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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.12 no.1 São Paulo  2015

 

ARTIGOS

 

Grupo operativo com adolescentes em um núcleo da assistência social: a questão da identidade de gênero1

 

Operative group with teens at a social welfare center: the question of gender identity

 

Grupo operativo con adolescentes en un centro de asistencia social: la cuestión de la identidad de género

 

 

Manoel Antônio dos Santos2, I; Liliana Scatena3, II; Maria das Graças Carvalho Ferriani4, II; Rodrigo Sanches Peres 5, III

IFaculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo
II
Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo
III
Universidade Federal de Uberlândia (UFU)

 

 


RESUMO

Este estudo teve como objetivo compreender aspectos do vínculo terapêutico que emergiram no setting grupal, em uma experiência de grupos operativos com adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Foram realizados grupos operativos com adolescentesfrequentadores de um Núcleo da Assistência Social da Secretaria da Assistência Social de um município do interior do Estado de São Paulo. Participaram 10 adolescentes de ambos os sexos, na faixa etária de 10 a 15 anos. Os adolescentes foram atendidos em sessões com duração de 1h20 e frequência semanal, ao longo de 12 meses. O grupo era aberto e tinha como finalidade possibilitar aos participantes criar condições para refletir sobre os problemas encontrados em seu cotidiano, buscando estratégias mais apropriadas para obter as modificações necessárias para a resolução de seus dilemas. Observou-se que a identidade de gênero perpassa os conflitos emocionais que emergem no espaço grupal. O processo de aprendizagem em grupo levou à adoção de condutas alternativas diante de obstáculos que se apresentaram no processo grupal, favorecendo o rompimento com formas primitivas de sentir, pensar e agir apresentadas no início dos encontros.

Palavras-chave: grupo operativo; adolescentes; vulnerabilidade social; identidade de gênero; desenvolvimento psicossexual.


ABSTRACT

This study aimed to understand aspects of the therapeutic relationship that emerged in the group setting, in an experience of operative groups with socially vulnerable adolescents. Operative groups were held with teenagers who attended a Welfare Center of the Department of Social Welfare in a city in the state of São Paulo. A total of 10 male and female adolescents, aged 10-15 years, were treated in sessions lasting 1:20 a.m. on a weekly basis, over 12 months. The group was open and aimed to enable participants to create conditions to reflect on the problems encountered in their daily lives, seeking more appropriate strategies for the changes necessary to solve their dilemmas. It was observed that gender identity permeates the emotional conflicts that emerge in the group space. The group learning process led to the adoption of alternative conducts in view of obstacles that appeared in the group process, favoring the rupture with primitive ways of feeling, thinking and acting presented at the beginning of the meetings.

Keywords: operative group; adolescents; social vulnerability; gender identity; psychosexual development.


RESUMEN

Este estudio tuvo como objetivo comprender los aspectos de la relación terapéutica que surgió en el ambiente de grupo, en una experiencia de los grupos operativos con los adolescentes en situación de vulnerabilidad social. Grupos operativos se realizaron con los adolescentes asistentes a un Grupo de Asistencia Social del Departamento de Asistencia Social de un municipio en el estado de São Paulo. Un total de 10 adolescentes de ambos sexos, edad 10 a 15 años. Los adolescentes fueron tratados en sesiones que duran 1h20 y semanalmente, durante 12 meses. El grupo estaba abierto y tenía como objetivo permitir a los participantes a crear las condiciones para reflexionar sobre los problemas que encuentran en su vida cotidiana, buscando estrategias más apropiadas para los cambios necesarios para resolver sus dilemas. Se observó que la identidad de género atraviesa los conflictos emocionales que emergen en el espacio de grupo. El proceso de aprendizaje en grupo condujo a la adopción de las tuberías alternativas ante los obstáculos que aparecieron en el proceso del grupo, lo que favorece la ruptura con formas primitivas de sentir, pensar y actuar presentadas al inicio de las reuniones.

Palabras clave: grupo operativo; adolescentes; vulnerabilidad social; identidad de género; desarrollo psicosexual.


 

 

Introdução

Este estudo foi desenvolvido a partir da inserção da psicóloga na rede do Serviço Social a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, visando à prevenção de problemas de desenvolvimento e adaptação psicossocial. Nesse cenário de atuação profissional, um dos setores da personalidade que se mostram mais comprometidos é o âmbito das relações interpessoais.

Historicamente, a psicanálise se interessou por investigar as relações de objeto, de modo a compreender a maneira como cada indivíduo estabelece seus vínculos durante o processo de desenvolvimento. Pichon-Rivière (1998) desenvolveu um estudo orientado às relações interpessoais, campo que ele denominou de psiquiatria do vínculo. Nesse contexto, ainda segundo o autor, o grupo se afigura como uma ferramenta privilegiada para se investigar e intervir na constituição da trama vincular.

Pichon-Rivière (1998) concebe o grupo como um conjunto restrito de pessoas que, conectadas por invariantes de tempo e espaço, se propõem a realizar uma tarefa, que constitui a finalidade do grupo. Para tanto, as pessoas interagem entre si e partilham o que o autor chama de uma "mútua representação interna", que articula as constantes de tempo e espaço nas quais os indivíduos se situam. Para que o processo grupal possa deslanchar os indivíduos colocam em ato seus complexos mecanismos de adjudicação e assunção de papéis. Por adjudicação se entende entregar a outros o que é seu. E por assunção entende-se assumir para si o que é dos outros.

A tarefa empregada nas atividades grupais visa a promover a conscientização dos papéis sociais aprendidos e vivenciados pelos sujeitos. Tem-se em vista um processo de transformação pessoal e social, de tal modo que aquele que antes se colocava passiva e inconscientemente como reprodutor de papéis, demarcados pelo sistema social vigente, encontraria um lugar próprio, responsabilizando-se pelo seu estar no mundo de forma consciente e ativa (FERNANDES; SVARTMAN; FERNANDES; 2003).

Nessa direção, outro conceito valioso é o de "grupo interno", que consiste na reprodução ou recriação de objetos, relações e vínculos relativos a experiências passadas, geralmente associadas ao grupo primário de todos nós, que é a família.

Grupo operativo é um grupo centrado na tarefa e que deve preencher as três condições definidas pelos três "M", a saber: motivaçãopara a tarefa, mobilidade nos papéis a serem desempenhados e disponibilidade para efetuar as mudanças que se fazem necessárias. A tarefa que permitirá que o grupo se organize e articule suas forças pode ser a cura, se o grupo tiver finalidade terapêutica; ou a aquisição de conhecimentos, se for um grupo de aprendizagem.

O objetivo de todo Grupo operativo é mobilizar um processo de mudança, que implica na diminuição dos medos básicos da perda e do ataque. Esses medos são facilmente desencadeados quando o grupo se lança à sua tarefa. A atenuação gradual desses medos fortalece o grupo, levando-o a assumir o que Pichon-Rivière denomina de adaptação ativa à realidade, rompendo conservas e estereótipos e sobretudoredistribuindo papéis que foram adjudicados e assumidos. Esse processo implica também em elaborar lutos e vencer as resistências que se interpõem como reação à mudança.

A aprendizagem centrada nos processos grupais coloca em evidência a possibilidade de uma nova elaboração de conhecimento, de integração e de questionamentos acerca de si e dos outros (BECHELLI; SANTOS, 2001). Nesse sentido, aprender em grupo significa operar uma leitura crítica da realidade, uma abertura para as dúvidas e para as novas inquietações suscitadas por um desconhecido que não cessa de nos interpelar.

Considerando esses balizadores teóricos, este estudo teve como objetivo compreender aspectos do vínculo terapêutico que emergiram no settinggrupal, em uma experiência de grupos operativos com adolescentes em situação de vulnerabilidade social.

 

Método

Trata-se de um estudo de caso, considerando-se como "caso" o grupo operativo implementado. Este estudo é parte de um projeto de pesquisa mais amplo, que foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP-USP).

Foram realizados grupos operativos realizados com adolescentes frequentadores de um Núcleo da Assistência Social da Secretaria da Assistência Social de um município do interior do Estado de São Paulo. O público alvo eram adolescentes moradores de um bairro da periferia, na faixa etária de 10 a 15 anos de idade.

Os participantes eram adolescentes de ambos os sexos, com idades entre 10 e 15 anos, com perfis diferenciados quanto ao desempenho acadêmico e aos indicadores comportamentais, expressos pela presença ou ausência de dificuldades de socialização.

Os grupos ocorriam com duração de 1h20 e frequência semanal. O grupo foi composto por uma média de 10 adolescentes. Os encontros ocorreram de novembro de 2013 a novembro de 2014.

O grupo operativo caracterizou-se pela sua condição institucional, era aberto e tinha como finalidade possibilitar aos participantes obterem condições favoráveis para identificar e refletir sobre os problemas encontrados pelos adolescentes em seu cotidiano, buscando estratégias mais apropriadas para obter as modificações necessárias para a resolução de seus dilemas.

A partir de encontros grupais pretendia-se explorar o desenvolvimento da rede vincular dos participantes, por meio do mapeamento das relações afetivas estabelecidas por eles dentro e fora do contexto grupal. Dessa maneira, seria possível instrumentalizar os integrantes do grupo para uma prática de transformação de si, do grupo e do contexto social em que estavam inseridos (BECHELLI; SANTOS, 2005a; 2005b).

 

Resultados e Discussão

No decorrer do processo grupal foram trabalhados temas transversais, tais como: habilidades de comunicação, estratégias para manutenção da saúde, relações nos ambientes sociais (como escola, instituição e família), violência, adolescência e sexualidade.

Como vinheta clínica será apresentado um trecho de relato de sessão em grupo, no qual emergiu a questão da identidade de gênero entremeada com a violência interpares. Para preservar o anonimato dos participantes do grupo, todos os nomes próprios utilizados neste estudo são fictícios.

Psicóloga: Como as meninas se comportam e como os meninos se comportam?

Yago: As meninas não correm atrás de pipa e os meninos correm atrás de pipa.

Fernando: Tem menina que é mais safada e tem meninos que não.

Psicóloga: Se tem umas meninas que são e outras que não são, então não dá pra generalizar, porque não são todas que são safadas, não é mesmo?

Fernando: Não! Eu falei errado! Os meninos que são mais safados que as meninas!

Psicóloga: E o que você quer dizer com "mais safados"?

Fernando: Tipo: querer "Lepo, lepo, lepo, lepo".

Yago: Tipo o Fernando, que pensa nisso todo dia, né, Fernando safadinho.

Psicóloga: Mas essa é só a visão do Fernando? De quem mais?

Yago: Não sei mais.

Psicóloga: E você, Melina? O que é ser homem pra você?

Melina faz gestos com as mãos, indicando que não sabe responder.

Fernando: O Joabson não é homem.

Psicóloga: Por que ele não é homem?

Fernando: Porque ele tem um jeito, sabe... meio assim... [fala quebrando a mão, "desmunhecando"]

Yago: Só porque ele não gosta de jogar bola, fazer as coisas...

Fernando: Mais ou menos, mais ou menos.

Psicóloga: O que é jeito de homem, então?

Fernando: O jeito que ele anda, sabe.

Psicóloga: Que jeito que homem tem que andar?

Yago: Homem tem que andar assim ó.

Psicóloga: O que mais? Quem ensinou pra vocês o que é ser homem e o que é ser mulher?

Yago: O mundo.

Melina: Mãe e pai.

Psicóloga: Em que momentos que a mulher pode ser discriminada? Por exemplo, as pessoas acham que a mulher tem força?

Yago: Não.

Fernando: Elas têm.

Psicóloga: Isso pode ser uma forma de discriminação? Pensar que não pode trocar o pneu de um carro, por exemplo?

Yago: A mulher é forte, mas o homem é mais forte.

Fernando: Tem umas que são mais fortes que eu, mas é só corpo, de força não tem nada. Tia, você sabia que a Ana Clara tomou um pau da Melina?

Yago: Tomou logo três socão na cara.

Melina não se manifesta a respeito.

Psicóloga: E quando o homem é discriminado?

Fernando: Tipo, quando uma menina chega no Yago, se ele não topa ficar com ela, mesmo que a menina é feia e tal, acham que ele éboiola.

Psicóloga: Ah, se ele não der em cima da menina, ele é discriminado, vão achar que ele é gay?

Yago: Aconteceu com o Leandro, ele foi forçado a ficar com uma menina que é mó feia.

Psicóloga: E então, isso é legal? Vocês acham que é legal ter que ficar com a menina se sentindo obrigado?

Melina: Os meninos são mais chatos.

Fernando: Não são, não!

Yago: O Fernando é!

Psicóloga: E a gente sabendo conviver com a diferença, qual seria o certo? Não ficar xingando porque o outro é diferente de mim? Você está se escondendo de mim, Joabson?

Depois do comentário de Fernando ele nitidamente se fechou e não participou mais da discussão da roda de conversa.

Melina: Ele está fazendo coisinhas.

Psicóloga: O que é uma pessoa bonita? O que é uma mulher bonita? O que é um homem bonito?

Os meninos riem.

Psicóloga: Os meninos não podem achar homem bonito?

Fernando: Não pode fazer isso, não. O cara até te mata de tanto te bater!

A formação da identidade de gênero ocorre em um contexto de progressivo relacionamento, desde que "as mães tendem a vivenciar suas filhas como mais parecidas com elas, e delas inseparáveis" (Gilligan,1982a, p. 150). Por isso mesmo, as meninas, ao se identificarem como femininas, sentem-se como suas mães, com isso fundindo a experiência de apego com o processo de formação da identidade. Por outro lado, "as mães vivenciam seus filhos como o contrário masculino", e os meninos, ao se definirem como masculinos, separam suas mães de si mesmos, diminuindo assim "o seu amor primário e o senso de vínculo empático" (Gilligan,1982b, pp. 166-167).

Nancy Chodorow (1978) introduziu uma dimensão importante no debate feminista. A autora apontava a capacidade de maternarcomo a mais importante distinção na educação de crianças do sexo feminino e masculino. Às meninas eram transmitidos os princípios damaternagem, do cuidar dos outros, como etapa preparatória de suas futuras funções maternas (MORAES, 2011, p. 418). A autora argumenta que, de acordo com as teorias psicanalíticas, as diferenças de sexo nas experiências iniciais de individuação e relacionamento "não significam que as mulheres tenham fronteiras do ego mais fracas que os homens, ou que sejam mais propensas à psicose". Pelo contrário, isso significa que "as meninas saem com uma base mais forte para sentir as necessidades ou sentimentos de outrem como seus próprios. Além do mais, as meninas não se definem em termos de negação dos modos relacionados à etapa pré-edípica no mesmo grau em que o fazem os meninos. Como são cuidadas por uma pessoa do mesmo gênero, as meninas sentem-se como menos diferenciadas do que os meninos, como mais contínuas e relacionadas com o mundo objetal externo, e também como diferentemente orientadas ao seu mundoobjetal interior" (Chodorow, 1978, p. 167).

Para os meninos e homens, a operação de separação e individuação acha-se criticamente vinculada à identidade de gênero, visto que a possibilidade de se diferenciar do objeto materno constitui um passo essencial para o desenvolvimento da masculinidade. Uma vez que a masculinidade se define por meio da separação, enquanto que a feminilidade se define por meio do apego, a identidade de gênero masculina é ameaçada pela intimidade, ao passo que a identidade de gênero feminina é ameaçada pela separação. Assim é que os homens tendem a ter dificuldades com os relacionamentos, com o plano da intimidade relacional, enquanto que as mulheres tendem a ter problemas com a individuação. Nessa concepção teórica, a incapacidade das mulheres de se separar torna-se, assim, por definição uma incapacidade de se desenvolver.

As teorias da psicologia desenvolvimental buscam esclarecer o desenvolvimento da criança no limiar da infância e adolescência. Piaget (1896-1980), citado por Gilligan (1982), sugere que a criança começa a descobrir, por meio do pensamento, um universo mais amplo de possibilidades. O momento da pré-adolescência é captado pela conjunção de pensamento operacional formal com uma descrição do eu ainda ancorado nos parâmetros factuais do seu mundo infantil. Segundo Erikson (1950-1987), também mencionado por Gilligan (1982), a aptidão da criança de pensar sobre o pensamento e raciocinar de um modo lógico a isenta da dependência da autoridade e lhe permite encontrar, por si mesma, as soluções para os problemas que vivencia.

Kohlberg (1992), que foi professor na Universidade de Chicago e em Harvard, especializou-se na investigação em educação e argumentação moral, sendo mais conhecido pela sua teoria dos níveis de desenvolvimento moral. Muito influenciado pela teoria do desenvolvimento cognitivo de Piaget, o trabalho de Kohlberg refletiu e desenvolveu as ideias de seu predecessor, ao mesmo tempo criando um novo campo na psicologia: a teoria sobre o desenvolvimento do raciocínio moral. O autor se dedicou ao estudo da capacidade para aplicar a lógica dedutiva na solução de dilemas morais, diferenciar modalidades de lei e perceber que as leis podem conter enganos. Desse modo, o autor aponta para a concepção de justiça elaborada sobre princípios, o que seria esperado na maturidade moral.

Sobre a suposta incapacidade de pensar por si mesma da menina, seguindo a lógica de pensamento do autor, Melina, adolescente que aparece no relato de sessão apresentado, provavelmente estaria considerando que a opinião dela poderia causar uma desestabilização do grupo, perturbando assim o relacionamento interpessoal. Kohlberg (1992) defende que a mulher procura atender às expectativas da sociedade e tende a preservar a "família", aqui representada na voz dos meninos do grupo. Mas Melina não corresponde aos estereótipos de mulher frágil. Estes foram questionados por seus colegas, ao relatarem uma briga com outra menina e a demonstração crua e explícita de força física. Porém ela se absteve de manifestar sua opinião sobre essa percepção dos garotos, o que corrobora a teoria de que a mulher prima pela preservação dos relacionamentos, pois se percebe pertencente a um mundo de relações humanas em vez de um sistema de regras.

Assim como o menino confia nas convenções da lógica para deduzir a solução desse dilema moral, presumindo que essas convenções são consensuais, a menina confia em um processo de comunicação, presumindo os laços afetivos e acreditando que sua voz será ouvida. Se considerados, à luz da definição de Kohlberg dos estágios e sequências do desenvolvimento moral, os julgamentos morais nela parecem estar abaixo daquele dos meninos.Parece que a mulher tem uma relutância em desafiar a autoridade ou examinar a lógica das verdades morais recebidas, ao considerar que a ação de confrontar a opinião dos meninos ("as meninas são fortes, mas os homens são mais") seria uma solução violenta de conflito. Então a saída seria não confrontar a opinião de que ela sabe que é forte, mas não sem protestar: "os meninos são chatos", então não vale a pena perder tempo em explicar isso a eles.

A crença restauradora da menina na atividade dos cuidados leva Melina a ver os atores do dilema não como adversários, mas como membros de uma rede de relacionamentos de cuja continuidade todo dependem. Seria para "o bem geral de todos" que a paz permanecesse reinando no grupo. A menina fica muito mais presa ao objetivo de fortalecimento em vez do rompimento dos laços afetivos.

Porém Gilligan (1982) refuta a teoria de Kohlberg, ao dar o exemplo da pesquisa que coloca a suposta "fuga ao dilema" da menina pesquisada. Na verdade, segundo a autora, isso seria, em outros termos, um reconhecimento do problema e uma busca de solução mais adequada. Gilligan conclui dizendo que o pesquisador não vê o que a menina vê, uma vez que as respostas femininas estariam fora do domínio da moral. Ou seja, tanto as crianças do exemplo dado pelo autor, quanto as crianças do relato da sessão do grupo operativo, são inteligentes e perceptivas sobre a vida, embora de diferentes modos, o que exige diferentes modos de entendimentos da moral, diferentes modos de pensar sobre conflito e a escolha.

O grupo operativo se articula por meio da dinâmica dos três "D": depositado, depositário e depositante. Quando um membro do grupo afirma que "as meninas são fortes, mas os homens são mais", ele não só está validando um estereótipo de gênero, como também está assumindo uma posição de depositante, ou seja, aquele que, não podendo assumir determinada característica sua (por exemplo, a fragilidade), a deposita em alguém que é o depositário.

Quando Fernando declara que se Yago não "topar" ficar com uma determinada menina que se interessa por ele, mesmo que essa menina seja feia ou que não seja o seu tipo, a turma vai achar que ele é "boiola". Fernando está assumindo uma posição de depositante, projetando no colega uma característica ou atitude que, provavelmente, o incomoda, levando-o a querer se livrar desse desconforto. Yago se converte então no depositário, aquele que recebe (podendo ou não assumir) o depositado, isto é, a característica "negativa" que lhe foi imputada ou adjudicada.

 

Considerações Finais

Na medida em que os adolescentes vivenciam o processo de aprendizagem em grupo, aprendem a conversar sobre suas vivências, fazem observações interessantes acerca de seu cotidiano e debatem as relações com o grupo de pares. A possibilidade de criar aberturas para a reflexão pode conduzir à adoção de condutas alternativas diante de obstáculos que se apresentam como processos obstrutivos à consumação da tarefa grupal (BECHELLI; SANTOS, 2005a; 2005b).

Quando o grupo se põe a debater a questão da adolescente que não correspondia aos estereótipos de mulher frágil, apareceu no grupo a representação "as meninas são fortes, mas os homens são mais". Momentos como esse, vivenciados no grupo, indicam que a tendência a reproduzir mecanicamente os estereótipos de gênero pode ser uma das áreas mais fecundas para instaurar o processo crítico-reflexivo no trabalho em grupo.

Com a evolução do processo grupal notou-se o gradual descolamento em relação a formas estereotipadas de pensar, sentir e agir, apresentadas em profusão nos primeiros encontros grupais. Não por acaso houve um forte incremento da interação grupal.

Os adolescentes integrantes do grupo se mostraram mais perspicazes e perceptivos em relação às expressões da diversidade humana, reconhecendo paulatinamente a complexidade e a pluralidade que caracteriza a vida social e comunitária na era contemporânea. Embora apresentassem diferentes modos de entendimento sobre o que é ser homem e o que é ser mulher, bem como distintos modos de pensar sobre seus conflitos e suas escolhas, os adolescentes passaram a se perceber como protagonistas e agentes de sua própria mudança.

 

Referências

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1 Agência financiadora: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
2 Psicólogo. Professor Associado 3 do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Coordenador do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-USP-CNPq). Membro do Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - GRATA (HC-FMRP-USP). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq Nível 1B. Membro Efetivo e ex-Diretor Científico da SPAGESP. E-mail: masantos@ffclrp.usp.br
3 Psicóloga. Doutoranda em Ciências pelo Programa Interunidades de Doutoramento em Enfermagem da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Membro Efetivo e Presidente da Sociedade de Psicoterapias Analíticas Grupais do Estado de São Paulo - SPAGESP. E-mail: lilis@usp.br
4 Enfermeira. Livre-docente em Saúde Pública - Saúde da Criança e do Adolescente. Professora Titular do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto - Universidade de São Paulo. E-mail: caroline@eerp.usp.br
5 Psicólogo. Professor Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Membro do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-USP-CNPq). E-mail: rodrigosanchesperes@yahoo.com.br

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