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Vínculo

Print version ISSN 1806-2490

Vínculo vol.11 no.1 São Paulo June 2014

 

ARTIGOS

 

A constituição do vínculo conjugal violento: estudo de caso

 

The constitution of the violent marital bond: case study abstract

 

La constitución del vínculo conyugal violento: estudio de caso

 

 

Andrezza Sisconeto Ferreira DiasI,1; Anamaria Silva NevesII,2

I Universidade Federal do Triângulo Mineiro (Departamento de Medicina Social), Uberlândia- MG
II
Universidade Federal de Uberlândia

 

 


RESUMO

O artigo analisa a constituição do vínculo conjugal violento a partir do entendimento que a violência conjugal, além da questão gênero, envolve a dinâmica afetiva do casal. Neste estudo, o casal entrevistado foi convidado a participar da pesquisa a partir da inserção do mesmo em uma ONG (organização não governamental) que atende pessoas que vivenciam a violência intrafamiliar. Foram realizadas duas entrevistas abertas utilizando-se de um tema disparador para o desenvolvimento das mesmas. O referencial teórico adotado fundamenta-se na Psicanálise, Psicanálise Vincular e Estudos Psicossociais. As análises interpretativas apontaram para um vínculo constituído a partir da idealização romântica, e em projeções mútuas de completude e perfeição que levou o casal à frustração e à vivência acentuada da desidealização e do desencanto. O conflito da individualidade X conjugalidade e a nova constituição familiar também foram elementos que contribuíram para a dinâmica afetiva violenta. Tal configuração vincular abriu vias para a violência que se instaurou desde o início da trama conjugal. Torna-se importante olhar para a dinâmica intersubjetiva do casal, uma vez que é relevante pensar nesses elementos para a compreensão do fenômeno abordado.

Palavras-chave: Violência conjugal; vínculo intersubjetivo.


ABSTRACT

This article analyzes the establishment of the violent marital bond from the understanding that the marriage bond, in addition to the gender issue, involves the emotional dynamics of the couple. In this study, the interviewed couple has been invited to take part in the investigation, from the inclusion of the same in an NGO (nongovernmental organization) that caters to people who experience domestic violence. Two open interviews using a trigger issue towards the development of the same have been made. The adopted theoretical referential is based on the psychoanalysis, psychoanalysis link, and psychosocial studies. Interpretative analyses have pointed to a link established from romantic idealization and on mutual projections of fullness and perfection which led the couple to frustration and to the strong experience of the desidealization and disenchantment. The conflict of the individual X conjugality and family Constitution were also elements that have contributed to violent emotional dynamics. Such a configuration link has opened ways to the violence, which has been established since the beginning of the marriage plot. It becomes important the look to the intersubjective dynamics of the couple, once it indicates to be relevant to think of those elements for the understanding of the phenomenon addressed.

Keywords: Domestic violence; intersubjective bond.


RESUMEN

Este artículo analiza la constitución del vínculo conyugal violento a partir del entendimiento que el vínculo conyugal, además de la cuestión género, involucra la dinámica afectiva de la pareja. En este estudio, la pareja entrevistada ha sido invitada a participar de la investigación, a partir de la inserción de la misma en una ONG (organización no gubernamental) que atiende a las personas que vivencían la violencia intrafamiliar. Han sido realizadas dos entrevistas abiertas utilizándose de un tema disparador hacia el desarrollo de las mismas. El referencial teórico adoptado se fundamenta en la Psicoanálisis, Psicoanálisis Vincular y Estudios Psicosociales. Los análisis interpretativos han apuntado hacia un vínculo constituido desde la idealización romántica y en proyecciones mutuas de plenitud y perfección que condujo la pareja a la frustración y a la vivencia marcada de la desidealización y del desencanto. El conflicto de la X individual conyugalidad y la nueva constitución familiar también fueron elementos que han contribuido a la dinámica violenta afectiva. Tal configuración vincular ha abierto caminos a la violencia, que se ha sido instaurado desde el comienzo de la trama conyugal. Se hace importante la mirada hacia la dinámica intersubjetiva de la pareja, una vez que indica ser relevante pensar en esos elementos para la comprensión del fenómeno abordado.

Palabras-clave: Violencia conyugal; vínculo intersubjetivo.


 

 

Introdução

O propósito deste trabalho é apresentar os resultados de uma pesquisa de mestrado em Psicologia, realizada na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), cujo objetivo foi apreender a dinâmica afetiva do vínculo conjugal violento, buscando entender a constituição destes vínculos. O texto discute a análise das entrevistas de um casal participante da pesquisa. O estudo fundamenta-se na Psicanálise, Psicanálise Vincular e Estudos Psicossociais.

A violência conjugal tem sido objeto de estudo de várias áreas conhecimento: Ciências Sociais, Psicologia, Psicanálise, História, Enfermagem, entre outras, delineando assim a complexidade e amplitude do tema que envolve o campo da saúde; do judiciário; da assistência social. O próprio conceito de violência é analisado em várias vertentes teóricas. Chauí (1985) concebe a violência como uma relação assimétrica de forças em que se dá a opressão e a dominação, de modo que aquele que é dominado é caracterizado pela inércia e passividade diante da violência sofrida.

Para Birman (2000), a violência é a negação do outro naquilo que ele tem de essencial e corresponde à "eliminação do outro, se este resiste e faz obstáculo ao gozo do sujeito. A violência impede a manifestação do outro na sua singularidade" (BIRMAN, 2000, p.46). Bereinstein (2006), define: "violência é uma ação que está dirigida para suprimir ou destruir o outro" (BEREINSTEIN, 2006, p.4).

Portanto, a noção de violência aqui apresentada centra-se na negação da subjetividade, na anulação e destrutividade do sujeito. O outro enquanto sujeito deixa de existir e de ser reconhecido como tal, independentemente da forma como a violência é exercida (física, sexual ou psicológica).

Apesar de se considerar as questões relativas ao gênero entremeando a violência no casal, o olhar aqui lançado fundamenta-se, sobretudo na dinâmica conjugal violenta. Conforme apontam Machado e Magalhães (1998), desde a década de 90 uma nova forma de estudar o fenômeno começou a ser delineada. Estudiosos e pesquisadores passaram a entender a mulher não apenas como vítima, mas também começaram a analisar os lugares ocupados por homens e mulheres no vínculo amoroso-violento, pois "essas relações também se organizam como relações de afetividade, sexualidade, amor e paixão" (MACHADO E MAGALHÃES, 1998, p. 3). Assim, sem desconsiderar toda a luta feminista para que os direitos das mulheres fossem efetivados e as políticas públicas protetivas a favor da mulher, considera-se que a violência conjugal é também constituída no vínculo. Como aponta Araújo (2005), a violência conjugal é entendida a partir do contexto social e histórico, no qual aspectos sociais, individuais, conscientes e inconscientes estão inter-relacionados, sendo variadas as faces da violência conjugal em cada casal.

Pensar na constituição de uma relação violenta implica pensar na escolha amorosa. Esta tem sido objeto de estudo da investigação psicanalítica em suas várias vertentes teóricas, e busca analisar porque se escolhe determinado sujeito para constituição do vínculo amoroso. Freud (1914-1976) em Uma Introdução ao Narcisismo afirma existirem dois principais tipos de escolha: na primeira delas, anaclítica ou de ligação, o sujeito busca no outro representações dos seus primeiros objetos de ligação (a mãe ou substituto desta). No segundo tipo, narcísico, o sujeito busca reencontrar-se consigo mesmo no objeto amoroso.

Kristeva (1998) aponta o elemento narcísico em ambas às escolhas descritas por Freud,

"sendo anaclítica ou narcísica, a escolha amorosa precisa que o objeto garanta uma relação com o narcisismo do sujeito segundo duas modalidades: por uma gratificação narcísica e pessoal (narciso é o sujeito) ou por uma delegação narcísica (narciso é o outro)" (KRISTEVA, 1998, 142).

Alvarenga (1996) reafirma a implicação do narcisismo na escolha amorosa afirmando que sempre haverá um componente narcísico neste processo. O amor é consequência de uma insatisfação estrutural que lança o sujeito em um movimento na ilusão de reencontrar o objeto perdido. Ou seja, há um movimento pulsional que impele o sujeito a esse reencontro.

Depreende-se dos autores apresentados que na escolha amorosa e no desdobramento do vínculo os parceiros buscam no outro o reconhecimento narcísico. A expectativa entre os sujeitos é a de que ambos reafirmem um ao outro a imagem que os sujeitos têm de si mesmos (Alvarenga, 1996). Entretanto, o casal não consegue reafirmar o narcisismo do parceiro o tempo todo, o que fará com que o sujeito tenha que lidar com a castração.

Para Puget e Bereinstein (1994), três representações são constituintes da formação de um vínculo de casal. A primeira delas provém do vínculo mãe-bebê e corresponde ao narcisismo primário. A segunda representação é proveniente da relação de casal dos pais, em que o bebê ocupa o lugar de excluído, chamado pelos autores de terceiro excluído. Por fim, a terceira representação é proveniente do mundo social, ou seja, a representação social da relação conjugal e familiar. Apesar de apontarem os aspectos intrapsíquicos, intersubjetivos e transubjetivos na escolha conjugal, os autores ainda apontam que nessa escolha ocorrem ainda novas produções intersubjetivas que dizem respeito ao que não está inscrito previamente. Puget (2012) define o efeito de presença, considerado como novas produções subjetivas, a partir da situação inédita formada "que promove estados de ânimo, ideias, ações e emoções que percorrem um amplo espectro, que vai desde o enriquecimento até a irritação por ter de acomodar algo que não existia" (PUGET, 2012, p. 87).

Outro aspecto importante na escolha conjugal apontado pela Psicanálise das Configurações Vinculares, diz respeito à herança psíquica. Para Kaës (2001) o sujeito é um intersujeito, ou seja, sujeito do grupo; e a primeira inserção grupal se dá na família. A escolha amorosa traz, assim, os reflexos desse grupo, obedecendo a um determinismo familiar.

Embora os aspectos inconscientes sejam salientados pelos autores apresentados, Gomes e Porchat (2006) apontam que aspectos conscientes também estão envolvidos neste processo. Assim, os sujeitos se escolhem sendo influenciados pela atração física, contexto sociocultural e compatibilidades, como gostos parecidos, valores semelhantes, entre outros.

 

Metodologia

O casal apresentado neste estudo foi convidado a participar da pesquisa a partir da inserção do mesmo em uma ONG (organização não governamental) que atende pessoas que vivenciam a violência intrafamiliar, sendo a maior demanda a violência conjugal. O casal foi entrevistado em sua residência e foram realizadas duas entrevistas abertas, em que se utilizou de um tema disparador para o desenvolvimento da entrevista. Assim, partiu-se da seguinte afirmação: "gostaria que vocês me contassem sobre a história de vocês". A partir daí, vários temas foram emergindo e na análise do material foram selecionados os temas considerados mais significativos.

O casal foi esclarecido quanto aos objetivos da pesquisa e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, aprovado pelo comitê de ética em pesquisa da Universidade Federal de Uberlândia (UFU processo 253-11). A análise se fundamenta na Psicanálise, Psicanálise Vincular e Estudos Psicossociais. O nome do casal foi escolhido aleatoriamente e preservados quaisquer dados que pudessem identificá-los.

 

Resultados e Discussão

Helena e João estão juntos há 02 anos vivendo em união estável, mas se conhecem há 25 anos quando tiveram um rápido namoro na juventude. Helena foi casada por 12 anos e João, por 10 anos. Ambos contaram que sempre foram apaixonados um pelo outro, mesmo estando casados com outras pessoas. Sempre se falavam, escreviam cartas e se reencontravam quando João ia visitar a família na cidade de origem. Certo dia, em um desses reencontros, começaram a idealizar uma vida a dois. João estava separado há 03 anos quando esse reencontro aconteceu, mas Helena continuava casada. Ele disse: "(...) Até que passou um tempo e a gente trombamos lá, aí começamos a conversar de viver junto (...)".

O reencontro, descrito por João como uma trombada, diz muito da formação desse vínculo. Uma trombada dá ideia de algo intenso, violento. De fato, Helena saiu de um casamento e, rapidamente iniciou um novo relacionamento. Embora ela cogitasse a separação, somente conseguiu se separar a partir do reencontro da "trombada" com João. O término do casamento de Helena ocorreu também de forma violenta, não havendo tempo para elaboração do fim de um vínculo e início de outro, o que contribuiu para que João se tornasse depositário das questões que Helena trouxera do relacionamento anterior.

Interessante observar que tanto Helena quanto João, falaram nas entrevistas sobre o quanto se desconheciam: "a gente passou a vida inteira se amando, mas no tête-à-tête é outra coisa, por isso, a gente teve todos esses problemas", disse Helena, indicando que na presença do outro real, a idealização de que viveriam uma relação plena e perfeita porque sempre se amaram, não pôde ser mantida. O efeito de presença apresentado por Puget (2012), indicando que novas produções subjetivas são formadas no vínculo, aponta que diante da nova conjugalidade, um grande mal-estar foi instalado e que ambos não conseguiram lidar com os novos ajustes conjugais que teriam que fazer.

Nota-se que a não convivência e o desconhecimento mútuo, tornou-se, nessa relação, elemento que nutriu a idealização. Embora o processo de ilusão seja comum à formação da conjugalidade em geral, Helena e João ao constituírem o vínculo estão implicados em uma montagem, alimentados por um ideal de amor que não pôde ser vivido na juventude. Uma história idealizada que serve apenas ao sonho e à ilusão. Puget e Bereinstein (1994) afirmam que a relação amorosa é constituída a partir da fusão e da indiscriminação de um e outro. Uma segunda etapa adviria desse processo que se refere à discriminação das individualidades do casal. Assim, ou o casal suporta esse momento em que papéis e funções são definidos, ou tenta a qualquer custo manter esse estado fusional. Neste casal, esta tentativa foi frustrada, e a desilusão e o desencantamento vivenciado por ambos ocorreram de forma muito rápida. Os conflitos conjugais presentes desde quando foram morar juntos, abriram vias ao processo de violência conjugal.

 

Impasses conjugais

O conflito entre individualidade e conjugalidade foi um tema que emergiu significativo nas duas entrevistas. Helena é uma mulher independente, expansiva, comunicativa. No casamento anterior assumiu a maior parte do tempo a função de provedora. João, por sua vez, estava em uma época em que desejava trabalhar menos, pois considerava que já havia trabalhado bastante e queria ter mais tempo para família, para ele mesmo e para a vida conjugal.

O casal descreveu um sentimento de estranhamento tão logo começaram a conviver juntos. Conforme pontuado por Helena, João teve muita dificuldade em aceitar uma mulher tão independente. Disse ele: "é que os padrões que ela vivia lá, não batia com os meus padrões aqui, então bateu, chocou forte (...)".

O sofrimento vincular que pôde ser observado diz respeito à dificuldade que os dois tiveram para fazer ajustes no campo da individualidade e conjugalidade. A esse respeito Féres-Carneiro (1998) aponta que "o fascínio e a dificuldade de ser casal, reside no fato de o casal encerrar ao mesmo tempo na sua dinâmica, duas individualidades e uma conjugalidade... como ser dois sendo um? como ser um sendo dois?" (FÉRES-CARNEIRO, 1998, p.379). Impasses que esse casal vivenciou desde que constituíram o vínculo.

O conflito da individualidade X conjugalidade trouxe questões mais complexas. Há algo além da postura ativa de Helena, do fato de ela ser uma mulher independente, que diz respeito ao autoritarismo e imposições dela na conjugalidade. Ele reclamou por diversas vezes que Helena não o ouve, que toma decisões sem avisá-lo, que resolve as coisas e depois o avisa. Falas que pontuam o quanto Helena não reconhecia narcisicamente João. De fato, nas entrevistas, em muitos momentos, ela não ouvia o companheiro, e ele acabava desistindo de se posicionar. Levy e Gomes (2010) afirmam: "todo ser humano precisa de um objeto que o confirme em sua existência. Um apoio narcísico é demandado ao parceiro, sendo necessário à manutenção da relação" (LEVY e GOMES, 2010, p.30). João não se sentia reconhecido em seu narcisismo e isso o fragilizava bastante. Além disso, ele pontuou que Helena "é muito autoritária e mandona e não ser ouvido é uma forma de violência": "ela só me ouviu quando peguei ela, pus no colo e bati, igual se bate numa criança, aí ela me ouviu", disse João. Uma violência que emerge a partir de não ser ouvido e reconhecido no vínculo. João trouxe essa fala justamente quando Helena se ausentou por um breve momento da entrevista para buscar o filho em determinado lugar. Neste momento, o sujeito João apareceu e pôde falar sobre o seu sofrimento. Para ele, a violência psicológica surgiu desde que foram morar juntos, com gritos e imposições por parte dela.

Relacionada à fala de João está a nova ordem familiar que se formou com a constituição do vínculo. Helena tem um filho que veio morar com eles e, João tem dois filhos que moram com a mãe. Esse novo ajuste familiar foi bastante conflituoso para o casal. Tal arranjo foi definido por Helena como "um turbilhão", algo também intenso e violento.

Helena exigia que João fosse mais ativo e autoritário com os filhos, que estes fossem mais responsáveis, que frequentassem os cursos em que ela os matriculou. Diante da negativa dos filhos, ela tomou a frente cobrando e exigindo que eles correspondessem às expectativas dela. Assim, muitos conflitos emergiram entre ela, os filhos e João. Em uma de suas falas, ela novamente atingiu João em seu narcisismo: "não tem jeito mais não, esses meninos, são um caso perdido".

Um dos episódios, que culminou em violência física, ocorreu inclusive porque um dos filhos foi visitar o pai fora do horário combinado, o que deixou Helena enfurecida e a levou a discutir com João. Nesse dia, ele atuou com violência.

A respeito das dificuldades enfrentadas pelas famílias reconstituídas, Gomes (2009) coloca que uma das questões centrais nessas famílias diz respeito, justamente "ao equilíbrio entre parentalidade biológica, parentalidade adquirida e conjugalidade" (GOMES,2009, p. 35). E ainda, "pode-se observar um inter jogo complexo de sentimentos, atitudes e posicionamentos que, embora não inviabilizem a existência real desses grupos, exigem de seus participantes maior flexibilidade"... (GOMES, 2009, p.35).

Observou-se que a violência psicológica, verbal, apresentou-se de forma significativa desde o início do vínculo, não só pela negativa de Helena em ouvir seu parceiro, mas também pelas imposições e exigências dela. Entretanto, ela por sua vez, negou ser violenta com o companheiro, relacionando à violência somente os episódios em que João foi violento fisicamente. Tal negação pode ser problemática à conjugalidade, pois culpabilizar apenas ao outro pelo mal-estar conjugal, diz respeito a negar seu envolvimento na problemática da violência.

Por outro lado, na segunda entrevista, Helena mostrou-se um pouco mais flexível dizendo que não iria mais intervir no vínculo dele com os filhos, e que também não tomaria mais decisões sem avisar João, demonstrando que ainda estava disponível a investir no vínculo amoroso.

O casal, enredado numa trama de amor e violência, parece ter criado suas próprias ciladas que foram se repetindo no cotidiano e culminaram em violência física. Embora esta não seja uma constante, a violência verbal-psicológica, tal como demonstrado por João, instalou-se no vínculo e foi se repetindo na conjugalidade.

 

Conclusão

No entendimento do fenômeno abordado, duas linhas teóricas se distinguem e podem se complementar. Uma relacionada ao entendimento da violência como tendo caráter exclusivamente baseado no gênero em que o homem é violento dado o seu poder, e o posicionamento da mulher enquanto figura submissa no cenário social e da conjugalidade. Outra abordagem enfatiza a trama conjugal indicando que homens e mulheres ocupam posições diferenciadas, mas ambos estão envolvidos no desdobramento da relação violenta.

Neste casal, a constituição vincular esteve baseada em uma ilusão criada e alimentada ao longo dos anos que só pôde ser vivida depois de muitos anos que o casal se conhecera. Baseados na crença desse amor, Helena e João constituíram um vínculo amoroso, mas o processo de desilusão deu-se rapidamente. O efeito de presença apresentou um a outro, a presença do outro real, promovendo uma situação inédita e de surpresas com muitos conflitos e estranhamentos. A constituição vincular amparada nessa montagem desdobrou-se em violência.

O casal ainda encontrou dificuldades em fazer ajustes no plano da individualidade X conjugalidade e a nova constituição familiar formada. Processos que se relacionaram à falta de reconhecimento narcísico na conjugalidade e na negação da subjetividade do outro, em que não ser ouvido é reconhecido como violência.

A Psicanálise, a Psicanálise vincular e os Estudos Psicossociais mostraram-se relevantes no entendimento do fenômeno analisado – a constituição do vínculo conjugal violento – ao apontar que esta envolve também elementos inconscientes, sendo importante a análise destes para o entendimento do fenômeno abordado.

 

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1 Psicóloga, mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia. Professora Substituta dos cursos de Medicina e Enfermagem da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (Departamento de Medicina Social). Av. Frei Paulino nº 30. Bairro Abadia. CEP: 384025-180 Uberaba- MG Email: andrezzapsi@gmail.com. CEP: 38400-902. Uberlândia- MG. Tel: 34-3318-5004
2 Doutora em Psicologia. Profª adjunta 3 do curso de Psicologia e Pós-graduação da Universidade Federal de Uberlândia.Email: anamaria@umuarama.ufu.br

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