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Vínculo

Print version ISSN 1806-2490

Vínculo vol.12 no.1 São Paulo  2015

 

ARTIGOS

 

As assembléias como possibilidades de cuidado em saúde mental em um CAPs

 

The assemblies as a possibility of mental health care

 

Las juntas como posibilidades de cuidado en salud mental

 

 

Anamélia Maria Guimarães Junqueira1; Isabel Cristina Carniel2; Alexandre Mantovani3

SPAGESP

 

 


RESUMO

Com o movimento da reforma psiquiátrica, no final dos anos 70, iniciaram-se as discussões sobre o modelo hegemônico hospitalar e a dicotomia sujeito/doença, com o foco nos sintomas e nos diagnósticos, esquecendo os sujeitos. Dentre as possibilidades de novos olhares e tratamentos para os sujeitos com transtornos mentais, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), apresentam-se como equipamentos estratégicos na atenção e cuidado à saúde mental. Nestes serviços são oferecidas diversas modalidades de atendimentos, tanto individuais, como em grupos. Este estudo pretende investigar a Assembleia como uma modalidade de grupo que também pode ser terapêutica, mesmo que não seja esse seu objetivo inicial. Por meio de registros em atas institucionais e diários de campo, as Assembleias foram analisadas qualitativamente e seus resultados discutidos à luz da literatura produzida ao longo dos anos de Reforma Psiquiátrica, tanto no Brasil, quanto no mundo. Os resultados deste estudo apontam para a Assembleia como um espaço que legitima a inserção dos usuários nas decisões institucionais e a maior participação em seu tratamento, com vistas ao resgate da autonomia e do protagonismo.

Palavras-chave: Saúde Mental, Grupo, Reforma Psiquiátrica, Assembleia.


ABSTRACT

With the psychiatric reform movement, in late 70's, some discussions arose on the hospital hegemonic model and the subject/disease dichotomy, focusing on the symptoms and diagnoses, disregarding the subjects. Among the possibilities of new approaches and treatments for the subjects having mental disorders, the Psychosocial Care Centers (CAPs) show themselves as strategic equipment in mental health care. In these services, several modalities of treatments are offered, both on an individual basis and in groups. This study aims to discuss the Assembly as a group modality that can be also therapeutic, even though this is not its initial purpose. Through recordings in institutional minutes and field logs, the Assemblies were qualitatively reviewed and their results were discussed in light of the literature produced throughout the years of Psychiatric Reform, both in Brazil and abroad. The results of this study indicate the Assembly as a space that legitimates the insertion of the users in the institutional decisions and higher participation rate in their treatment, aiming to recover autonomy and power of acting.

Keywords: Mental Health, Group, Psychiatric Reform, Psychosocial Care, Assembly.


RESUMEN

Con el movimiento de la reforma psiquiátrica, en fines de la década de 70, tuvieron inicio las discusiones sobre el modelo hegemónico hospitalario y la dicotomía sujeto/enfermedad, con el enfoque en los síntomas y en los diagnósticos, olvidándose los sujetos. De entre las posibilidades de nuevos ojeos y tratamientos para los sujetos con trastornos mentales, los Centros de Atención Psicosocial (CAPS), se presentan como equipamientos estratégicos en la atención y cuidado a la salud mental. En estos servicios se ofrecen diversas modalidades de atenciones, tanto individuales, como en grupos. Este estudio pretende discutir la Junta como una modalidad de grupo que también puede ser terapéutica, aunque no sea ese su objetivo inicial. Por medio de registros en actas institucionales y diarios de campo, se han analizado las Juntas cualitativamente y sus resultados discutidos a la luz de la literatura producida a lo largo de los años de Reforma Psiquiátrica, tanto en Brasil como en el mundo. Los resultados de este estudio apuntan para la Junta como un espacio que legitima la inserción de los usuarios en las decisiones institucionales y la mayor participación en su tratamiento, con vistas al rescate de la autonomía y del protagonismo.

Palabras-clave: Salud Mental, Grupo, Reforma Psiquiátrica, Atención Psicosocial, Junta.


 

 

INTRODUÇÃO

Este trabalho é fruto de um processo iniciado há três anos, quando a autora principal iniciava sua especialização em Psicologia Clínica na Sociedade das Psicoterapias Analíticas Grupais do Estado de São Paulo (SPAGESP). Ao longo desse período foi produzido um artigo, revisando a literatura da Reforma Psiquiátrica Italiana, preconizada por Franco Basaglia.

A partir das reflexões teóricas ensejadas pelo artigo citado, assim como pela prática da autora como psicóloga de um CAPS, novos interesses surgiram e derivaram na produção do presente estudo, visando a integração dos conhecimentos teóricos à confirmação, na prática, das Assembleias como dispositivos grupais importantes nos serviços de Saúde Mental.

 

REVISÃO DE LITERATURA

O movimento da Reforma Psiquiátrica teve inicio no final dos anos 1970, através da mobilização social e política dos atores envolvidos nessa área de atuação, viabilizando a construção de um arcabouço teórico/técnico e a criação de uma rede de serviços substitutiva e integrada no cuidado em Saúde Mental.

Yasui (2011) aponta a influência das experiências ocorridas na Europa e nos Estados Unidos, no período da Segunda Guerra Mundial, para as mudanças evidenciadas na assistência prestada às pessoas com transtornos mentais, que conduziram à superação do modelo asilar e segregador. O novo olhar às pessoas em sofrimento psíquico não se restringe ao saber psiquiátrico clássico (FARINHA; DENIPOTT, 2012), com práticas voltadas ao diagnóstico e foco exclusivamente nas doenças, esquecendo os sujeitos. O movimento da Reforma possibilitou a discussão de outras formas de atenção, englobando toda a complexidade do sofrimento psíquico e as singularidades de cada sujeito.

Os Centros de Atenção Psicossocial, CAPS, aparecem como principais dispositivos extra-hospitalares na atenção à saúde mental, integrando a rede substitutiva ao Hospital Psiquiátrico com um serviço de base comunitária (DELGADO et al., 2007; MINOZZO, COSTA, 2013). Dentre as modalidades de cuidado oferecidas nos CAPS, estão os grupos. Segundo Benevides (et al .,2010, p.128):

Nesse contexto da desinstitucionalização, fez-se necessária a elaboração de novas abordagens terapêuticas que vislumbrassem a dimensão psicossocial do sofrimento e que levassem em consideração a subjetividade humana e a inclusão social, por meio da cidadania e da autonomia.

Os grupos aparecem, então, como importantes instrumentos no resgate da autonomia, no compartilhamento de experiências e melhora nas relações sociais. Campos, Campos e Rosa (2010), citam também a importante função acolhedora do grupo, permitindo partilhar sentimentos e funcionando como suporte para as dificuldades e angústias em momentos delicados.

O presente estudo traz algumas reflexões sobre um grupo chamado de Assembleia, realizado em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), espaço para a participação dos usuários nas decisões da instituição e, também, em seu tratamento, pressupondo relações de horizontalidade e cogestão. Propõe-se que o grupo possa opinar, refletir e decidir sobre as atividades do serviço, sugerir ações que visem o cuidado na atenção psicossocial, intervir e pensar sobre as questões burocráticas, os possíveis conflitos com a equipe e entre usuários, auxiliando nas decisões coletivas. Através do respeito e valorização das opiniões muitas resoluções são tomadas, sempre com foco no resgate da autonomia e maior inserção dos usuários.

As considerações desenvolvidas neste estudo foram feitas a partir de dois instrumentos: as anotações realizadas durante os encontros, no formato de um diário de campo e o livro ata da instituição, elaborado ao final de cada grupo.

Segundo Minayo (2010, p. 194), o diário de campo é um instrumento de registro no qual o "investigador deve anotar todas as informações que não sejam o registro das entrevistas formais". Oliveira, Ferreira e Furegato (2012) apontam que esse tipo de registro abrange também os sentimentos e marcas importantes. Assim, durante cada encontro, foram anotadas falas relevantes, comportamentos, acontecimentos inesperados e as resoluções praticadas pelo grupo. A instituição mantém um livro ata com os assuntos discutidos, que é redigida após cada encontro pelas coordenadoras. Os dois instrumentos foram utilizados para essas reflexões, através da articulação com a Reforma Psiquiátrica e a Saúde Mental.

 

AS ASSEMBLEIAS

As Assembleias estão contempladas no atual cenário da saúde mental, em publicação do Ministério da Saúde sobre os CAPS (BRASIL, 2004), como uma das modalidades oferecidas entre os recursos terapêuticos, representando um espaço de convivência e discussão de questões referentes ao serviço.

Atualmente observa-se a grande utilização desse grupo nos serviços substitutivos de saúde mental, como em Lima (2013), Marques (2013), Presotto (2013) e Salles e Barros (2013). Apesar das Assembleias serem citadas em diversos trabalhos como recursos utilizados no cuidado às pessoas em sofrimento psíquico, ainda há escassez de publicações sobre a função terapêutica desse dispositivo e o papel ocupado por ele na atenção psicossocial.

Acredita-se, através do grupo objeto desse estudo, que esse dispositivo funcione como uma das formas de atenção aos sujeitos e como recurso terapêutico produtor de autonomia, na busca pela maior participação e responsabilização dos usuários em seu tratamento, além de representar um importante instrumento institucional.

 

AS ASSEMBLEIAS NO CAPS

Esse grupo foi pesquisado a partir do ano de 2012. A autora principal do artigo, ao entrar na instituição como psicóloga do CAPS, no final de 2011, já encontrou o grupo operante. Ele funcionava semanalmente e era coordenado por outras profissionais. À época, na tentativa de entender a dinâmica do grupo e da instituição, a autora questionou o que era o grupo. A resposta obtida foi a mesma entre os usuários e profissionais: "é o dia de lavar roupa suja"4. Percebeu-se, assim, através da ambiência e da observação, que o grupo funcionava para a resolução de conflitos entre os usuários e entre usuários e equipe, servindo também como espaço para a comunicação de informações referentes à instituição: regras, funcionamento e programações.

É importante salientar que, nesse momento, a instituição passava por algumas alterações. A equipe de profissionais que ali estava sofreu mudanças importantes e a instituição passou por um momento de transformação, com a chegada de uma nova equipe. Por vontade dos usuários e também da instituição, o grupo das Assembleias continuou a existir, também sofrendo modificações tanto na questão do enquadre – mudou de dia - quanto no seu modo operante, passando a ser coordenado pela autora, psicóloga, e pela terapeuta ocupacional, ambas novas na instituição.

O CAPS do município é um serviço de saúde comunitário que presta assistência às pessoas com transtornos mentais graves e severos, que necessitem de cuidados intensivos (BRASIL, 2002). A maioria dos usuários permanece em tempo integral na instituição que, através de sua equipe multiprofissional, oferece diversas atividades como: oficinas terapêuticas, consultas médicas, atividades comunitárias, acompanhamento medicamentoso e atendimento familiar, individual e em grupos.

As Assembleias são realizadas todas as sextas-feiras no período da manhã e a duração dos encontros é variável, em torno de uma hora, dependente do número de assuntos discutidos no dia, da disposição dos participantes e do próprio funcionamento do grupo a cada encontro. Os encontros são realizados no pátio do CAPS, tendo como proposta servir para a resolução de conflitos institucionais, conflitos interpessoais entre os usuários e técnicos, sugestões para as atividades institucionais, críticas, assim como para a programação dos eventos que sejam necessários. O grupo é aberto e não há obrigatoriedade em se expressar. As pautas são sugeridas pelos usuários e construídas pelos técnicos ao longo da semana, em reunião de equipe. A democracia é um conceito essencial e todas as falas são valorizadas, independentemente do conteúdo. Espera-se que, dessa maneira, todos tenham o direito de expor as ideias e opiniões e, igualmente, tenham a opção do silêncio. (JUNQUEIRA e CARNIEL, 2012).

Normalmente as coordenadoras iniciam o grupo com as boas-vindas e o convite à fala. A partir das participações, o grupo se desenvolve e a livre circulação de ideias é apreciada. Após as falas dos usuários, antes do término, as coordenadoras introduzem as pautas sugeridas pela equipe. O grupo possui poder de resolutividade, ou seja, as questões colocadas em pauta e votadas pelos participantes, passam a vigorar na instituição até que haja nova discussão. O CAPS conta com uma média de 40 usuários, porém a presença nas Assembleias é flutuante, em torno de 25, já que às sextas-feiras o serviço fecha às 14h e muitos aproveitam para não ir nesse dia, ou então fazem parte da modalidade semi-intensiva, não estando presentes no horário.

O ideal seria a participação de toda a equipe técnica no grupo mas, por questões institucionais, como o número pequeno de funcionários e outras atividades concomitantes, isso não acontece. Uma das técnicas de enfermagem, quando possível, participa, assim como a atendente em saúde (recepcionista) e a auxiliar de serviços gerais (quando solicitada pelos usuários). Apesar do desejo coletivo em abrir o grupo para a participação dos familiares, isso ainda não foi possível.

Na singularidade dos encontros nas Assembleias, há dias com muitas votações e decisões, como as questões referentes à alimentação e cardápio, roteiro dos passeios, mudança nas atividades, gerenciamento do dinheiro obtido através das oficinas de geração de renda; dias com discussões exaltadas devido às diferentes opiniões; dias nos quais surgem alguns desabafos e, ainda, dias nos quais é difícil manter o grupo devido às constantes interrupções por crises, agitações excessivas ou interferências externas.

Em conformidade com Junqueira, Carniel e Mantovani (2013), grande parte dos assuntos discutidos nos grupos está ligada ao funcionamento da instituição. O cardápio da marmita é uma pauta recorrente: há discussões sobre a repetição de alimentos, a falta ou exagero no tempero, o gosto pessoal relacionado à comida. Essa recorrência no assunto se justifica pelo fato da maioria dos usuários almoçarem na instituição durante os dias úteis e é vista de forma positiva, já que demonstra posicionamento crítico em relação às questões que os cercam.

(Trecho de uma assembleia) O usuário CL inicia o grupo dizendo ter uma reclamação quanto à marmita: quase todos os dias tem farofa. Burburinho. Alguns usuários dizem gostar da farofa, outros não. A usuária I propõe tirar a farofa para quem não gosta e dá o exemplo do macarrão, ela também não gosta e sempre vem. CL insiste quanto à frequência do acompanhamento e pergunta se não é possível que a sua marmita venha sem farofa. Todos falam ao mesmo tempo. I pede calma e diz que se cada uma fizer um pedido especifico sobre o que gosta e o que não gosta ficará inviável, cita o exemplo do outro restaurante -segundo ela excelente – onde eram feitos pedidos específicos: comida sem sal para os hipertensos, sem carboidratos para os diabéticos, com "carne mole" para os com dificuldade de deglutição e termina dizendo "ai ficou caro e a prefeitura mudou de restaurante, assim não dá gente". Após a discussão sobre a dificuldade em agradar a todos e a necessidade de adaptação, o assunto é encerrado tendo como proposta a equipe conversar com o restaurante e pedir um pouco mais de variedade no cardápio e cada um retirará o que não gosta do prato.

Muitas vezes o sofrimento psíquico reduz a possibilidade de atuação das pessoas, ao limitar a existência com a doença. O embotamento afetivo e o isolamento social, classificados como sintomas negativos, são bastante comuns em algumas doenças mentais (FONSECA, GALERA, 2012; BRISCHILIARI, WAIDMAN, 2012). Sendo assim, reclamar sobre uma necessidade básica como a alimentação, demonstra o empoderamento desses sujeitos, algo tão desejado nas ações de cuidado no campo da Saúde Mental.

Figueiro e Dimenstein (2010) apontam que, apesar dos avanços da Reforma Psiquiátrica, os usuários ainda seguem como espectadores nesse processo, sendo preciso a retomada do protagonismo. As Assembleias possibilitam essa apropriação pelo usuário, ao propor a efetiva participação na gestão do cotidiano da instituição.

Ainda segundo Junqueira, Carniel e Mantovani (2013), frequentemente os participantes se utilizam do grupo para contar sobre alguma notícia, novidade pessoal, ou ainda sobre as dificuldades pelas quais estão passando. Isso reafirma uma das dimensões do grupo, que é o compartilhamento de sentimentos e experiências, auxiliando na redução do isolamento social.

(trecho de uma Assembleia) A usuária I pede a palavra para informar uma boa notícia: conseguiu sua aposentadoria e será retroativa. Os usuários a cumprimentam, o grupo demostra animação e alegria. I conta que dará um presente para todos em comemoração, na festa dos aniversariantes do mês, ela fornecerá os refrigerantes e os salgadinhos. Os usuários agradecem e ficam empolgados com a novidade.

O trecho citado mostra o acolhimento propiciado pelo grupo e o seu caráter democrático, ao possibilitar falar sobre assuntos que talvez não tivessem espaço em outras modalidades de atendimentos. Observa-se o distanciamento no foco na doença: muitas vezes os assuntos relacionados à patologia se tornam centrais nos modos de vida e o grupo apresenta outras formas de relacionamento, considerando os aspectos saudáveis.

(Trecho de uma Assembleia ) Durante o grupo a usuária L, com uma fala bastante emocionada, conta que naquele momento está ouvindo vozes. "Abre o portão e se joga na frente do carro", diz. Chora e pergunta se os outros não estão ouvindo. O grupo, de forma bastante acolhedora, conversa com L. A usuária R não costuma falar no grupo e também nas demais atividades do serviço - sempre é lembrada nas assembleias por não cooperar e por ser "grosseira" com os demais. Nesse momento, de forma bastante gentil, pede para L permanecer ali junto de todos, pois irá passar. Após algumas falas a assembleia segue e L continua participando. Ao final conta que sua sobrinha está grávida e que todos na família estão felizes.

Ao tratar de um sintoma, mais uma vez o grupo demonstra a função de suporte e a possibilidade de ocupar diferentes papéis, como pode ser observado pela fala de uma das usuárias, tida como pouco colaborativa com os demais, ao demonstrar preocupação e afeto pelo outro.

As Assembleias possuem suas particularidades, como a variação no número de participantes e o número ilimitado de encontros, já que o grupo não apresenta previsão de término, sendo um equipamento permanente da instituição. É homogêneo, considerando que todos são usuários do serviço e apresentam algum tipo de transtorno mental, porém heterogêneo quanto ao diagnóstico e idade.

Há também algumas "regras", consolidadas ao longo do desenvolvimento do grupo, que caracterizam seu funcionamento. Por exemplo, nas situações que suscitam algum tipo de reclamação sobre determinada pessoa, sua presença é necessária, caso contrário a crítica não poderá ser feita. O grupo não tolera falar sobre quem não está presente no momento. A justificativa é a oportunidade das partes envolvidas argumentarem sobre o que está sendo dito.

Outra regra é a denominada pelos usuários como "punição", que está ligada a comportamentos negativos, como a falta de cooperação e o desrespeito. Essa avaliação é feita pelos próprios usuários. Os critérios são bastante subjetivos e há tolerância com os que não estão passando por crises. Quando há incômodo com a atitude de alguém, é colocada em pauta a punição e, após o tema ser discutido, é votado. A pessoa "punida" não participa do próximo passeio externo realizado mensalmente, decisão tomada pelo grupo. Apesar de não ter um critério claro, a "punição" foi proposta pelos participantes e revela um aspecto de organização para a instituição, uma tentativa de estabelecer regras para o convívio social. Alguns usuários apresentam comprometimentos devido aos diagnósticos, como a desorganização do pensamento. O grupo tenta organizar e estabelecer limites, cumprindo seu papel no que se refere à socialização e à inclusão social, ações necessárias na Saúde Mental, como apontam Junqueira, Carniel e Mantovani (2013):

(Trecho de uma Assembleia) Logo após o inicio do grupo, I diz ter uma reclamação sobre a usuária E: ela está muito desobediente e falta com respeito com os profissionais (no dia anterior E havia gritado com os membros da equipe). J relembra o episódio ocorrido no dia anterior onde E jogou todos os copos que estavam em cima do bebedouro no chão. Alguns usuários concordam e se expressam. As coordenadoras perguntam a E se ela gostaria de falar. Ela xinga e diz que não virá mais ao CAPS. Os usuários se assustam com o modo de falar. JL diz "que isso aqui está pior do que hospital psiquiátrico", as coordenadoras questionam o que JL quis dizer e ele se refere aos xingamentos de E e à repercussão provocada (alvoroço). Antes que pudesse terminar a fala, a usuária I interrompe e também reclama de JL que vem falando obscenidades para as mulheres do serviço. Após o "sermão", ela volta ao assunto inicial e propõe uma punição a E pelo "mau comportamento": não ir ao próximo passeio. O usuário CL pede para levantar a mão os que estiverem de acordo e a maioria concorda. E ouve tudo e depois se levanta, não quer falar.

Mesmo quando definida em Assembleia, uma "norma" sempre pode ser revista, como na citação acima. Embora o grupo tenha decidido que, em casos de "punição", a pessoa fica privada de sair no próximo passeio realizado pela instituição, se alguém questiona esta decisão, a "punição" é considerada e, em muitos casos, adiada, para que a "perda" não seja muito grande.

Como mais alguns benefícios das Assembleias, podemos apontar a possibilidade de um grupo se organizar e estabelecer normas de funcionamento, o que, em geral, favorece o grupo e seus participantes individualmente, a retomar suas possibilidades de existir de modo mais autônomo.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A reforma psiquiátrica trouxe avanços no tratamento e atenção às pessoas em sofrimento psíquico, mas precisa ser continuamente (re) pensada para que não perca a sua força e sentido originais, podendo reproduzir as formas de dominação e exclusão as quais se opõe.

Se, no auge do modelo hospitalocêntrico, os internos tinham seus desejos vetados, contidos e até embotados pela violência com a qual eram tratados, em tempos de Reforma Psiquiátrica, o esforço e orientação dos tratamentos é, na maioria das vezes, no sentido de restabelecer as possibilidades do paciente desejar, escolher e, consequentemente, se responsabilizar por suas escolhas.

Paradoxalmente, por não ser o espaço onde a doença seja o tema central, os participantes acabam por desenvolver recursos para enfrentamento dos limites que, inclusive foram impostos pela doença. Portanto, ao enfatizar os aspectos saudáveis nas exigências do cotidiano, a doença assume um papel secundário, dando lugar a experiência de empoderamento, o que por si pode ser terapêutico.

 

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1 Psicóloga do CAPS I e Interlocutora da saúde mental da cidade de Jaboticabal. Especialista em Regulação em Saúde no SUS pelo Ministério da Saúde e Instituto Sírio Libanês. Especialista em Psicologia Clínica, formação em Psicoterapias Analíticas Grupais e Coordenação de Grupos pela SPAGESP. Graduada pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - campus Assis. anameliajunqueira@hotmail.com
2 Psicóloga pela Universidade Federal de Uberlândia. Especialista, Mestre e Doutora pela Universidade de São Paulo. Docente da Universidade Paulista e SPAGESP. Formação em Coordenador de Grupo Operativo pelo Instituto Pichon- Riviére de Ribeirão Preto. carniel.cris@terra.com.br
3 Psicólogo Clínico, mestre e doutor pela FFCLRP-USP, membro da SPAGESP, professor colaborador da EERP-USP. mantovani.clinica@gmail.com
4 As palavras e frases utilizadas entre aspas nesse artigo referem-se às falas dos usuários do serviço. Pela importância dos termos para o entendimento da experiência descrita, optou-se por usá-las na forma em que foram ditas.

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