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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.10 no.1 São Paulo maio 2013

 

ARTIGOS

 

Desafios de se manter como um casal na contemporaneidade: contribuições da psicanálise sobre a dinâmica conjugal

 

Challenges to keep as a couple in contemporaneity: contributions of psycho-analysis on the marital dynamic

 

Desafíos para permanecer en pareja en el contemporáneos: contribuciones del psicoanálisis sobre la dinámica matrimonial

 

 

Sandra Aparecida Serra Zanetti1; Maíra Bonafé Sei2; João Rafael Pimentel Colavin3

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo abordar, sob o referencial psicanalítico, compreensões sobre dificuldades conjugais e o modo de administrá-las, pensando nas vicissitudes da contemporaneidade. Partimos da ideia de que a atualidade reserva desafios à manutenção de vínculos amorosos, já que contempla condições de existência que oferecem a sensação de insegurança, incerteza quanto ao futuro e de efemeridade em todas as relações. Será abordado o conceito de vínculo, suas especificidades e, dessa forma, demonstrado que para se construir um vínculo satisfatório este precisará se manter sustentado pelo respeito, pela reciprocidade, pela responsabilidade e pelo reconhecimento mútuo. A durabilidade de um vínculo requer o compromisso e a capacidade psíquica da díade de se responsabilizar por suas dificuldades e conflitos, e de aprender a lidar com eles sempre que preciso. É da natureza de um vínculo exigir o trabalho psíquico de pensar suas dificuldades, pois a adversidade é inerente à sua dinâmica.

Palavras-chave: Psicanálise; Dinâmica conjugal; Vínculo.


ABSTRACT

This article aims to address, under the psychoanalytic framework, understandings of marital difficulties and how to manage them, thinking about the vicissitudes of contemporaneity. We start from the idea that the present reserve challenges to the maintenance of loving bonds, since it contemplates conditions of existence that offer the feeling of insecurity, uncertainty about the future and ephemerality in all relationships. It will be discussed the concept of bonding, their specificities and thus demonstrated that to build a satisfactory bond it will be necessary to maintain sustained by respect, reciprocity, responsibility and mutual recognition. The durability of a bond requires commitment and psychic ability of the dyad to take responsibility for their problems and conflicts, and to learn to deal with them whenever necessary. It is the nature of a bond requiring the psychic work of thinking problems, since adversity is inherent to its dynamics.

Keywords: Psychoanalysis; Couple's dynamic; Link.


RESUMEN

En este artículo se pretende abordar en el marco psicoanalítico, conocimientos sobre las dificultades matrimoniales y cómo gestionarlos, pensando en las vicisitudes de la época contemporánea. Partimos de la idea de que los desafíos actuales de mantenimiento de reservas de lazos de amor, mientras contempla las condiciones de existencia que ofrecen la sensación de inseguridad, la incertidumbre sobre el futuro y lo efímero en todas las relaciones. Se discutirá el concepto de vinculación, sus características específicas y por lo tanto mostrado que para construir una vinculación satisfactoria, esta tendrá que mantener sostenida por el respeto, la reciprocidad, la responsabilidad y el reconocimiento mutuo. La durabilidad de un enlace requiere el compromiso y la capacidad psíquica de la díada para asumir la responsabilidad por sus problemas y conflictos, y para aprender a lidiar con ellos cuando sea necesario. Es de la naturaleza de un enlace requerir un trabajo mental de pensar sus dificultades, puesto que la adversidad es inherente a su dinámica.

Palabras clave: Psicoanálisis; Dinámica matrimonial; Vínculo.


 

 

A contemporaneidade abarca uma ampla possibilidade de organização familiar e o estar casado não implica mais em uma união estável e de durabilidade garantida (PAIVA, 2009). As condições de existência contemporâneas trazem uma série de desafios para os casais nos dias de hoje. Os vínculos amorosos construídos são perpassados por uma incerteza sobre sua continuidade, que tem o potencial de interferir nesta dinâmica caso o casal não tenha condições de administrar o modo contemporâneo de se vincular (ZANETTI, 2012).

São diversos os autores (BAUMAN 2004, 2007, 2009; GIDDENS, 2007; LIPOVETSKY, 2004; SENNETT, 2008) que entendem que as mudanças de configurações nos vínculos se depreendem de um cenário sociocultural e econômico marcado pela efemeridade, pelas incertezas e por toda sorte de descompromissos diante do declínio dos valores tradicionais e das instituições que neles estavam apoiadas. Para Bauman (2001), na "modernidade líquida", como denomina a contemporaneidade, os elos que entrelaçavam as escolhas individuais em projetos e ações coletivas se desmancharam, e o compromisso, a honestidade e todo tipo de valor fundamentado na honra e na solidez dos relacionamentos, hoje, são vistos como "armadilhas" que se procura a todo custo evitar.

De acordo com Giddens (2007), tendendo a ser a forma predominante de convívio humano, o "relacionamento puro" é o que se construiu como efeito dos fenômenos socioculturais e econômicos de nossa era. Nesse tipo de relacionamento se entra pelo que se pode ganhar, de acordo com o grau de satisfação que pode obter, pois é "baseado na comunicação emocional, em que as recompensas derivadas de tal comunicação são a principal base para a continuação do relacionamento" (p. 70), e não mais as normas rígidas tradicionais. É essa liberdade em torno de sua construção e a necessidade de estar em permanente construção, que o leva a ser caracterizado como aquele que pode ser rompido por qualquer um dos parceiros, a qualquer tempo (GIDDENS, 2007).


Algumas características específicas fazem o "relacionamento puro" se distanciar do padrão de relacionamento do tipo tradicional: depende de processos de confiança ativa (abertura de si mesmo para o outro), da franqueza, como condição básica para a intimidade, e da democracia (GIDDENS, 2007). Na visão do autor, um bom relacionamento realmente é aquele que se estabelece entre iguais, em que cada parte tem seus direitos e obrigações. É dessa forma que o autor compreende que os relacionamentos na atualidade seguem os valores da política democrática: igualdade de direitos e de responsabilidade; o respeito mútuo; a presença do diálogo aberto como uma propriedade essencial da democracia; e a ausência de poder autoritário. Por isso, considera que, se realmente esses princípios forem aplicados aos relacionamentos, pode-se pensar em uma "democracia das emoções na vida cotidiana" (GIDDENS, 2007, p. 72), e que esse tipo de democracia lhe parece tão importante quanto a democracia pública para o aperfeiçoamento da qualidade de nossas vidas.

Apesar da contribuição inegável da presença dos valores democráticos na organização dos vínculos amorosos hoje em dia, também é preciso reconhecer o lado desta liberdade que aponta para um desafio. Conforme assinala Zanetti (2012), na contemporaneidade os vínculos se encontram mais preenchidos por valores passíveis de serem questionados e requestionados por seus membros, o que se reverte em insegurança. Trata-se de um paradoxo e da complexidade a que estamos expostos hoje em dia, afirma a autora.

Se antigamente os vínculos eram mais estáveis, eram igualmente pouco abertos para o diálogo: os conflitos existiam, mas dificilmente podiam ser questionados/conversados. Atualmente, com o advento do "relacionamento puro" (GIDDENS, 2007), valorizamos a igualdade de direitos e de responsabilidade, o respeito mútuo e a presença do diálogo aberto no vínculo, embora aparentemente as condições de mantê-lo sejam mais frágeis. (ZANETTI, 2012, p. 147).

A autora entende que a instabilidade dos contratos que regem a vida contemporânea afeta a estabilidade dos vínculos, porque interfere na esperança dos parceiros de se manterem sempre unidos, como se pensava antigamente, já que o sentimento de vulnerabilidade narcísica decorrente desta instabilidade interfere na capacidade de mediação dos conflitos e de aceitação das próprias faltas. Ou seja, para a autora, como o vínculo amoroso implica no estabelecimento de um contrato em que há um investimento narcísico, a incerteza quanto ao futuro deste investimento influencia na disponibilidade dos parceiros quanto às tentativas de resolução de conflitos inerentes do vínculo. Diante da ausência de contratos sólidos sustentando a formação dos vínculos, Zanetti (2012) assinala que serão cada vez mais os próprios parceiros os responsáveis pela manutenção do vínculo, porque as condições de vida contemporânea convidam os membros da união para um tipo de pensamento não-linear e bastante complexo, envolvendo riscos altos, o que dificulta a manutenção do contrato.

Rios (2008) salienta o quanto uma relação amorosa duradoura depende, depois de passado o estado de apaixonamento, da disponibilidade psíquica de reconhecer o outro, sua alteridade, e que esse processo pode estar se tornando dificultoso em uma "Cultura Narcísica". A autora observa que a experiência do encontro amoroso se associa a uma subjetividade construída nas bases "de um eu que passou pela fase do narcisismo primário, dele saiu competente para a experiência da alteridade, e que se mantém e se reforça durante a vida em uma cultura que lhe ofereça modelos de sustentação da intersubjetividade" (p. 422). Contudo, a cultura contemporânea, como ressalta a autora, "reproduz conceitos e práticas que não sustentam a alteridade, e constantemente devolvem o sujeito para o miolo de si mesmo quando este procura referências fora de si, na experiência coletiva" (p. 423). Assim, na atualidade, é a possibilidade do encontro intersubjetivo que está em jogo. As pessoas se agrupam para trabalhar, para estudar, para ganhar dinheiro, mas isso não necessariamente se caracteriza como um encontro intersubjetivo, porque em nossa sociedade, como efeito das condições de existência, cada um está mais interessado em falar de si do que ouvir o outro, enfatiza Rios (2008). "Falta disposição interna para escutar, refletir, construir junto um pensamento compartilhado, produto de um encontro" (p. 423). Ela conclui que optar por ficar só é uma saída, quando se percebe que o amor de "boa qualidade", o "amor de verdade" exige tempo e grande disponibilidade:

Amar dá trabalho. E o ganho pode parecer pouco – especialmente quando se vive em um mundo como o nosso, que nos cobra a busca por um fictício estado prazeroso ininterrupto. O ganho, que não está previsto nessa conta que soma êxtases, é aquele que não se percebe de imediato: as transformações do eu na experiência da intersubjetividade. (RIOS, 2008, p. 424).

Para Justo (2005), a condição de aceleração do tempo, de alargamento de espaço e movimentação humana sem precedentes é impeditiva de vinculações psicossociais estáveis e prolongadas, em todos os planos da vida. A era da "instantaneidade", em que tudo funciona 24 horas por dia, propõe uma vida em que não se torna necessário postergar nenhum desejo ou necessidade, afastando o "fantasma da frustração", assinala. "Dentro do referencial psicanalítico, entenderíamos essa condição como de soberania do processo primário sobre o secundário, tal como funciona o bebê ao exigir o pronto atendimento e a satisfação de suas necessidades e desejos" (JUSTO, 2005, pp. 67-68). Entende ainda, baseando-se em Bauman (2004), que o consumismo favorece uma disponibilização psicológica para o descarte, incluindo o de pessoas, moldando uma nova forma de relacionamento pautado pela efemeridade e o imediatismo. Em última instância, "trata-se, portanto, de um mundo que não favorece a aproximação entre as pessoas, a criação de vínculos duradouros, a associatividade e a grupalização" (JUSTO, 2005, p. 70).

Procurando compreender o ciúme presente nas relações amorosas contemporâneas, Baroncelli (2011) salienta que, em função da experiência amorosa se ver marcada atualmente por intensa transitoriedade, flexibilidade e abertura, o ciúme extremo pode se revelar como um resultado possível diante de um grande sofrimento que toda essa instabilidade provoca. As ambiguidades da vida contemporânea, observa a autora, enraizadas num contexto de incertezas, potencializam a abertura de um espaço propício aos comportamentos de extremismos, como o consumo de drogas, ligações com bandos e seitas, ou como é o caso do ciúme de caráter mais extremo, que "podem parecer a melhor defesa, ou, pelo menos, a mais viável delas." (p. 169).

Deduz, portanto, que o ciúme representa hoje uma das tentativas de controle da vida, "dolorosamente buscado para o gerenciamento da nova condição da experiência amorosa em nossos dias" (p. 169). Diante de tudo, podemos perceber que a vida em casal na atualidade contempla algumas especificidades que trazem para a relação amorosa mais desafios do que no passado, tomando como base para este raciocínio, principalmente, a ideia de que a manutenção de um vínculo amoroso hoje depende do investimento de ambos da díade, de processos de confiança ativa (GIDDENS, 2007) e de diálogo. Assim, o objetivo do presente texto é trazer uma contribuição da psicanálise para a compreensão da dinâmica conjugal, abrangendo a sua instância inconsciente, para pensar a administração das dificuldades e conflitos que regem a vida em casal, principalmente em tempos contemporâneos.

 

O Casal e o Vínculo do Casal

A psicanálise de família, de casal e de grupo levou autores contemporâneos a descobertas que ampliam as teorias concebidas a respeito do funcionamento de um aparelho psíquico individual. Assim, compreende-se que "não existe apenas a realidade forjada pelas fantasias inconscientes e a vida pulsional, mas que há outra, a que se cria a cada encontro entre dois ou mais sujeitos" (PUGET, 2000, p. 73).

A noção de vínculo, tardia na teoria psicanalítica, distingue-se da noção de representação e relação de objeto. Surgiu pela necessidade de pensar o sujeito do inconsciente como sujeito da herança4 e da crescente importância de considerar o intersubjetivo na constituição do indivíduo, no seio de suas relações familiares (MOGUILLANSKY, 1999).

A relação de objeto refere-se à relação que o ego tem com um objeto, mais precisamente com um objeto interno (MOGUILLANSKY, 1999). A relação do ego ou do self com o objeto interno condiciona, medeia, colore a relação com o objeto externo. Quanto à noção de vínculo, esta esteve presente na obra freudiana desde o início, mas ganhou mais peso e consistência teórica com as obras de Bion (1970), Berenstein e Puget (1993), e Kaës (1997). O vínculo caracteriza-se pelo fato de ser um fenômeno que aborda a mediação, a construção intersubjetiva entre os sujeitos. Consequentemente, cada ego que constitui a dupla tem importância, isso significa que aspectos relativos à singularidade do outro têm a potencialidade de atingir a constituição subjetiva do eu.

Percebe-se, por conseguinte, que o vínculo precede a relação de objeto, porque esta corresponde a uma fantasia de interiorização do vínculo que se formou e se desenvolve com um objeto da realidade externa (JAROSLAVSKY; MOROSINI, 2010). Existe, portanto, uma relação dialética entre vínculo e relação de objeto, já que a relação de objeto é o motor do vínculo, organizando-o e criando-o. Evidencia-se, também, o caráter de transformação que o vínculo impõe ao sujeito, pois o leva a questionar realidades inconscientes específicas que se diferenciam daquela vivenciada com o outro ego.

O vínculo intersubjetivo deve ser concebido como uma relação de reciprocidade entre dois sujeitos cujos inconscientes se influenciam mutuamente (Eiguer, 2008). O termo intersubjetivo ligado ao de vínculo significa que estão reunidos três psiquismos: o do sujeito, o do outro e o da relação entre eles, sem que nenhum deles possua privilégio sobre os demais. Não se trata de pensar sobre uma relação estabelecida entre duas subjetividades, mas entre dois sujeitos do inconsciente que buscam no outro uma via para a realização de seus desejos. Na realidade, buscam, mais especificamente, encontrar seu desejo encontrando o do outro. A subjetividade de um captaria o desejo do outro, porém, nem sempre, já que Eiguer (2008) aponta que o que é importante neste processo é o estabelecimento do vínculo intersubjetivo. Até porque todo vínculo terá algo de dissimétrico, visto que cada sujeito se encontra imerso em expectativas e na dependência do outro, diante da esperança de realização dos próprios desejos por meio do outro, o que perdura até o instante em que o desejo do outro se manifesta (EIGUER, 2008).

Assim, todo vínculo, que se forma e se mantém, impõe o trabalho psíquico da transformação dos sujeitos através de seu próprio processo, que mobiliza o sujeito a conhecer aquele que pensava conhecer. Além disso, as diferentes formas de identificação, mecanismos projetivos cruzados (identificações narcísica, projetiva etc.)5, todas as emissões provenientes do outro sujeito deverão ser tratadas, elaboradas pelo aparelho psíquico do sujeito. Para Eiguer (2008), o funcionamento psíquico é predisposto ao vínculo e se estrutura nessa base.

Antes de reconhecer o que o outro diz, assim que sente o impacto de sua presença, o sujeito se pergunta porque o outro exprime o que exprime e é surpreendido, às vezes, por um sentimento de estrangeirismo que o toma. Procura sentir o que nele é diferente do outro, o que o conduz a se reconhecer e se descobrir, talvez, diferente do que ele pensava ser inicialmente (EIGUER, 2008).

Ainda nesse processo, procura associar o outro a algum de seus vínculos inconscientes e termina por tomar uma posição em face dele. Será inevitável, portanto, a comparação entre seus pensamentos, suas sensações com as do outro, e o sujeito então começará a se ver de outra maneira. Dessa forma, inicia-se um movimento constante, no qual o sujeito não será mais o mesmo, porque sua identidade será marcada pela percepção da singularidade do outro (EIGUER, 2008).

No começo deste percurso, apenas o similar e o parecido são predominantes. Entramos num vínculo pela "porta" da ilusão e somente mais tarde é que a desilusão tende a intervir e a sublinhar em que o outro é diferente. Podemos pensar, a partir de Eiguer (2008), que um vínculo conjugal tende sempre a se iniciar com base neste modelo de identificação ilusória. Será somente por meio de um caminho lento e irrefreável, de conhecer aquele com quem se passou a conviver, que se conhecerá de fato quem é a pessoa com quem se convive. Entendemos que será neste ponto que o casal poderá de fato vir a se conhecer ou perder o encanto que se tinha, baseado nas expectativas narcísicas de cada um. Para que um casamento continue a manter o brilho e a vivacidade do início, é necessário que cada um da dupla recorra a seus recursos psíquicos para conseguir, neste processo, de fato reconhecer, respeitar, se responsabilizar pelo outro e pelo vínculo e, então, construírem um relacionamento não aos modelos de "foram felizes para sempre", mas em que a reciprocidade os faz crescer e viver de uma forma satisfatória.

 

Construindo um vínculo satisfatório com quatro R

Para que um vínculo se estruture em bases sólidas e permaneça saudável, Eiguer (2008) postula a necessidade de que sua fundação esteja alicerçada no que denomina de "os quatro R" do vínculo: reciprocidade, respeito, reconhecimento e responsabilidade.

A reciprocidade resulta da maneira como os sujeitos do vínculo interagem e da possibilidade de um investimento intersubjetivo criativo. O respeito ao outro supõe a ausência de maus julgamentos e resulta de um longo trabalho de aproximação, no qual o outro lhe parece próximo e ao mesmo tempo diferente. O respeito ainda advém do amor e do sentimento de ter construído em conjunto um universo compartilhado, supondo-se a capacidade de aceitar a singularidade do outro (EIGUER, 2008).

O reconhecimento é um processo mais complexo. Eiguer (2008) primeiramente apoia-se em Benjamin (1988/1992), para quem o vínculo se encontra na tentativa de equilibrar a afirmação de si e o reconhecimento do outro: para conseguir se afirmar, é preciso o reconhecimento do outro. Haveria um paradoxo nesse processo, porque o ego ao mesmo tempo em que possui a necessidade do reconhecimento do outro e, portanto, de concebê-lo como separado de si, procura se fundir com este outro, a fim de se tornar um único e absoluto, num universo onde não exista conflitos. O ego precisa desse reconhecimento do outro, de que seus atos sejam significantes para o outro, porque isto faz com que se tornem significantes para si mesmo. Contudo, nesse movimento, o outro tende a resistir, porque cada vez que é afetado pela subjetividade alheia se modifica e para preservar sua identidade ele resiste (BENJAMIN, 1988/1992). Assim, nasce um mal-estar, assinala Hegel (1807/1998), porque, nesse processo, enquanto o outro resiste e parece incontornável, o sujeito pode tentar dominá-lo. O sujeito poderá se servir do outro, tentar dominá-lo, porque precisa da preciosa certeza que advém do outro de ser "ele-mesmo", para poder existir. A despeito da dificuldade de tal tarefa, se um vínculo não é capaz de suportar esse movimento paradoxal, não se sustenta (Eiguer, 2008). E esse processo é interminável, pois só podemos reconhecer o outro à medida que não o conhecemos verdadeiramente, e nem a nós mesmos.

Por conseguinte, trata-se antes de uma busca, de uma tentativa, de um desejo de reconhecer e ser reconhecido. Restará sempre uma sombra em cada membro do vínculo, mesmo que isso seja angustiante, porque o processo de conhecimento pleno do outro não é possível. Reconhecemos o outro justamente porque nós o desconhecemos: isso significa aceitar a existência de uma parte obscura de sua singularidade (EIGUER, 2008).

Dessa forma, reconhecer não significa conhecer melhor, mas perceber que conhecemos menos aquele que supúnhamos inicialmente conhecer. Conforme nossas fantasias são colocadas em questão, renunciamos a uma parte da ideia de tudo saber sobre o outro. Isso acarreta igualmente em admitir que o outro pode nos esquecer e mesmo falhar em suas promessas (EIGUER, 2008). A possibilidade de reconhecimento do outro não pode ser conquistada sem a possibilidade da aceitação da diferença, sobre as próprias faltas e do que há de positivo no outro. Por fim, o que conta na formação de um vínculo não é tanto o que um aprecia no outro, mas o fato de admitir as diferenças e comunicá-las. Os dois, admitindo suas faltas e qualidades alheias, constituem um ciclo de reconhecimento.

Nem sempre esse processo é simples, porque, como ressaltam Santona e Zavattini (2005), nascido de objetos internos, o clima emocional de um casal pode ser perpassado por recíprocas projeções tão intensas quanto forem as dificuldades dos sujeitos em aceitar a separação e a diferença no vínculo. Defendem que temos uma tendência a encenar papéis no vínculo, convidando o outro a participar de uma dinâmica que retrata dramas interiores inconscientes e conscientes. Num vínculo amoroso, seus membros são implicados numa trama de alimentação e ressonância das fantasias internas que se comunicam via inconsciente e, saber separar realidade interna de externa, nem sempre é algo viável ou fácil. Um casal pode justamente se unir por meio da "assinatura" de um contrato inconsciente, em que os papéis que desempenham fazem retomar dramas vividos através de projeções maciças cruzadas. Tais aspectos podem interferir na capacidade de reconhecimento e diferenciação do outro, essenciais para que o vínculo seja vivido de forma prazerosa e saudável (Eiguer, 2008).

Quanto ao conceito de responsabilidade, Eiguer (2008) constata que o trabalho de Lévinas (1974) é precioso para pensá-lo, mas não apenas: para o autor, o sentimento de culpa tomado pela teoria freudiana como principal organizador do superego deveria ser revisado à luz do conceito de responsabilidade. Sentir-se culpado é diferente de se sentir responsável: a culpa sugere a ocorrência de um erro e a responsabilidade aborda também os bens e as ações construtivas. A noção de responsabilidade, para Lévinas (1974), é antes de tudo ética (EIGUER, 2008). Num vínculo compromissado, a responsabilidade conduz a perspectivas mais vastas que a culpabilidade, já que, sob os efeitos da primeira, desejamos nos aproximar do outro, cuidar dele e ajudá-lo, se necessário, enquanto o sentimento de culpa tende a ser um paralisante.

 

Considerações Finais

Manter um vínculo amoroso na contemporaneidade implica em um investimento que demanda mais dos parceiros do que antigamente. Assim, o presente artigo visou a uma reflexão, propiciada pela compreensão psicanalítica a respeito da dinâmica conjugal, sobre como administrar de modo saudável os conflitos inerentes que surgem na vida do casal.

Um aspecto importante desta reflexão, como exposto, é aquela que indica que para se conseguir manter um vínculo saudável, no sentido de manter a vivacidade, a criatividade e a inovação para a vida do casal, será necessária a presença constante de uma capacidade da dupla de olhar para as diferenças, para tudo aquilo que escapa às exigências e expectativas conscientes e inconscientes projetadas no outro, e elaborá-las. Este trabalho de elaboração muitas vezes precisará passar por um processo de trocas intersubjetivas, pelo diálogo, mas também pela capacidade de respeitar o outro e de reconhecê-lo em suas particularidades e diferenças das quais não se imaginava, ou muito pouco se desejava, encontrar no parceiro.

Portanto, para que se mantenha satisfatório um vínculo amoroso é preciso um compromisso e a capacidade psíquica da dupla de se responsabilizar por suas dificuldades e conflitos, aprendendo em conjunto a lidar com eles, sempre que preciso. Visto que os conflitos podem ser de ordem inconsciente, a ajuda de um terapeuta de casal faz-se, em alguns casos, necessária. Por fim, ressaltamos que não há fórmula mágica quando se trata da formação de um vínculo amoroso, já que todo esse trabalho será constante, e irá requerer trabalho.

 

Referências

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1 Psicóloga, mestre, doutora e pós-doutoranda em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Professora Adjunta no Departamento de Psicologia e Psicanálise da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: sandra.zanetti@gmail.com
2 Psicóloga, mestre e doutora em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Professora Adjunta no Departamento de Psicologia e Psicanálise da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: mairabonafe@gmail.com
3 Estudante de graduação em Psicologia na Universidade Estadual de Londrina. E-mail: rafa_colavin@hotmail.com
4 O sujeito da herança, segundo Kaës (2001), é aquele dividido, "como o sujeito do inconsciente, entre a necessidade 'de ser um fim para si mesmo' e de ser 'o elo de uma cadeia à qual está sujeito sem a participação da vontade'" (Kaës, 2001, p. 11).
5 Na identificação narcísica, há um ataque à separação e à diferenciação, porque o ego não pode se confrontar com o diferente de si e, por conta disso, quando o outro o desaponta, tende a voltar a catexia objetal para si (Freud, 1917/2006). Identificação Projetiva é uma "expressão introduzida por Melanie Klein para designar um mecanismo que se traduz por fantasias em que o sujeito introduz a sua própria pessoa (his self) totalmente ou em parte no interior do objeto para o lesar, para o possuir ou para controlar" (Laplanche, 2004, p. 232). Para os autores, a identificação projetiva surge como uma modalidade de projeção na qual o sujeito tende a projetar