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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.9 no.2 São Paulo jul. 2012

 

ARTIGOS

 

Globalização e conflitos de identidade

 

 

César Vieira Dinis

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor discute as relações entre os países de diferentes condições econômicas, a formação e manutenção da União Européia, tendo como referência o fenômeno da globalização. Utiliza como ilustração os impactos nas áreas da Saúde, Educação e Segurança Social que vem sendo percebidos em Portugal, seu país natal. Enriquece suas discussões com os conceitos de matriz fundadora e dinâmica, de Foulkes e do vínculo transpessoal, de Zimerman, para compreender o que fundou e tem mantido o sonho dos pioneiros da unidade europeia e o que ameaça a sua destruição, pela possibilidade de fragmentação e de saídas bélicas para os conflitos. Finaliza explorando a questão de que quanto mais exígua for a matriz fundadora em que cada um se reconhecer, mais o sentimento de pertença e a vertente social se tornarão restritos, o que terá impactos significativos no que se refere aos processos humanitários.

Palavras-chave: Globalização; Matriz fundadora e dinâmica; vínculos transpessoais.


ABSTRACT

The author discusses the relationship between countries of different economic conditions and the constitution and maintenance of the European Union and has, as a reference, the globalization phenomenon. He uses as an example the impacts in Health, Education and Social Security that is being perceived in Portugal, his native country. He enriches his discussions with the Foulkes concepts of foundation matrix and dynamic matrix, as well Zimerman’s transpersonal linking, to understand what founded and has kept the dream of the pioneers of European unity and what may lead to its destruction, the possibility of fragmentation and warlike conflicts. Concludes by exploring the idea that the more decreased is the foundational matrix in which each one recognises oneself, the more the sense of belonging and social aspects will become restricted, which will have significant impacts regarding humanitarian cases.

Keywords: Globalization; foundation Matrix and dynamic Matrix; transpersonal linkings.


RESUMEN

El autor analiza la relación entre los países de diferentes condiciones económicas y la constitución y el mantenimiento de la Unión Europea y tiene como referencia el fenómeno de la globalización. Utiliza como ejemplo los impactos en la salud, educación y seguridad social que se perciben en Portugal, su país natal. Él enriquece sus conversaciones con los conceptos de Foulkes de matriz de fundación y matriz dinámica, y también de vínculos transpersonales de Zimerman, para entender lo que fundó y ha mantenido el sueño de los pioneros de la unidad europea y lo que puede conducir a su destrucción, la posibilidad de fragmentación y los conflictos. Concluye mediante la exploración de la idea de que cuanto más se redujo la matriz fundacional en el que cada uno reconoce a sí mismo, más es el sentido de pertenencia y los aspectos sociales se convertirán restringidos, lo que tendrá un impacto significativo sobre los casos humanitarios.

Palabras clave: Globalización; Matriz de fundación y matriz dinámica; vínculos transpersonales


 

 

O que possibilitou o fenômeno da globalização?

A acessibilidade da informação e a velocidade da sua divulgação tornada possível pelas novas tecnologias?

A facilitação das trocas comerciais devido às reformas que no seio da Organização Mundial do Comércio conduziram a importantes derrogações de mecanismos protecionistas aduaneiros?

O significativo aumento da liberdade de circulação do capital financeiro, tornando praticamente qualquer local do planeta como um possível alvo de investimento?

Todos terão sido relevantes, mas desafortunadamente ao imbricarem-se de um modo desregulado poderão ter arriscado transformar uma quase utopia de equilibrada convivência global numa ameaça disruptiva de idêntica dimensão.

Ponho a hipótese que tal se terá, sobretudo, ficado a dever ao papel preponderante que assumiu, no processo, uma ideologia ligada a um modelo de desenvolvimento já em vias de se esgotar. Uma das consequências dessa vicissitude foi que se confundiu o econômico com o financeiro, retirando-lhe a dimensão humanista que Adam Smith lhe atribuira.

Reparemos, por exemplo, que quando uma empresa do então primeiro mundo, deslocalizava para a China, fazia-o e fá-lo na expectativa de reduzir drasticamente os custos de produção e enviar o excedente do produto não absorvido localmente para o tal mundo rico, beneficiando da debilidade dos mecanismos protecionistas. Acontece que, pelo entretanto, a deslocalização provocou desemprego, o desemprego pobreza e a pobreza conduz à progressiva depreciação do consumo. Dir-se-á que a deslocalização contribuirá para que uma economia e logo um mercado emergente floresçam e que a sua dimensão os transformará numa inesgotável fonte de consumo e que para sobreviver, o resto do mundo terá de se tornar exacerbadamente competitivo. Esquece-se – ou talvez não – que no que respeita a direitos, liberdades e garantias, o nivelamento terá de ser feito inexoravelmente por baixo. O que disse não é futurologia, já está a consumar-se. Refiro-me, claro, ao fato da maior conquista civilizacional da Europa na época contemporânea, construída no século passado, o chamado estado social europeu, estar em progressiva desagregação.

Poderia o processo ter seguido um percurso tentativamente construtivo? Tenho a convicção que sim, se os decisores políticos tivessem tido autonomia, lucidez e coragem suficientes. Voltemos à progressiva adulteração do econômico em financeiro: a economia assenta na produção que por via do trabalho gera valor acrescentado. A redistribuição da riqueza criada é uma questão que deixarei em aberto, pois o que me interessa, no momento, é abordar-lhe o destino. Se essa riqueza for investida na produção, a economia, melhor ou pior, vai funcionando. Se, pelo contrário, for usada na especulação, bolsista, de moeda ou outra e aí se confinar, poderá multiplicar-se como na parábola bíblica dos pães, mas contrariamente a esta não produzirá uma migalha. Acontece que hoje em dia, os ativos financeiros são esmagadoramente mais altos que a soma de todos os PIBS (Programa "Prós e Contras" na TV1 em 23/04/2012).

Temos pois que, por um lado, a deslocalização conduziu e está a conduzir à desindustrialização maciça do quase pretérito primeiro mundo. Assim, já em 2005, 60% das exportações chinesas ficavam a dever-se a empresas americanas deslocalizadas (Medina Carreira na TV4 no programa "Olhos no Olhos" em 02/07/2012. Por outro lado, simultaneamente, os direitos, liberdades e garantias duramente conquistados a partir da revolução industrial e que atingiram o seu acme com a construção, depois da 2ª guerra mundial, do chamado "estado social europeu" vão sendo desastrosamente derrogados em nome de uma pretensa competitividade. Argumenta-se que há que distinguir entre direitos fundamentais e direitos adquiridos e que os últimos serão efêmeros, voláteis mesmo, dependendo pragmaticamente da conjuntura. Curiosamente ninguém dos que assim pensa, especifica o que entende por direitos fundamentais e esquece-se que todos os direitos conquistados pela pessoa humana, foram custosamente adquiridos, a começar pelo direito à vida. O poder, melhor, quem o detém nunca concede um benefício a menos que a tal seja obrigado.

Para ilustrar o que disse em relação ao declínio dos direitos, vou naturalmente socorrer-me do contexto que melhor conheço, ou seja, o de Portugal, evocando três áreas fundamentais:

a) Saúde
b) Educação
c) Pensões de aposentação.

a) Saúde:

A constituição elaborada a seguir à revolução de 25 de Abril de 1974 consagrou um Serviço Nacional de Saúde universal e gratuito. Posteriormente, em sede de revisão constitucional, ocorreu uma alteração sutil que o crismou de tendencialmente gratuito. Naturalmente que o qualificativo tendencial não é susceptível de impor limites rígidos, abrindo uma porta que ninguém saberá como se fecha. A consequência foi que o Serviço Nacional de Saúde português que chegou a ser considerado exemplar em função dos níveis atingidos pelos indicadores de saúde pública, tem sofrido uma progressiva deterioração que ninguém arrisca profetizar até onde irá, enquanto que florescem os hospitais privados em que a admissão do paciente só se efetiva se caucionada por um depósito prévio de valor significativo. Em resumo, aquilo que no Orçamento Geral do Estado se considerou como um pesadelo gerador de deficit, tornou-se num negócio apetecível para o capital privado. Naturalmente que tal metamorfose só é possível com o ónus de terríveis efeitos colaterais.

b) Educação:

O chamado processo de Bolonha que foi uma curiosa invenção à escala da União Europeia, transformou as licenciaturas de cinco ou mais anos em mestrados de cinco anos, em que os "currículos" dos anteriores cinco anos foram aligeirados em três, sendo os remanescentes dois anos dedicados a investir os alunos, quais cavaleiros medievais, no grau de mestre na respectiva área profissional. Acontece que enquanto no anterior modelo, no ensino público, as propinas pagas pelos discentes eram modestas e proporcionais ao rendimento das respectivas famílias, no atual modelo essas vantagens só vigoram nos três primeiros anos. Acresce que o desemprego de jovens atingiu níveis impensáveis até um passado muito recente.

c) Segurança Social:

A atribuição de subsídios de desemprego tem sofrido sucessivos encurtamentos no que respeita ao período da sua vigência, ao mesmo tempo que as taxas de desemprego, nomeadamente o de longa duração, vêm sofrendo um inevitável aumento exponencial. A idade que é necessário atingir para se ter direito ao máximo possível de pensão e o correlativo número de anos de trabalho ativo em que foram feitos os respectivos descontos vêm sendo progressivamente aumentados. Isto poderia fazer sentido, na medida em que no decurso das últimas décadas a esperança média de vida também entre os portugueses aumentou significativamente. O problema é que simultaneamente a pirâmide demográfica se inverteu e Portugal tem neste momento a segunda taxa de natalidade mais baixa do mundo, logo a seguir à Bósnia. Com este estado de coisas, a prazo, será inevitável a falência da Segurança Social. Solução proposta: favorecer as condições de base para que os portugueses voltem a ter filhos?

Não! Propõe-se antes, legislar no sentido de impor um teto para os descontos para a segurança social, independentemente do salário auferido e que a partir desse limite os trabalhadores descontem para fundos privados de pensões. Portanto, quando tal se efetivar, será mais um golpe duro na já moribunda solidariedade social.

Das cinzas da segunda guerra mundial, nasceu um projeto idealista que aspirava a criar condições que evitassem a eclosão de conflitos bélicos numa Europa dilacerada. Assim começou um caminho que a partir da Comunidade do Carvão e do Aço conduziu à atual União Europeia e à implementação da moeda única com a criação do Euro. O problema foi que essa construção foi acontecendo com leviandade, incúria, eventualmente com dolo. Usando como metáfora a construção de um edifício, seria como se no respectivo projeto não fossem tidos em conta os alicerces, a viabilidade das estruturas, a resistência dos materiais.

Para além da inexistência de uma política de negócios estrangeiros e de defesa consensualmente unitária, não foi aparentemente considerado que políticas econômica e monetária comuns implicariam uma coesão fiscal e de finanças públicas. Claro que tal conduziria necessariamente a perdas significativas nas soberanias nacionais. Mas foi, afinal, o que aconteceu por via da moeda única que privou os países em caso de necessidade de recorrerem, por exemplo, à desvalorização da sua moeda.

Uma avalanche de regulamentos, diretivas, leis comunitárias condicionaram de tal modo o setor primário de produção que conduziram na prática à destruição da agricultura e das pescas em Portugal. E tudo isto se passou, enquanto entusiasticamente o mesmo Portugal se saturou de uma pletórica rede viária, sendo cruzado por magníficas auto-estradas, hoje, em muitos casos, desoladoramente desertas de circulação automóvel.

Muitos erros foram cometidos: à escala transnacional ou global, à regional com ênfase para a Comunidade Econômica Europeia, hoje União Europeia, à escala nacional e como corolário à escala individual. Curiosamente, em Portugal, é esta última que constantemente é estigmatizada: «as famílias portuguesas consumiram demais, endividaram-se em excesso, etc.». Omite-se que o acesso ao crédito foi calorosamente estimulado, oferecido, quase imposto pela banca com o beneplácito dos decisores políticos. É óbvio que as pessoas, geralmente ignorantes, dos sutis mistérios econômico-financeiros, aderiram ao wishful thinking e acreditaram que o Pai Natal1 existia. Também curiosamente, os países economicamente mais poderosos no contexto europeu que beneficiaram da onda consumista nos países hoje crismados de periféricos, inundando-os entusiasticamente com os bens que produziam, agora lançam-lhes o anátema de perdulários, preguiçosos e trapaceiros povos do sul. Valerá a pena dizer que simultaneamente ao delírio consumista em Portugal e com o incentivo de diretrizes da política econômica europeia, a agricultura, a pesca e a indústria Portuguesas foram sendo progressivamente destruídas. Só para dar um exemplo, concederam-se subsídios europeus para que se arrancassem vinhas e oliveiras e se destruísse a frota pesqueira tradicional. Hoje, clama-se que o azeite e o vinho são fundamentais para a exportação e que o extenso mar português é uma riqueza potencial. Claro que tudo se passou com o aval mais que aquiescente dos portugueses, ou melhor dos portugueses que tinham o poder de decidir por todos os outros.

Face a este estado de coisas, a crise do sub-prime foi o abanão que fez tremer a fruste estrutura europeia, deixando-a em risco de ruir e como que por efeito dominó a crise das dívidas soberanas alastrou, tornando-se um pesadelo. O Euro ficou em risco, mas a crise econômica ameaça alastrar para além da zona da moeda única a toda a União Europeia e não só.

Nesta conjuntura ameaçadora, e para tentar que toda a floresta não ardesse vieram os bombeiros, isto é, o FMI, o BCE e a União Europeia mobilizando meios de combate ao fogo supostamente drásticos que foram os Planos de Resgate e as inerentes Políticas de Austeridade. O problema é que quadrar o círculo foi até hoje tarefa impossível, isto é, fazer crescer a economia com cortes nos salários e nas aposentações, com encerramento de unidades fabris, com aumentos de impostos, não tem funcionado. Pelo contrário, o consumo interno desceu dramaticamente, as receitas do Estado, apesar do aumento da carga fiscal, baixaram, o desemprego aumentou para níveis inimagináveis ainda ontem, etc, etc, etc. Os planos de resgate e as inerentes políticas de austeridade são como que um modelo teórico de fundamentação mais ou menos misteriosa que está a ser testado em laboratório. Acontece que o laboratório são os países com finanças públicas em estado crítico e os empréstimos concedidos para os salvar da possível bancarrota, além de proporcionarem juros muito atraentes, são condicionados por draconianas medidas de austeridade imposta pelos emprestadores que conduzem à recessão econômica com o desolador cortejo de falências quer das empresas, quer das famílias, desemprego, empobrecimento. Os países vêem a sua soberania drasticamente amputada, alienando a favor de entidades exteriores, competências em matéria de decisão de políticas fundamentais e sem qualquer das contrapartidas favoráveis que um estado federal proporcionaria. Os cidadãos, isto é, as pessoas empobrecem e sofrem à medida que os seus anteriores direitos, garantias e liberdades se vão paulatinamente volatilizando.

Talvez que o pior de tudo isto seja o fato de, até agora, a tal experiência de laboratório não deixar ver luz ao fundo do túnel, ameaçando ser um flop. Um exemplo ilustrará o que tenho estado a dizer: A Letônia assinou em Dezembro de 2008 um protocolo de resgate com o FMI e a União Europeia. Em troca de um crédito de 7,5 mil milhões de euros foi implementado um plano de austeridade. Como consequência em dois anos o PIB caiu 23%, os salários baixaram entre 25 a 30 %, o desemprego aumentou de 5 para 20%, quatro em cada dez famílias ficaram em situação de pobreza e 30% de todos os Letões com menos de 30 anos emigraram, tornaram a Letónia um país sem futuro demográfico. Recentemente, Christine Lagarde, a atual directora do FMI foi a Riga festejar a alegada vitória do tratamento de sharp shock começado há 3 anos, a Letônia, espera-se, terá este ano um crescimento de 6% do seu PIB. Bom, desceu 23% em dois anos, como tal ainda terá de subir 17% para atingir o nível de 2009. O futuro dirá!

O mais significativo será, porventura, o entusiasmo da Directora do FMI que proclamou em Riga: «vocês indicaram o caminho à zona euro…».

Estranhamente na comunicação social de grande divulgação não se falou da Letônia nem do que lá se passou durante este últimos 3 anos. Talvez por ser um pequeno e pobre país do Báltico, pós-soviético, de 2 milhões de habitantes.

Mas eis que o impensável acontece: um país nórdico, sólido nas suas finanças públicas e um exemplo de pujança econômica, a Finlândia, sofre um duro golpe ao confrontar-se com o colapso da sua jóia da coroa, a Nokia, esmagada pela concorrência, sobretudo da sul coreana Samsung e atual líder do mercado nos smartphones. Em 2007, a Nokia gerou 3,2% do PIB do país. Agora vai suprimir dez mil postos de trabalho na Europa, 3700 dos quais na Finlândia. A até agora próspera cidade de Salo, onde a Nokia encerrou a sua pioneira e principal fábrica, está ameaçada de desertificação com as pessoas a abandonarem-na em massa. Enquanto o governo finlandês tenta implementar planos de novas atividades que compensem o desastre Nokia, o relatório do Eurostadt revelou em princípios de Setembro que a economia finlandesa, no contexto europeu, e relativamente ao 1º semestre de 2012 foi a que mais desceu, logo a seguir à portuguesa.

Finalmente no dia 6 de Setembro deste ano (2012), Mário Dragui, o Presidente do Banco Central Europeu, anunciou aquilo por que há muito o grosso dos países europeus clamava, a decisão do BCE comprar, mediante rigorosas exigências, títulos de dívida soberana dos países em dificuldade (Espanha, Itália, Portugal, Irlanda, Grécia, Chipre) com vista a aliviar a pressão insustentável que a nebulosa entidade designada por «mercados» vinha exercendo sobre eles, impondo juros incomportáveis na compra dos títulos de dívida, impedindo-os de se financiarem.

Para tal acontecer foi preciso que a severa intolerância luterana e calvinista da Alemanha e outros como a Finlândia para com os pecadores do Sul, fosse, enfim, suavizada.

O futuro da União Europeia continua a ser uma angustiante interrogação. Ironicamente a moeda única, o Euro, continua por enquanto, a ser o mais sólido esteio para a sua possível sobrevivência. Ninguém com credibilidade poderá prefigurar as consequências que o seu desaparecimento acarretaria não só para a Europa mas para o mundo global, quais as peças de dominó que cairiam e quais conseguiriam escapar.

De certo modo vive-se um novo «equilíbrio de terror», protagonizado pelo destino de uma moeda, por agora.

Recorro ao importante artigo de Scholz (2012) sobre a «Foundation Matrix» para tecer algumas considerações relativas ao que tenho estado a dizer: Regine Scholz evoca Norbert Elias quando ele escreveu que «a sociedade é formada por indivíduos, mas o nível social tem características próprias que não são redutíveis aos indivíduos».

Possivelmente influenciado pelo pensamento de Elias, Foulkes (1968) considerou a noção de matriz em dois níveis: a «matriz fundadora» e a «matriz dinâmica». Esta seria a que se vai construindo e desenvolvendo num grupo grupanalítico devido às íntimas relações que se vão estabelecendo entre os seus membros. A primeira diria respeito a todo e qualquer tipo de grupo, aceitando que mesmo um grupo de indivíduos totalmente desconhecidos entre si, mas pertencendo à mesma espécie e mais particularmente à mesma cultura partilhariam uma matriz mental fundamental que designou por «matriz fundadora». Mais tarde acrescentou-lhe outros elementos como imagens corporais, a língua, a educação, a classe social e escreveu: «O que tradicionalmente considerávamos como o mais íntimo do nosso self, intra psíquico por oposição ao mundo exterior, é assim não só partilhável, mas é, de facto, já partilhado» (FOULKES, 1968)

Regine Scholz (2012), continuando a sua exploração do conceito de «matriz fundadora» refere que, hoje em dia, sabemos que as expressões (fisionómicas e posturais) de afetos básicos como medo, raiva, repulsa, tristeza, surpresa, interesse, felicidade são inatas e podem ser comunicadas e compreendidas muito precocemente na vida e por todos os humanos. Continua dizendo que se pressuporá uma herança filogenética das expressões dos afectos relacionada com as nossas capacidade e necessidade básicas de nos relacionarmos. Conclui que, desde os primórdios, a nossa biologia estará direccionada para a sociabilização (op. Cit.). Poder-se-ia continuar argumentando com a descoberta dos Neurônios Espelho comuns a todos os primatas e na área do precocemente adquirido, referir os achados de Boston Study Group de Stern (1998) respeitantes às estratégias relacionais adquiridas pelo bebê na sua interação com a mãe, ainda antes do 1º ano de vida.

Em muitos aspectos nucleares, penso que o plano transpessoal da vincularidade e o conceito de matriz fundadora são coincidentes. A este respeito, Fernandes (2003), evocando David Zimerman, refere que o transpessoal se refere ao modo como os indivíduos e grupos se vinculam com normas, leis, e valores e com a especificidade dos papéis e funções que desempenham no contexto social, político e cultural em que estão inseridos. Acrescenta as fantasias inconscientes compartilhadas, abrangendo mitos, lendas, contos de fadas, narrativas folclóricas, etc.

O plano transpessoal ou transubjetivo significará uma trama vincular de amplitude variável conforme os aspectos considerados. No que respeita aos biológicos inatos e aos muito precocemente adquiridos atingirá a sua maior dimensão, abrangendo todos os humanos. Para outros, conotados com o conceito de padrões culturais de Ruth Benedict a dimensão do grupo que deles comunga será maior ou menor conforme a variável considerada. Assim será diferente se considerarmos, por exemplo, a especificidade dita civilizacional, religiosa, étnica, histórica, tradicional, política, regional, bairrista que a enformou ao longo dos tempos.

O vetor que estrutura o sentimento de pertença é de dimensão muito variável, conforme o vértice considerado. Penso que a pessoa humana reage ao estranho com um misto de curiosidade e receio, muitas vezes prevalecendo a desconfiança e a hostilidade como se o diferente configurasse uma ameaça potencial. Talvez que o modo de ultrapassar tais sentimentos seja ousar-se conhecê-lo, não com a ilusão de nos tornarmos idênticos, mas para torná-lo conhecido. E poderá acontecer que, então, apesar das diferenças, algumas similitudes se revelem e o convívio se torne aceitável.

Num contexto de ameaça a interesses estabelecidos e assentes num equilíbrio consensualmente aceite, o grupo tende a cerrar fileiras e a eleger fora de si a causa da insegurança que está a viver, é o que em fenomenologia grupal, Foulkes (1998) chamou de «bode expiatório». Se a pressão devida à ameaça continuar a aumentar, os elos mais fracos tendem a quebrar-se ou mesmo a mudarem qualitativamente, fragmentando a coesão anterior.

Assim, numa conjuntura de brusca mudança que abale o equilíbrio até aí vigente, por exemplo, por fazer emergir inesperadas dificuldades econômicas, a anterior aparente coesão social perturba-se e exacerbam-se rivalidades entre culturas, países, classes e grupos sociais, em suma as contradições não ultrapassadas surgem à luz do dia.

A atual crise econômica do até agora chamado primeiro mundo que suponho foi facilitada por uma globalização vertiginosa e, sobretudo, desregulada conduziu à crise da dívida soberana de países no seio da U. E. e esta à ameaça da crise da moeda única, o Euro. Nesta convulsão, os países do sul foram estigmatizados pelos responsáveis políticos, pela comunicação social e consequentemente pela opinião pública dos países mais ricos do norte com destaque para a Alemanha. Os raros apelos à ponderação e à clarividência foram vozes perdidas no deserto.

Provavelmente será uma coincidência, mas a linha de clivagem norte-sul no espaço europeu, mais do que referida aos pontos cardiais, sobrepõe-se à fronteira entre países que na sua matriz cultural integram a herança luterana e calvinista e os que integram a ortodoxa (Grécia) e católica, incluindo a Irlanda que geograficamente não pertence ao Sul. Então e a Inglaterra e a França? Sempre me pareceu que o anglicanismo foi um epifenômeno ligado à condicionante insular e a posição inglesa na U. E. tem sido um pouco excêntrica. Quanto à França, sofre de uma relativa ambiguidade quanto á sua herança religiosa, pois Henrique IV, originariamente huguenote teve de se «converter» ao catolicismo para se tornar rei de França.

O fato é que a crise no seio da U. E. provocou ácidas crispações entre as opiniões públicas alemã e dos países do sul, ressuscitando fantasmas e ressentimentos das duas últimas guerras mundiais.

Comentadores políticos e caricaturistas protagonizaram à saciedade este fenômeno e em muitas caricaturas o bigode hitleriano aposto à chanceler alemã e a suástica apareceram com exuberância.

A matriz fundadora na Europa está fragilizada e ameaça romper, fragmentando-se. Se tal viesse a acontecer o sonho dos pioneiros da unidade europeia, poderia definitivamente não passar de um sonho e a possibilidade de conflito bélico ressurgir.

Se pensarmos mais global, o risco generaliza-se. Os Estados Unidos mantêm a sua posição de primeira economia mundial, mas será até quando? O gigante chinês cresce aceleradamente, mas até quando? A interdependência financeira entre ambos, e menciono só a dívida americana detida pela China, poderá constituir-se em mais um equilíbrio pelo terror? Após a catástrofe da central nuclear de Fukushima, a indústria chinesa de células fotovoltaicas aproveitou a escassez de electricidade que se seguiu para se implantar no mercado nipónico a preços imbatíveis. A indústria chinesa robustecida por este êxito, lançou-se à conquista do mercado americano e como resposta defensiva os Estados Unidos passaram a aplicar direitos alfandegários entre 31 e 250% às células fotovoltaicas chinesas. É uma decisão a rever em Outubro de 2012 mas que já provocou a ira de Pequim que ameaça retaliar, para além de avisar a União Europeia que se guarde de seguir o exemplo americano.

O que poderá acontecer se um ou outro país possuidor de imenso potencial nuclear se sentir à beira do naufrágio económico e a braços com a hecatombe social que tal provocará? Penso que as mudanças bruscas podem ser iludidas, mas não integradas para a evolução viável. Talvez tivesse sido possível minimizar o risco, se a globalização se tivesse processado com a sábia regulação possível e não em roda livre, desregulada. Quero dizer, se a Real Politik tivesse sido mais realista no que respeita às necessidades comuns a toda a criatura humana, preservando os fundamentos da matriz fundadora global.

Concretizando, se a abertura das fronteiras comerciais e a livre circulação do capital financeiro do que se convencionou designar por primeiro mundo, tivesse sido, de algum modo, condicionada à necessariamente gradual e lenta, mas sólida, aquisição de direitos, liberdades e garantias por parte dos cidadãos dos outros mundos, talvez que tudo tivesse sido diferente e mais consentâneo com a segurança global. Pelo contrário, decidiu-se que o processo seria o inverso. O resultado está à vista e, como disse no início, o nivelamento no que respeita à dignidade da pessoa, será feito por baixo. Ainda muito recentemente, um responsável europeu preconizou, em jeito talvez de desabafo, que os gregos passassem a trabalhar 6 dias por semana. Teria talvez em mente que os chineses trabalharão 7?

Só mais um apontamento sobre as condições que minam os estados que se assumem como democracias:

«Na ânsia de seduzir o maior mercado de exportação e não ofender os censores de Pequim, os grandes estúdios de Hollywood zelam por dar uma imagem positiva da China». Citei um artigo do Los Angeles Times. Enfim, a censura chinesa chegou aos Estados Unidos.

Proclama-se aos incrédulos que o Messias Mercado, dotado de mágicas capacidades de auto regeneração tudo resolverá.

Ponho a hipótese que se a ideologia dita neoliberal se constituir como paradigma global de desenvolvimento, pensando em países, a riqueza mudará provavelmente de mãos, mas no interior de cada um deles, a prazo, as tensões sociais devidas a clamorosas assimetrias e à degradação progressiva de liberdades será uma consequência inelutável.

A matriz fundadora em que cada um se reconhecerá será cada vez mais exígua, o sentimento de pertença e a vertente social da identidade confinar-se-ão a um esquife cada vez mais estreito e a noção de humanismo talvez encontre abrigo definitivo nas caves de um museu de ideais.

 

Referências

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FERNANDES, W. J.(2003). O Processo Comunicativo Vincular e a Psicanálise dos Vínculos. In: FERNANDES, W. J.; SVARTAM, B.; FERNANDES, B. S. (Org.). Grupos e Configurações Vinculares. Porto Alegre: Artmed, 2003.         [ Links ]

FOULKES, S. H.. Group Psychotherapy: the psychoanalytic Approach. London: Penguin Books, 1968.         [ Links ]

ROBINSON, A. Laboratório de «resgates». Jornal La Vanguardia, Barcelona, 06 Jul. 2012. In: Courier internacional (edição em lingual portuguesa) n.º 199, Set. 2012        [ Links ]

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STERN, D. et al. Non-interpretative mechanisms in psychoanalytic therapy: the «something more» than interpretation. Int. J. Psychoan., n.79 : 903-921.         [ Links ]

ZEITCHIC S.; LANDRETH J. Os chineses já não são maus. Jornal Los Angeles Times, 12 Jul. 2012. In: Courier International (versão portuguesa) n.º 199, Set. 2012.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência
César Vieira Dinis
E-mail: dinisenetopsi@clix.pt

 

 

1 Papai Noel no Brasil (nota do editor)