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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.9 no.1 São Paulo jun. 2012

 

ARTIGOS

 

O dispositivo de grupo na Esquizoanálise: tetravalência e esquizodrama

 

The group device in Schizoanalysis: Tetravalence and Schizodrama

 

El dispositivo de grupo en Esquizoanálisis: Tetravalencia y Esquizodrama

 

 

Domenico Uhng Hur1

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo é discutido como o grupo é apreendido na Esquizoanálise, pois pretende-se localizar contribuições desta teoria para a intervenção com grupos. Realizamos revisão bibliográfica em toda obra dos franceses G. Deleuze e F. Guattari e do argentino-brasileiro G. F. Baremblitt e encontramos duas importantes contribuições: a discussão acerca da tetravalência do dispositivo e a invenção de um novo campo que articula Esquizoanálise e intervenção, chamado de Esquizodrama. Consideramos que conhecer o funcionamento da tetravalência de cada dispositivo de intervenção possibilita uma maior compreensão e manejo de seus efeitos. Entendemos que o Esquizodrama é um campo híbrido com diversas referências e que busca dramatizar os conceitos esquizoanalíticos. Concluímos que os dispositivos teóricos e técnicos da Esquizoanálise contribuem ao fomento dos processos de desterritorialização e subjetivação.

Palavras-chave: Esquizoanálise; psicanálise de grupo; Esquizodrama; dispositivo.


ABSTRACT

In this article is discussed how the group is perceived in Schizoanalysis, because we search for contributions of this theory to groups intervention. It is performed a bibliographical review in all work of G. Deleuze, F. Guattari and G. Baremblitt and we find two important contributions: the discussion about the device tetravalence and the invention of a new field that intertwines Schizoanalysis and intervention, called Schizodrama. It is considered that the understanding of the operation of the tetravalence of each intervention device makes possible a bigger knowledge and handling of its effects. The Schizodrama is understood as a hybrid field with several references that searches to dramatize the schizoanalytics concepts. We conclude that the theoretical and technical devices of Schizoanalysis contribute to the incitement of the processes of deterritorialization and subjectivation.

Keywords: Schizoanalysis; group psychoanalysis; Schizodrama; device.


RESUMEN

En este artículo es discutido cómo el grupo es pensado en Esquizoanálisis, pues se pretende buscar contribuciones de esta teoría para la intervención con grupos. Realizamos una revisión bibliográfica en todo el trabajo de los franceses G. Deleuze y F. Guattari y del argentino-brasileño G. F. Baremblitt y encontramos dos importantes contribuciones: la discusión sobre la tetravalencia del dispositivo y la invención de un nuevo campo que articula Esquizoanálisis e intervención, llamado de Esquizodrama. Consideramos que conocer el funcionamiento de la tetravalencia de cada dispositivo de intervención posibilita una mejor comprensión y manejo de sus efectos. Entendemos que el Esquizodrama es un campo híbrido con diversas referencias y que busca dramatizar los conceptos esquizoanalíticos. Concluimos que los dispositivos teóricos y técnicos del Esquizoanálisis contribuyen para la incitación de los procesos de desterritorialización y subjetivación.

Palabras clave: Esquizoanálisis; psicoanálisis de grupo; Esquizodrama; dispositivo.


 

 

A Esquizoanálise é uma corrente teórica bastante utilizada para a análise de grupos e instituições. Tem como algumas de suas referências a psicanálise e o marxismo, mas em nenhum momento se reduz a um desses campos de conhecimento. Contudo, mesmo com seus conceitos sendo bastante citados em intervenções grupais, consideramos que não há uma relação direta entre Esquizoanálise e grupo, pois constata-se na obra esquizoanalítica, salvo raros casos (Barros, 2007), a ausência de teorização mais extensa acerca do dispositivo de grupo e inclusive um de seus fundadores, Deleuze, apresenta visão reticente acerca desse dispositivo.

Dessa forma, o objetivo do artigo é discutir o dispositivo de grupo na Esquizoanálise, desde as perspectivas dos criadores desse campo, até a invenção atual de um novo campo teórico e de intervenção clínica e grupal chamado de Esquizodrama. Pretendemos problematizar como o grupo é apreendido na Esquizoanálise para localizar possíveis contribuições para a intervenção com grupos. Para tanto realizamos uma revisão bibliográfica em toda a obra dos fundadores da Esquizoanálise, o filósofo Gilles Deleuze e o analista institucional Félix Guattari, e do inventor do Esquizodrama, Gregório Baremblitt, investigando os pontos principais de discussão acerca do dispositivo de grupo. Deste modo, discutiremos a relação Esquizoanálise e grupos, em seguida, a sua compreensão acerca do dispositivo e, para finalizar, considerações acerca do Esquizodrama.

 

Esquizoanálise e grupos?

Por se tratar fundamentalmente de uma Filosofia, não há na Esquizoanálise uma preocupação direta com o dispositivo de grupo. Deleuze é reconhecido internacionalmente como um dos mais profícuos filósofos contemporâneos, admirado por inúmeros pares, como por exemplo, Michel Foucault e Alain Badiou, e desenvolveu extensa obra no campo da Filosofia e das Artes. Mas também debruçou-se em outros campos, como a política, a psicanálise e fundamentalmente uma crítica social, na obra em parceria com Guattari, denominada "Capitalismo e Esquizofrenia", dividida em dois tomos, o Anti-Édipo e Mil Platôs. Como já se pode perceber pelo nome, o Anti-Édipo traz um intenso debate e crítica a um dos conceitos mais tradicionais da psicanálise, tendo como alvo principal a psicanálise de matriz estruturalista, ou seja, os estudiosos da Escola Freudiana de Paris - EFP, capitaneada por J. Lacan.

Brevemente citaremos algumas diferenças trazidas pela Esquizoanálise. Ao invés de trabalhar com a neurose como processo psíquico fundante, trabalha-se com a esquizofrenia. O processo esquizofrênico é anterior à neurose, sendo assim, os delírios do esquizo não estão codificados pela triangulação edípica, mas sim por múltiplos aspectos do campo social; portanto este não delira o Édipo, mas sim raças, tribos, continentes e universos. Dessa forma, o Édipo não é estrutura fundante, mas sim formação psíquica posterior (Deleuze & Guattari, 1976). E ao invés de trabalhar com a família como conjunto social determinante, trabalha-se com o Capitalismo, por entender que a axiomática do Capital modula as condutas e subjetividades, em que a família aparece como correia de transmissão dessa lógica. Deste modo, a relação psiquismo e sociedade não é mais lida no par Família e neurose, mas sim no par Capitalismo e Esquizofrenia. O psiquismo extrapola um suposto internalismo de um envelope corporal, tendo em vista que na filosofia deleuzeana estipula-se a constituição de um campo transcendental na relação entre consciência e mundo, em que o sujeito não fica reduzido ao intrapsíquico (Deleuze, 2001). Portanto, abandona-se uma postura filosófica racionalista, o cogito, em que o Eu apareceria como entidade que pensa e atribui significado ao dado e ao mundo. Opera-se uma inversão, em que este Eu é entidade formada pelas afecções do mundo, numa modalidade de um Empirismo Transcendental (Deleuze, 2007). Nessa dobra entre sujeito e campo transcendental, Deleuze e Guattari (1995) passam a falar então em agenciamentos, articulações, máquinas e multiplicidades, em que os processos de subjetivação resultam dessas múltiplas conexões. Também há uma mudança de compreensão sobre o inconsciente, de um modelo representativo, para um modelo pragmático. Ao invés do inconsciente figurar e representar processos, tal como um teatro, Deleuze e Guattari (1995) entendem que o inconsciente opera como uma usina intensiva, numa lógica maquínica produtora de elementos e fluxos significantes e a-significantes, em que suas intensidades não podem ser reduzidas a uma representação. Então, em sua compreensão, o inconsciente não é figurativo, tampouco simbólico, funciona mais por uma lógica "magmática" e intensiva. É por isso que para eles ao desejo nada falta, não é restitutivo de uma falta, ou de uma fantasia originária, mas o desejo sempre é produção e positividade, expressão e afirmação de um processo intensivo. Dessa forma, o inconsciente extravasa, não cessa de se desterritorializar e não partilha da lógica da negatividade, mas sim das multiplicidades positivas e contínuas (Deleuze, 1999). Considera-se assim o Édipo, fantasmas, sonhos e significantes como torniquetes que podem bloquear os fluxos desejantes (as linhas de fuga), e que devem ser considerados como indicadores, rastros, do processo, mas não o objetivo final. Portanto, para a Esquizoanálise é necessário saltar tais formações para fazer fluir os fluxos desejantes, para se descobrir como funciona o investimento inconsciente no campo social e o que bloqueia esse movimento.

Por mais que Guattari tenha longo percurso na análise de grupos e instituições, o debate é prioritariamente travado com os lacanianos, ou no máximo com algumas vertentes da análise institucional e da antipsiquiatria, praticamente não havendo menção à psicanálise de grupos, seja nas vertentes inglesa, francesa ou argentina. Isso pode ser explicado, em parte, pelo fato da grande proximidade de Deleuze e Guattari à Lacan; o primeiro foi convidado a fazer parte de sua Escola, mas não aceitou, e o segundo foi seu membro até a dissolução da EFP. A importância de Lacan ao movimento da psicoterapia institucional foi tamanha que Jean Oury conta que nas noites em que ocorria seu seminário, todos os psicoterapeutas e monitores da Clínica La Borde, famoso estabelecimento de referência à Reforma Psiquiátrica, dirigiam-se para estudar com Lacan (Dosse, 2010). Curiosamente, por mais que Guattari tenha sido um dos mentores de La Borde, a influência de Lacan na psicoterapia institucional francesa foi muito maior do que a da Esquizoanálise. Mas no que tange à psicanálise de grupos, o que constatamos é que não apenas Deleuze e Guattari ignoram os trabalhos de conterrâneos e contemporâneos como D. Anzieu e R. Käes, como estes também ignoram a obra esquizoanalítica em seus escritos. O intercâmbio que ocorre posteriormente é efetuado por alguns psicanalistas de grupo na Argentina, principalmente os ligados ao grupo Plataforma (Langer, 1973; Rodrigues, 2007), que passam a trabalhar com a Esquizoanálise a partir da década de 1970, resultando, entre outras criações, o Esquizodrama (Baremblitt, 2002) e a multiplicação dramática (Kesselman & Pavlovsky, 1991).

Encontramos apenas dois momentos em que Deleuze e Guattari, isoladamente, remetem-se à questão do grupo, anteriormente à publicação do seu primeiro trabalho conjunto. O primeiro, mais extenso, com Guattari, na década de 1960, quando propôs duas considerações sobre o grupo: que o fantasma não é individual e sim de grupo e a formulação posteriormente abandonada do grupo sujeito e grupo sujeitado (Guattari, 2004; Vidal, 1986), que grosso modo consideramos semelhante, respectivamente, ao momento mitopoético e ideológico do Aparelho Psíquico Grupal de R. Kaës (1977). Já Deleuze2, em aula de 25/01/72, Na Universidade de Vincennes, discute rapidamente os perigos da psicoterapia de grupo, em que o grupo pode se tornar: uma formação edipianizada, com uma espécie de um super-ego de grupo; um grupo perverso; ou produzir uma "reconstitución de una esquizofrenia llamada catatónica y de una estructura asilar alrededor de los catatónicos en el grupo" (Deleuze, 2005, p.151), sem aprofundar muito nessas questões.

 

Por uma teoria dos dispositivos

A discussão acerca do dispositivo na Esquizoanálise não está diretamente ligada ao grupo, no entanto consideramos que é uma das grandes contribuições realizadas por Deleuze e Guattari para pensarmos os efeitos e distintas facetas do dispositivo de grupo. Por isso que recapitularemos tal debate. Para Deleuze (1989) o dispositivo é um agenciamento, uma máquina, que tem como objetivo efetuar, agenciar, articular, dispor processos de diversas procedências e de diferentes naturezas, os quais podem ser elementos de séries tanto homogêneas, como heterogêneas. O dispositivo agencia três tipos de linhas: de saber, poder e subjetivação. Portanto, nele ocorrem processos de produção, reprodução e consumo ligados a relações de saber, poder e processos de subjetivação (Deleuze, 1989), ou seja, é uma máquina de produção de subjetivação, atravessada por linhas de saber e poder. O dispositivo pode ser entendido como uma máquina de produção de discursos e de ações-relações, em que se faz "falar" e se faz "ver", produzindo enunciações, visibilidades distintas, acontecimentos e modos de ser.

Deleuze e Guattari (1995) propõem a existência de dois eixos no agenciamento/dispositivo: o horizontal e o vertical. Cada eixo possui duas partes, totalizando assim quatro polaridades. O eixo horizontal comporta dois segmentos distintos, um relacionado ao conteúdo e o outro à expressão; um agenciamento maquínico corporal, que é relativo ao agenciamento de corpos, de afecções e do espaço e um agenciamento coletivo de enunciação, relativo aos processos de expressão e enunciação, que sempre são coletivos. O primeiro é relativo a um sistema pragmático de ações, afecções e distribuições espaciais e o segundo é relativo a um sistema semiótico de regime de signos e produção discursiva. No eixo vertical, o agenciamento tem em uma parte lados territoriais, que o estabiliza, territorializa-o, fixa-o, e na outra, picos de desterritorialização, que o arrebata, que o desterritorializa. Num pólo há a predominância de processos de consolidação e fixação, enquanto no outro de processos de transmutação e de criação. Ou seja, o dispositivo é uma máquina que realiza operações de disposições corporais e de produção de enunciados, em que tem uma polaridade que lhe provê uma constância, um enquadramento e outra que lhe provê um potencial de fluidez, de escape, de produção de linhas de fuga, possuindo assim uma tetravalência: conteúdo e expressão (eixo horizontal) e territorialidade e desterritorialização (eixo vertical). Os enunciados, discursos, afetos e intensidades são resultantes dos processos de operação desta maquinaria concreta, conectada à atualização de uma máquina abstrata, virtual, que responde por uma lógica magmática, rizomática. Abaixo, figura 1, criamos uma sistematização para figurar a tetravalência do dispositivo:

 

O agenciamento maquínico de corpos no eixo horizontal do dispositivo pode ser pensado a partir de alguns exemplos: no dispositivo psicanalítico do sofá-divã, coloca-se o paciente de costas ao analista e deitado sobre um divã; na psicoterapia de grupo, os integrantes são dispostos sentados em círculo, em que há uma relação face-a-face, a qual rompe a disposição princeps da psicanálise clássica; no dispositivo psicodramático os integrantes são colocados em cena para atuar conjuntamente numa situação de constante movimento, etc. Cada disposição espacial distinta é pensada no âmbito da teoria dos dispositivos como forma de mobilizar determinados efeitos e processos. Na psicanálise Freud criou tal agenciamento com o fim de diminuir a carga transferencial da paciente histérica dirigida ao analista (KAËS, 1997). Na psicoterapia de grupo pode-se pensar que a relação face-a-face contribui para as situações de espelho, para o trabalho com situações de experiência borderline, para incitar a cadeia associativa grupal, etc. Paralelo ao agenciamento espacial dos corpos há também o agenciamento coletivo de enunciação, da produção e elaboração discursiva, que no caso da psicanálise há a consigna da associação livre, de associar em palavras tudo que vem à mente, ou no dispositivo do grupo operativo de Pichon-Rivière (1986), tal produção de enunciação é norteada por uma tarefa (consignada pelo coordenador). No eixo vertical, o dispositivo tem um enquadramento, que proporciona a territorialidade, a base e estabilidade necessária para que ocorra o processo, as características fixas e constantes do dispositivo. Mas também possui o que é chamado de picos de desterritorialização, que se referem ao fomento de processos de produção da diferença, do novo e de expressão das intensidades a-significantes. Podemos referir-nos a esse processo como a produção de linhas de fuga, de manifestações do inconsciente, de experimentação estética e de criação, ou até mesmo de processos de associação.

Portanto o dispositivo é uma máquina que proporciona a operação do trabalho psíquico grupal (Fernandes, 2003) ao agenciar discursos, afetos e produzir subjetividades. Dependendo da forma como é agenciado e manejado irá mobilizar distintos aspectos e ter diferentes efeitos, por exemplo, o psicodrama psicanalítico de grupo (Kaës, 2003) é um dispositivo que porta um agenciamento, tanto maquínico-corporal como coletivo de enunciação, bastante distinto do agenciamento do grupo operativo pichoniano, o que potencialmente resulta na mobilização e produção de outros processos e efeitos. Ou seja, o debate não é qual dispositivo grupal é melhor, mas sim compreender o que cada tipo de dispositivo agencia e mobiliza e que discursos, afetos e intensidades são atualizados no trabalho psíquico intersubjetivo.

 

Esquizodrama: a arte de criar dispositivos

Gregório Baremblitt é um psiquiatra de origem argentina e que está radicado em Belo Horizonte, Brasil. Participou da Associação Psicanalítica Argentina – APA, tendo sido aluno de E. Pichon-Rivière e colega de J. Bleger. Com a intensidade política das décadas de 1960 e 1970 compôs um grupo dentro da APA denominado de Plataforma, que buscava articular a psicanálise a outros campos de conhecimento e temas políticos vividos na época, como por exemplo, a violência de Estado. Devido a problemas políticos com a APA, o Plataforma cindiu-se da Associação e assumiu ainda mais um caráter interdisciplinar, trabalhando com referências marxistas e da Socioanálise. Para fugir da ditadura argentina, Baremblitt migrou para o Brasil, criando com outros companheiros o Ibrapsi – Instituto brasileiro de psicanálise, grupos e instituições, que trabalhava com referências da Análise institucional, reforma psiquiátrica e Esquizoanálise. A partir de sua experiência clínico-política e intensa bricolagem teórica, criou no Brasil o que chama de Esquizodrama.

Deleuze e Guattari (1992) afirmam que a Filosofia é a arte de criar conceitos. A partir dessa ideia Baremblitt (2002) afirma que o Esquizodrama é a arte de criar múltiplos dispositivos de intervenção, tanto clínicos como sociais. O Esquizodrama funciona como um conjunto de estratégias, táticas e técnicas que busca atuar sobre os aspectos subjetivos, sociais, semióticos e tecnológicos de seus dispositivos para proporcionar experiências de desterritorialização dos agenciamentos instituídos. Os processos de desterritorialização têm a finalidade de dar circulação e trânsito aos fluxos (psíquicos, corporais, grupais) codificados e fomentar os processos de criação e estéticos, efetuando assim acontecimentos, novos regimes de signos e processos de singularização.

Para o seu inventor, um dos objetivos do esquizodrama é o protagonismo de seus destinatários, de seus participantes, para que nesses processos de afetação, de afetar e ser afetados, sejam intensificados os agenciamentos e encontros. Busca um processo de desterritorialização das identidades e papéis sociais estratificados, para que as singularidades possam se conectar e atuar como coletividade, conectando o desejo ao social e o social aos processos desejantes. Baremblitt (2002) objetiva potencializar os participantes e os atos dionisíacos e criadores do pensamento e dos afetos. Por isso que opera mais no paradigma ético-estético-político ao invés do paradigma científico. O autor entende esse paradigma como dramático, no sentido de dramatizar uma arte, a vida e conceitos filosóficos criados pela Esquizoanálise.

Baremblitt cria diferentes dispositivos de intervenção que utilizam não apenas recursos verbais, mas também recursos corporais e artísticos. Dependendo do dispositivo traz referências da esquizoanálise, da psicanálise, do psicodrama, da bioenergética e até de rituais de umbanda, como os derivados da experiência de G. Lapassade no Brasil e em países da África, em que o socioanalista francês criou a Transeanálise (Lapassade, 1980), ao replicar experiências de transe na clínica. Portanto, há distintos agenciamentos maquínico-corporais nos diferentes dispositivos, em que pode haver a situação face-a-face grupal, ou da performance psicodramática dos atores em cena, ou até de uma dança com tambores tribais, que aparentemente pode parecer ser uma experiência caótica. Baremblitt (2002) nomeia os diferentes dispositivos de klínicas. Prefere falar em klínica, ao invés de clínica, como referência à palavra grega klinâmen, que significa desvio. Então os dispositivos do Esquizodrama pretendem efetuar processos de produção de desvio e da diferença, ou seja, processos de transformação. Dessa forma, compreende suas klínicas, como de "passagem" e de "encruzilhadas". Nomeia cinco tipos: a) A klínica da produção, reprodução e anti-produção; b) A klínica do Caos, Cosmos, Caosmos; c) A klínica da diferença-repetição; d) A klínica do acontecimento-devir e; e) A klínica da Multiplicação dramática. Com exceção da última, todas têm referência a conceitos de Deleuze e Guattari. Estas klínicas têm como objetivo detectar as resistências e bloqueios que o coletivo pode enfrentar para fomentar processos de intensificação dos fluxos desejantes com o intuito de levar à produção, à criação e à afirmação do desejo. Baremblitt (2002), tal como Pichon-Rivière (1986) com seu grupo operativo, entende que se pode fazer Esquizodrama em diferentes campos, como na psicoterapia, na política, na publicidade, nas artes, na saúde mental, na educação, na assistência social, etc. Conclui que o esquizodrama não se ensina e nem se transmite oralmente, mas sim se dramatiza e se "contagia" no seu fazer.

Deste modo compreendemos que o Esquizodrama é um conjunto amplo de dispositivos que tem como função incitar um trabalho psíquico que tem como fim os processos de transformação e de subjetivação. Há o projeto de afirmação da potência desejante dos sujeitos e coletivos, com a finalidade da produção do que denomina "energias dionisíacas". Para tanto dispõe de inúmeros dispositivos que têm enquadramentos móveis e consignas variadas. Ressaltamos que na literatura investigada não encontramos uma sistematização de como cada dispositivo funciona. Consideramos que isso se dá devido ao interesse de que não haja uma fetichização e autonomização de cada dispositivo enquanto técnica, em que passe a ser apenas reproduzido, sem que se conheça suas distintas variáveis e teorização. E também pelo fato de que há uma imprevisibilidade de quais processos serão emergentes a partir da experimentação com determinado dispositivo esquizodramático. Consideramos também, que tal como na análise institucional, os princípios caros ao Esquizodrama são os de promover processos de auto-análise e auto-gestão (Baremblitt, 1986).

 

Considerações finais

Neste ensaio buscamos problematizar a relação Esquizoanálise e grupo, buscando elementos na teoria que possam contribuir para a intervenção com grupos. Consideramos que a principal contribuição na obra de Deleuze e Guattari para o trabalho com os grupos é a teorização acerca do dispositivo, em que se compreende que o dispositivo agencia processos de saber, poder e subjetivação e possui uma tetravalência. No eixo horizontal, de um lado, o agenciamento de corpos e afetos, e do outro, os agenciamentos coletivos de enunciação, discursivos. Já no eixo vertical, os lados territoriais, que provêm enquadramento, continência e base ao processo e os picos de desterritorialização, que se referem aos processos de produção de linhas de fuga, da diferença e de transformação, fomentando assim manifestações do inconsciente. Entendemos que conhecer o funcionamento da tetravalência de cada dispositivo de intervenção nos possibilita uma maior compreensão e manejo de seus efeitos, seja o sofá-divã, o grupo operativo, dispositivos dramáticos, ou mesmo o dispositivo de uma aula expositiva.

Como invenção sul-americana o Esquizodrama aparece como a concretização da articulação da teoria esquizoanalítica com as práticas grupais. Baremblitt criou um campo em que conseguiu transformar os conceitos filosóficos da Esquizoanálise em dispositivos de intervenção. E seguindo fielmente os preceitos da Filosofia da diferença, das multiplicidades e do nomadismo, tal como a Esquizoanálise é compreendida, o Esquizodrama não se delimita como campo delimitado e discriminado de técnicas com suas consignas e enquadre fixos e demarcados; apresenta-se muito mais como variação contínua e convite à inventividade de novos dispositivos e práticas. Caracteriza-se mais como experimentação do que aplicação, mais como um fazer que se inventa e instituinte, do que um saber pressuposto e dado. No que tange à tetravalência do dispositivo, o Esquizodrama parece valorizar mais a valência referente aos picos de desterritorialização, pois busca fomentar processos de subjetivação e novas associações, com o intuito de atualizar a potência desejante dos sujeitos e coletivos. Concluímos que é uma proposta de intervenção bastante interessante para as práticas grupais, em que seus dispositivos teóricos e técnicos fomentam processos de desterritorialização e subjetivação, mas consideramos que é importante a produção de mais pesquisas desse novo campo, para que se possa analisar com maior rigor os seus efeitos.

 

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Endereço para correspondência

Domenico Uhng Hur
F: (62) 8102-5602, e-mail: domenicohur@hotmail.com
FACULDADE DE EDUCAÇÃO – UFG - Rua 235, sn - Setor Universitário - Goiânia - Goiás -
Brasil CEP: 74605-050

 

Recebido em 05/05/2012
Aceito em 20/06/2012

 

 

1 Prof. Adjunto II do curso de Psicologia da Universidade Federal de Goiás. Psicólogo, mestre e doutor em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da USP, com estágio doutoral na Universitat Autònoma de Barcelona/Catalunya. Membro do CRISE – núcleo de estudos e pesquisas Crítica, Insurgência, Subjetividade e Emancipação.
2 Deleuze também escreveu um texto intitulado "Três problemas de grupos", prefácio à obra "Psicanálise e Transversalidade" de Guattari (2004), em que apenas problematiza as considerações de seu companheiro, não trazendo novos elementos de análise do grupo.