAVES, 2000).

O tutor busca assumir um lugar de diálogo, acompanhando questões da turma e promovendo o desenvolvimento do grupo escolar. Abre-se um espaço na rotina que difere do da sala de aula, do intervalo ou de prova, e permite trabalhar questões de forma coletiva. Para isso, é fundamental que o professor deixe de ser "professor" e passe a ser "tutor" (MÜLLER, 2007) para que possa estabelecer outra forma de relação com a turma, oferecendo uma possibilidade de diálogo que vai além da de uma aula tradicional. Trabalhando as questões emergentes do grupo, a expressão e a elaboração de angústias e sofrimentos, o espaço visa valorizar a consolidação de uma identidade grupal (BLEGER, 1991).

A tutoria favorece a constituição de relações mais saudáveis dentro da turma a partir do momento que abre espaço para a consolidação do grupo e o favorece como instrumento de mediação. René Kaës (1997) propõe a noção de aparelho psíquico grupal, ou seja, de uma constituição e funcionamento próprios do grupo. Não se trata da somatória das psiques individuais que do grupo fazem parte, mas da constituição de um aparelho grupal, dotado de características e funcionamentos próprios. De acordo com o autor sua "característica principal é assegurar a medição e a troca de diferenças entre a realidade psíquica nos seus componentes intrapsíquicos, intersubjetivos e grupais e a realidade grupal em seus aspectos societários e culturais." (KAËS, 1997. p. 169). Segundo Kaës (1997)

o grupo é utilizado pelos sujeitos como continente (W. - R. Bion) de seus conteúdos psíquicos transformados em representações, fantasias pensadas ou não transformadas e expulsas por eles para o grupo, onde podem ser objeto de transformações nos processos de grupo. O grupo é, em consequência, utilizado como um contentor, quer dizer, um aparelho de transformação: um aparelho pluripsíquico organizado pelo processo de grupo, e um aparelho intersubjetivo no qual perlaboram conteúdos e processos abrigados e metabolizados na psique dos outros. (p. 194)

Para Kaës, os indivíduos que do grupo fazem parte contribuem para o grupo, porém, ao mesmo tempo são influenciados pelo grupo e formados por ele. O aparelho psíquico individual se forma, por um lado, na aparelhagem psíquica grupal, "precede dela e nela se transforma, dela se diferencia e, em certas condições, adquire autonomia." (KAËS, 2007. p. 116). O autor entende que a estrutura do grupo "preexiste aos sujeitos e, ao mesmo tempo, só existe por eles e para eles" (KAËS, 2007, p. 116). É através dos vínculos e na intersubjetividade que há sustentação para o processo de subjetivação – processo de transformação do sujeito assumido pelo Eu (KAËS, 2007).

É justamente sobre o potencial de subjetivação, formação e transformação do sujeito que o grupo dispõe que a tutoria se respalda, buscando oferecer um espaço complementar de promoção de desenvolvimento emocional e pedagógico dentro da instituição escolar.

Através do estudo de um caso, busca-se analisar o processo percorrido no ano escolar de uma turma e avaliar a pertinência do modelo proposto.

 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

A partir de um caso ilustrativo, discute-se o processo de mudança nas visões dos integrantes da turma sobre si e sua implicação com o universo escolar: uma turma inicialmente tida como "bagunceira" e "sem futuro" pelos docentes, re-significou seu lugar na escola, transformando o olhar da instituição sobre eles.

Caso: "1º B: A identidade da turma na relação com a escola"

Constituído em grande medida por alunos vindos de um colégio tido de "má fama" pelos professores, logo no início do ano a turma foi ganhando certo estigma. Ainda no início do 1º bimestre eram vistos como uma turma difícil, bagunceiros, indisciplinados e sem base, sendo comum entre os professores a queixa de que não era possível dar aula naquela sala. A coordenação procurou, através da coerção, reverter o quadro de indisciplina, com broncas e expulsões de sala.

Nos primeiros encontros a tutora tinha angústias parecidas com as dos demais professores, buscando, no entanto, construir uma abordagem diferenciada: abrir um debate sobre o assunto para ouvir como os alunos se sentiam e se percebiam em relação à escola. Medos e ansiedades apareceram: se sentiam impotentes, temiam o fracasso e a decepção familiar. Apesar de compreenderem que dificultavam o andamento das aulas, sentiam-se fora de controle quando em grupo e, mesmo querendo fazer silêncio, não conseguiam.

Aqui vemos que a tutoria ofereceu um espaço de acolhida às angústias que enfrentavam, possibilitando que viessem à tona para serem elaboradas. Ao sair do lugar de repreensão, que a escola como um todo sustentava diante do "descontrole" que a sala apresentava, e colocar-se no lugar de escuta, foi possível a movimentação de aspectos sincréticos (BLEGER, 1991) ali presentes: viam-se como incapazes e fracassados diante das cobranças realizadas. Enquanto na sala dos professores comentava-se que metade da turma reprovaria se continuassem daquele jeito, na sala de aula os alunos reagiam ansiosamente (com brincadeiras que fugiam ao controle deles mesmos) ao medo do fracasso. De acordo com Käes, certas formações psíquicas são comuns e partilhados pelos sujeitos membros de um grupo, só aparecem e se transformam na situação de grupo (KAËS 2007). No caso desta turma, vemos que os alunos reconhecem a própria perda de controle individual quando em grupo, possivelmente diante de uma realidade psíquica grupal que reverbera os medos e ansiedades de cada um. Segundo Bleger, "não é apenas a novidade que provoca o medo, mas também o desconhecido que existe no interior daquilo que é conhecido", assim, "o medo se produz diante do desconhecido que cada pessoa traz em si mesma sob forma de não-pessoa e de não-identidade (ou de Eu sincrético)" (BLEGER, 1991. p. 64). A tutoria ofereceu um espaço para que medos diante dos vários desconhecidos que os alunos enfrentavam – ingresso em uma nova instituição escolar, colegas novos de classe, expectativas dos pais e receio do fracasso – fossem expressos, auxiliando no processo de elaboração destes. A partir deste momento este grupo escolar passou a tecer uma sólida identidade coletiva como recurso para lidar com tais angustias, conforme segue no relato:

Definiram um acordo para pedirem silêncio: ao perceber que a classe fugia ao controle, o colega deveria levantar a mão e silenciar-se, até que, um a um, todos fizessem o mesmo movimento e a classe silenciava-se.

Percebeu-se uma tentativa de enfrentar os medos ali presentes, pedindo à tutora e ao Serviço de Orientação, dicas e estratégias para estudarem melhor. Os professores, aos poucos, foram mudando o discurso sobre a sala, vendo os alunos trazerem mais dúvidas e pedirem por ajuda nas dificuldades.

No 2º Bimestre aconteceram os jogos anuais interclasses e interunidades, em que cada sala constituía uma equipe. Na semana exclusivamente dedicada aos jogos, estabeleceu-se um processo intenso de identificação entre os alunos membros da turma e um comprometimento coletivo, observado na ajuda mútua para tentar minimizar dificuldades deflagradas pelas limitações individuais ou de grupos menores. Além disso, alunos anteriormente marginalizados pelo grupo, conseguiram se integrar, estabelecendo laços de amizades mais flexíveis.

Ao final do 2º bimestre, o temor pela reprovação ainda persistia, sentiam-se frustrados pelos poucos resultados obtidos nas provas apesar de maior empenho nos estudos. Devido a um histórico de evasão do colégio no meio do ano dos alunos de baixo rendimento, temiam que o grupo se desfizesse e antecipavam o luto na tutoria, como ilustra a fala de uma aluna: "se quando a gente voltar não estiverem todos aqui, todos saibam que o 1º B é demais!". Na volta às aulas após as férias, no entanto, configurou-se como a turma de menor evasão escolar dentre 3 primeiros anos.

O grupo constituiu uma identidade própria rapidamente. Tornaram-se muito unidos e buscaram, através da organização, tentar lidar com estas ansiedades. Na semana de jogos tiveram uma participação marcante, além de desenvolverem uma forma organizada de pedir silêncio aos colegas em sala de aula. Por conta do vínculo que estabeleceram entre eles, ao meio do ano, foi a turma de menor evasão escolar, embora as notas continuassem ainda muito baixas.

Segundo Erikson (1972) a identidade coletiva é uma forma do jovem apoiar-se para constituir sua identidade individual. Essa confiança no grupo é o jeito que ele vê para se proteger das desconfianças do mundo adulto. Bleger (1991), trazendo o conceito de identidade grupal sincrética, explora a profundidade dos vínculos presente em um grupo, a socialização onde os "indivíduos ou pessoas não tem identidade enquanto tal mas sua identidade reside na sua filiação ao grupo" (BLEGER, 1991 p. 66). O autor acrescenta: "o grupo começa a funcionar quando essas pessoas distintas, até então separadas, se encontram a uma distância suficiente e relativamente isoladas dos outros contextos para poder interagir" (BLEGER, 1991 p. 61).

As seguintes anotações encontradas no diário de uma professora de biologia ao longo deste percurso nos mostra que o movimento realizado pela classe foi bastante significativo e percebido pelos professores:

- Fevereiro: Classe complicada no sentido de obedecer normas e mudança de postura durante o bimestre.

- Março: Eles estão tentando criar métodos entre eles para diminuir o barulho.

- Maio: Classe afetiva.

No entanto, embora a identidade coletiva constituída se torna um apoio importante para o desenvolvimento dos alunos, tal movimento mostrou-se, também, uma forma de reforçar a clivagem e preservar alguns aspectos sincréticos (Bleger, 1991) imobilizados. O pavor do fracasso permanecia, bem como a sombra da "pior turma" quanto aos rendimentos escolares. Em meados do segundo semestre, alguns alunos solicitaram mudança de sala por entenderem que aquela turma prejudicava os estudos deles.

Ainda com baixo rendimento, se queixavam de não conseguir acompanhar o colégio e preocupavam-se com a reprovação. A tutora, em contrapartida, angustiava-se por não conseguir promover uma mudança significativa na turma. Percebeu-se que um movimento transferencial havia se estabelecido: a tutora sentia-se impotente e incapaz diante da sala e a turma, por sua vez, sentia o mesmo em relação à escola. Ao decorrer do 3º e 4º bimestres, as tensões foram aumentando quanto mais se aproximavam dos exames finais. O espaço físico apresentava evidencias: a sala ficava constantemente desarrumada e com muito lixo pelo chão (papéis, embalagens, restos de comida, etc). O tema foi discutido na tutoria, evidenciando o quanto aquele movimento refletia o sentimento dos alunos.

Compreendeu-se a atitude da turma como expressão do modo que eles próprios se viam: "um lixo". Denegrir-se enfatizava o estigma outorgado a eles desde o início do ano. E o sentimento de incapacidade e impotência diante do sistema, das notas, dos professores, do processo de aprendizagem, foi tomando a turma.

A tutora, então, sugere uma atividade que permanece até o final do ano letivo, chamada anjo-cuidador. Cada aluno se responsabilizaria por tecer comentários positivos e negativos sobre um colega sorteado, sempre pensando sua relação com a turma, estabelecendo o cuidado de uns pelos outros e a ajuda mútua.

A discussão sobre a sujeira da sala possibilitou a expressão e movimentação de certos aspectos sincréticos até então presentes: o estigma do fracasso, do pior rendimento, do "lixo". A dinâmica possibilitou, por fim, que os alunos se vissem com respeito e se fortalecessem diante dos desafios que outrora temiam enfrentar. Favoreceu a saída da esfera do indivíduo para a esfera do "outro", percepção do coletivo. Responsabilizando-se por um outro, sentiram-se, também, cuidados (olhados) por alguém. Capazes de cuidar de alguém, eram também capazes de cuidar de sí, responsabilizar-se pelas dificuldades e enfrentá-las.

Ao final do ano letivo, o 1ºB, contradizendo as previsões dos professores ao início do ano, configurou-se como a turma de menor evasão escolar (13,79%), a segunda de menor reprovação (6,89%) dentre as 3 turmas de 1º ano do colégio, obtendo o maior índice de aprovação das 3 turmas (79,32% sobre o número de alunos ingressantes).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

São as vivências (que a pertença ao grupo traz) que possibilitam a aprendizagem e a promoção do desenvolvimento integral do aluno. A tutoria procurou alargar o campo de experimentações e de possibilidades dos alunos frente a novas e velhas questões, buscando produzir mudanças significativas no seu modo de lidar com a realidade, interna e externa.

Entende-se que toda a turma escolar constitui um grupo de alunos que por si oferece funções de continência e subjetivação tais como descritas por Kaës. Porém, em um ambiente escolar que prioriza aulas expositivas tradicionais, onde o professor se coloca como transmissor e o aluno como receptor do conteúdo, as avaliações são individualizadas e há poucos espaços para trabalhos coletivos no dia-a-dia escolar, acaba por desfavorecer construções coletivas e enfraquece o papel do grupo como potencializador do desenvolvimento. A tutoria, na contramão de tal estrutura, inserida na grade escolar, se mostrou proveitosa no sentido de favorecer o desenvolvimento integral do aluno potencializado pelo trabalho com o grupo escolar.

Este caso foi escolhido por entender que melhor ilustra o processo de transformação que o grupo percorre ao longo do ano letivo, envolvendo mudanças nas relações entre os alunos, destes com os professores e a escola, em como se veem e são vistos. Outras turmas também mostraram mudanças significativas ao longo do ano letivo e entende-se que um estudo para explorá-los ou mesmo um estudo comparativo dos diferentes processos entre as diferentes turmas seria proveitoso. As diferentes formas de condução dos tutores e uma pormenorização da dinâmica de cada aula também podem oferecer conteúdos ricos para estudos futuros.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência

Marcos Lanner de Moura
Psicólogo pela Universidade de São Paulo, Especialista em Orientação Profissional pela
Universidade de São Paulo e em Psicoterapia Breve Psicanalítica pelo Instituto Sedes Sapientiae,
mestrando em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo
End: Rua João Anes, nº 174
CEP 05060-020, São Paulo-SP
Tel: 81273903
E-mail: marcos.lanner@gmail.com

 

Agradecimento:
Christiane Cardoso Ferreira

 

Recebido em 13/02/2011
Aceito em 10/01/2012

 

 

1 Mestre e Doutorando em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo, docente em Orientação Profissional no Instituto Sedes Sapientiae e Psicologia na Universidade Cruzeiro do Sul
2 Psicóloga pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Orientadora Profissional e de Estudos
3 Psicóloga pela Universidade de São Paulo, Orientadora Educacional e Profissional
4 Psicóloga pela Universidade Estadual Paulista, Especialista em Terapia de Família e Casal pela PUC-SP e Orientadora Educacional e Profissional
5 Psicólogo pela Universidade de São Paulo, Orientador Educacional do Colégio Visconde de Porto Seguro, Especialista em Orientação Profissional e em Psicoterapia Breve Psicanalítica, mestrando em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo
6 Psicólogo pela Pontificia Universidade Católica de São Paulo, Orientador Educacional e Profissional
7 Psicóloga pela Universidade Estadual Paulista, Orientadora Educacional e Profissional