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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.12 no.1 São Paulo  2015

 

ARTIGOS

 

Pensando sobre o operador intervenção

 

Thinking about the intervention operator

 

Piensando sobre el operador intervención

 

 

Isabel Marazina1

 

 


RESUMO

O artigo pretende esclarecer o conceito de intervenção, operador privilegiado do campo da Análise Institucional, utilizando para isso uma explicitação de conceitos fundamentais desse campo, assim como exemplos de trabalhos realizados que podem abrir a dimensão clinico-política tanto do conceito, como do Movimento Institucionalista.

Palavras-chave: intervenção, Implicação, Movimento Institucionalista, Dimensão política das práticas sociais.


ABSTRACT

The article intends to clarify the concept of intervention, privileged operator of the Institutional Analysis field, making use for such of an explicitness of fundamental concepts of this field, as well as examples of works done which can open the clinical political dimension, both from the concept and the Institutional Movement.

Keywords: intervention, Implication, Institutional Movement, Political dimension of the social practices.


RESUMEN

Este articulo pretende desarrollar el concepto de intervención, operador privilegiado del campo del Analisis Institucional, trabajando para ello con una explicitación de conceptos fundamentales de este campo, asi como de ejemplos de trabajos realizados que pueden abrir la dimensión clínico-política, tanto del concepto como del Movimiento Institucionalista.

Palabras llave: Intervención, Implicación, Movimiento Institucionalista, Dimensión política de las prácticas sociales.


 

 

Quando abordamos a discussão sobre o tema da intervenção abre-se um campo de bastante complexidade e em nada ingênuo, embora de forma imediata pareça um termo quase obvio.

O que seria uma intervenção? De forma ampla, cabem na resposta quase todas as ações exercidas sobre um objeto, um campo, uma lógica... colocar um curativo numa ferida... não seria uma intervenção?

Localizado no campo teórico do movimento institucionalista, o conceito de intervenção adquire um sentido bastante próprio, dentro de um campo semântico muito amplo, tal como acontece com o termo instituição. Esse sentido específico se detém num ponto, que marca uma diferença fundante. Comparte com os sentidos mais amplos o caráter de uma ação, de uma ação que transforma. Aqui abrimos uma primeira condição, porque transformação precisa ser entendida como a abertura ao fortalecimento dos instituintes - organizadores e no limite, a implantação de processos de autoanálise e autogestão, que é a utopia ativa que anima o movimento institucionalista.

Sem duvida, podemos compreender que isso implica numa posição ética e, portanto, política. Esse é o ponto mais importante de sua diferença. Tanto essa ética como essa política se formalizam em teorias, regras metodológicas e recursos técnicos, certamente. Mas ainda mais importante que os recursos metodológicos ou técnicos, que pode partilhar com outros campos de saber, na medida em que a análise institucional questiona a posição fechada das disciplinas tradicionais- mais importante, apontava, é sua perspectiva:

Cito Claudia Villava (2002) professora da Univ. Autónoma de Xochimilco.

A intervenção como assunto assinala uma perspectiva a respeito das ações sociais que se realizam sob o amparo de uma disciplina, o exercício de uma profissão; quer dizer, cobertas por uma aura de racionalidade que legitima um sentido para suas ações, mas que na trama de significações sociais se estabelece como estratégia, seja de invocação ou de supressão do político. (...) O assunto da intervenção, por vago que ele seja, merece ser elucidado, e não reduzido, simplificado ou fechado em fronteiras inequívocas, sob o risco de excluir de toda análise crítica às práticas disciplinarias das ciências sociais, que não poderiam então, mas do que serem operadas desde o regime da eficácia, como estratégias por tanto de perpetuação das formas de dominação. (p.100).


Essa perspectiva então, se abre a partir de uma posição de elucidação da dimensão política que existe nas práticas objetos da sua análise. Elucidação que não se esgota nem na leitura possível de realizar, nem na sua interpretação, nem no ato de atender às determinações inconscientes sem duvida presentes em cada ação institucional. Fundamentalmente, a intervenção de um institucionalista atende à circulação dos fluxos de poder em cada coletivo objeto de intervenção, no qual o próprio interventor também se coloca como objeto de análise.

Se partirmos da ideia de que uma demanda jamais é "natural", mas produzida por uma oferta que circula no meio social, é inevitável incluir na análise dessa demanda a oferta que a produz. Que oferta foi realizada para que esse coletivo ou uma parte dele nos demande? Quais seriam os imaginários sociais que conformaram essa demanda, e que incluem esse analista? Como foi que nos procuraram? Que prestígios, plus de imagem, instituídos diversos estão em jogo? Essas perguntas serão trabalhadas em duas dimensões:

Uma, que implica propor o trabalho junto ao coletivo. Citando Cecilia Coimbra (1995, p.257), respeito à supervisão institucional:

… em momento algum, o lugar social e político no qual se encontra o supervisor deve ficar oculto. O lugar de poder e suas relações não são negados, mas afirmados, não no sentido de marcar cada vez mais esse espaço, mas no movimento de expandi-lo para que seja apropriado pelos outros, para que exista uma circulação.

Outra dimensão, que é a da análise constante da implicação dentro da própria equipe. Faz-se necessário entender mais um tanto sobre o significado do termo implicação, que é justamente, incluir na análise de nossa posição todas essas perguntas que nos convocam como sujeitos sociais submetidos às mesmas determinações históricas, econômicas e políticas que o coletivo que nos solicita.

A respeito, Baremblitt (2002, p. 58) faz uma indicação interessante, quando fala de um esquema básico de intervenção: ele diz que no momento de realizar o diagnóstico provisório, que seria um passo anterior ao contrato definitivo, nesse momento onde a equipe interventora entra em contato com todas as dimensões da organização para tentar saber extensivamente da demanda, se torna incontornável que logo após esse contato a equipe dedique um tempo para se perguntar sobre as expectativas de toda índole que esse contato foi fazendo surgir neles. Nessa direção traz um exemplo significativo: é diferente entender que essa organização solicita um trabalho pontual, um trabalho que pode implicar em trabalhos posteriores se a intervenção "é bem sucedida". A promessa econômica ou de prestigio implica à equipe de diferente maneira e regula o estilo e eficácia da intervenção, se essa implicação não é analisada.

Falamos aqui daquilo que dificilmente fica claro no exercício de uma prática profissional, mas que regula importantes mecanismos da mesma. Circulação de poder, de dinheiro, de prestigio, de mais valia social, a dimensão política de nossas práticas. Dito de outro modo, os atravessamentos-produções dos instituídos que operam no campo social, dos quais somos objeto, de forma inadvertida, na maior parte das vezes. Na medida em que naturalizamos os efeitos das instituições que nos atravessam, é pouco provável que possamos observá-los nos coletivos que nos solicitam.

E os coletivos nos solicitam quando, retomando a feliz analogia de uma querida colega, Diana Markwald, a gruta do ciclope, que se refere ao conhecido episódio da Odisseia, onde Ulisses e seus companheiros foram capturados por um Ciclope que pretendia devorá-los. Ulisses se salva graças ao seu engenho, e é a isso que alude a metáfora, à capacidade de invenção para atravessar as "grutas institucionais". A gruta Cíclope tomou conta do espaço em que existem. Tanto na figura do desamparo em que uma organização pode deixar aos seus agentes, quanto no corte dissimulado das possibilidades de levar adiante o projeto para o qual foi criada.

Um velho militante da luta antimanicomial em São Paulo, psiquiatra de formação, Francisco Drummond, quando chamado a dirigir o Hospital Psiquiátrico do Estado, Hospital Franco da Rocha-conhecido como Juquerí – realizou uma das intervenções mais radicais que essa instituição atravessou, pelo simples fato de fazer valer sua carta de princípios. Ou seja, ele recuperou o projeto original, na letra da lei que o regulava.

Acudi a esse exemplo para ilustrar que as intervenções podem assumir infinitas formas; não existem "técnicas específicas" de intervenção. Felix Guattari, em discussão sobre a intervenção numa organização psiquiátrica do estado de São Paulo, sugeria a instalação de um espaço semelhante a um clube de futebol, onde poderiam se tramar conexões inéditas que em espaços mais formalizados eram impossíveis, dado o baixíssimo coeficiente de transversalidade institucional.

Na época da intervenção na cidade de Santos (estado de SP), ano 1989, foi fechado por ordem da Prefeitura da cidade o único hospital psiquiátrico da região, um infame depósito de pacientes que sob direção privada extraía seu subsidio de convênios com o poder público.

Essa intervenção, que foi porta de entrada de um amplo programa de Saúde Mental para a cidade, foi realizada a través de uma equipe da Secretaria Municipal de Saúde, que direcionou as instalações do hospital para outros usos. Como resultado, foi possível a desinternação da maioria dos pacientes. Para isso, foram implementados inúmeros dispositivos heterogêneos: desde cursos de formação para os agentes que trabalhavam nos NAPS (Núcleos de Atenção Psicossocial), os próprios NAPS, as redes de residência e emprego-programas de empregabilidade, a Radio Tan-Tan que emitia e criava programas de radio feitos pelos pacientes, dispositivos resultantes da singularidade do processo assim como da experiência recolhida pela historia do movimento antimanicomial em outros lugares e épocas.

Dentro da quantidade de questões que poderia se tocar respeito a essa intervenção, talvez a mais importante seja que a possibilidade de sua realização não se deveu a excelência técnica, mas à vontade política. A possibilidade técnica do "bom fazer" se coloca em segundo lugar em relação ao que sustenta uma intervenção: a vontade política. Se foi possível, foi por uma direção política que sustentou o questionamento da prática instituída. Sem ela, os alcances de una técnica ficam perigosamente restritos ou as boas intenções, ou ao que Villava (2002) assinala como estratégias que rebaixam a potencialidade instituinte confirmando assim os instituídos vigentes... Por isso é preciso, na medida em que atuemos nas fissuras institucionais, de se servir da astucia dos viajantes, à maneira de Ulisses, para vigiar onde podemos estar trabalhando a favor da cristalização da estrutura.

Mas o que me interessava contar é que dada a longuíssima permanência de alguns pacientes que já não era possível saber se eram crônicos pelas suas patologias ou pela própria internação, era necessário pensar um agenciamento para eles. Era um grupo de aproximadamente 20 pacientes, em condições muito regredidas. Simultaneamente a Secretaria de Assistência Social precisava dar abrigo temporário a um contingente importante de menores em situação de rua de 8 a 10 anos de idade. A equipe de Saúde Mental pensou um dispositivo para que as crianças e os pacientes crônicos pudessem compartilhar o espaço do antigo hospital. Foram criados diferentes dispositivos para poder realizar a instalação e acompanhamento da experiência, sob murmúrios - quase gritos - de crítica do coletivo da Secretaria Municipal de Assistência Social. Claro, era um verdadeiro corte nos fluxos institucionais. Juntar "malfeitores da rua" com "indefesos", pacientes crônicos podia dar lugar a todo tipo de abusos... E não é que deu um incrível resultado?

A posição dos garotos em relação aos pacientes foi extremamente lúdica, às vezes cruel, como costuma ser a infância. Mas era incomparável ao trato desumanizante que esses pacientes viveram ao longo de muitos anos. Pelo contrário, eles foram sacudidos, estimulados, às vezes tratados como brinquedos por essas crianças acostumadas a presenças semelhantes na rua, onde transcorria sua vida. Constatou-se uma surpreendente revitalização dos crônicos, que pela primeira vez em muito tempo, eram solicitados como gente...

Se me detive nesses exemplos é porque entendo que eles trazem o espírito de uma intervenção de forma muito clara. Trata-se de possibilitar, da leitura da situação - sempre inédita e singular – exija que novas circulações de fluxos desejantes possam se fazer presentes. Sabemos que os coletivos sofrem de forma privilegiada pelo estancamento de sua potencialidade transformadora, e que esse estancamento na maioria dos casos é produzido pelo que Horácio Ribeiro de Souza caracteriza no seu trabalho sobre "O institucionalismo, doença das instituições" (1982): o deterioro progressivo do seu funcionamento, para responder à vocação de todo agrupamento de sobreviver pagando o enorme preço de perder e deformar a sua função social originaria. A gruta do ciclope faz parte da estrutura de uma organização, assim como a astuta vontade de lhe fazer frente, em tanto que se coloca como um discurso único que impede possibilidades de recreação e hospitalidade de seus agentes e usuários.

Esse é o porquê de não se deter numa enumeração de técnicas. Também é por isso que importamos dos campos aliados o necessário para a tarefa de abrir fluxos inéditos, ou de restaurar novos-velhos fluxos, na medida em que constroem o bom uso institucional. Que nos apropriamos, ou reapropriamos de elementos que sirvam à estratégia tramada, sempre dentro da condição de uma crítica constante da implicação.

 

REFERÊNCIAS

BAREMBLITT, G. F. Compêndio de análise institucional e outras correntes, teoria e prática. 5ª. Edição. Belo Horizonte: Instituto Felix Guattari (Biblioteca Instituto Félix Guattari), 2002. P 58.         [ Links ]

COIMBRA, C. Guardiães da Ordem. Uma viagem pelas práticas Psi no pais do milagre. Rio de Janeiro: Editora Oficina do Autor. 1995. P.257.         [ Links ]

RIBEIRO DE SOUZA, H. O Institucionalismo, doença das Instituições. Apostilha inédita. 1982.         [ Links ]

SALAZAR VILLAVA, C. Intervención, trabajo sobre lo negativo. Revista Tramas. No. 18\19.Junio-Diciembre 2002. Univ. Xochimilco. Méjico. P.100.         [ Links ]

 

 

1 Psicoanalista. Analista institucional. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC/SP. Doutora em Saúde Publica pela FSP/USP. Email: imarazina@gmail.com

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