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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.12 no.2 São Paulo dez. 2015

 

ARTIGOS

 

Tirar leite das pedras

 

Taking milk from stones

 

Quitar leche de las piedras

 

 

João Carlos Melo1

Sociedade Portuguesa de Grupanálise e Psicoterapia Analítica de Grupo

 

 


RESUMO

As psicoterapias em geral têm-se debruçado, sobretudo, sobre as vivências (emoções, sentimentos, estados mentais) negativas, em detrimento das positivas. Esta posição deriva de serem aquelas as que requerem intervenções terapêuticas específicas. O autor valoriza as vivências positivas e o seu papel promotor da saúde, do bem estar e da resiliência. E defende que a Grupanálise pode ser mais terapêutica se considerar o seu potencial e a sua importância num funcionamento mental mais saudável.

Palavras-chave: Grupanálise. Vivências. Emoções positivas. Resiliência.


ABSTRACT

In general, psychotherapies have mostly been dealing with the negative inner experiences (emotions, feelings, mental states), in detriment of the positive ones. This position originated from being the ones to require specific therapeutic interventions. The author values the positive inner experiences and their role on promoting health, well-being and resilience. He also defends that Groupanalysis can be more therapeutic if you consider its potencial and importance for a healthier mental functioning.

Keywords: Groupanalysis. Inner experiences. Positive emotions.. Resilience.


RESUMEN

Las psicoterapias en general se han debruçado, sobre todo, sobre las vivencias (emociones, sentimientos, estados mentales) negativas en detrimento de las positivas. Esta posición deriva de ser aquellas las que requieren intervenciones terapéuticas especificas. El autor valora las vivencias positivas y su papel promotor de salud, del bien estar y de la resiliencia. Y defiende que la Grupanalis puede ser más terapéutica si considerar su potencial y su importancia en un funcionamento mental más saludable.

Palabras-clave: Grupanalisis, vivencias, emociones positivas, resiliencia.


 

 

É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração

Mas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
É preciso um bocado de tristeza
Senão, não se faz um samba não

Vinícius de Moraes

 

Pois é, a alegria e a tristeza são as duas faces da mesma moeda.

Num certo sentido nós, seres humanos, somos de facto muito ricos pois possuímos muitas destas moedas. Elas constituem aquilo que poderíamos, convencionalmente, designar por "vivências", dado que não existe um consenso sobre a definição de conceitos como sentimentos, emoções ou estados mentais. Designemo-las, pois, por vivências.

Talvez esteja certo dizermos que a alegria é uma vivência positiva e a tristeza uma negativa. Isto porque a alegria proporciona-nos bem estar, boa disposição e deixa-nos mais felizes, e a tristeza provoca-nos estados contrários. No entanto, a alegria nem sempre é genuína e, por vezes, é uma forma de agirmos em "fuga para a frente". A tristeza, por seu lado, nem sempre nos faz mal, no sentido em que pode permitir-nos que estejamos mais perto de nós próprios.

Por esta razão colocarei aspas na qualificação das vivências.

Vejamos, a título de exemplo, um conjunto de vivências, para desenvolver a ideia deste trabalho.

Nesse sentido, podemos considerar como "positivas" a alegria, o entusiasmo, o otimismo, a felicidade, a esperança, o perdão, a bondade, o amor, a coragem, a gratidão e a resiliência, e como "negativas" a tristeza, a raiva, a dor, o sofrimento, os conflitos, a inveja, a maldade, a destrutividade e os medos.

As vivências "positivas", não sendo problemáticas em si mesmas, não constituem um alvo para as diferentes terapias existentes. Esse alvo é constituído pelas vivências "negativas". É isto que tem lógica e é assim que as coisas têm acontecido.

Mas tentemos aproximar-nos mais da intimidade dessas coisas. Ao justificar a adoção do termo "análise" na construção da palavra "psicanálise", Freud (1918) fê-lo assim:

"Porquê "análise", que significa fracionamento, decomposição e sugere uma analogia com o trabalho efetuado pelo químico com as substâncias que encontra na natureza e leva para o laboratório" (FREUD, 1918. p. 173)

E, depois, acrescentou:

"... à medida que analisamos e eliminamos as resistências, ela (a mente) se unifica, e (…) a psicossíntese é, desse modo, atingida durante o trabalho analítico sem a nossa intervenção, automática e inevitavelmente." (FREUD, 1918. p. 173).

E numa outra circunstância afirmou ainda:

"Haverá muito a ganhar se conseguirmos transformar o seu sofrimento histérico numa infelicidade comum".

"Com uma vida mental restituída à saúde, você estará mais bem armado contra essa infelicidade". (FREUD, 1893, p.316).

Subjacente a estas ideias está a noção de que a dimensão terapêutica vai, por assim dizer, apenas até certo ponto, cabendo depois ao analisando, e já não à análise, a luta contra a "infelicidade comum"… ou a luta pela felicidade.

Por outro lado, não será alheio àquela noção o fato de que, embora não negligenciasse a vertente terapêutica, a motivação mais profunda de Freud foi a construção, a luta pela sobrevivência e a expansão da própria psicanálise.

Mas a Psicanálise foi evoluindo, como foram evoluindo conceitos e dimensões terapêuticas como o insight, a perlaboração e a mudança. É importante, contudo, observar que, em muitos casos, as mudanças não são automáticas; é necessário que os insights se traduzam em novos comportamentos e que estes sejam praticados e repetidos. A prática e a repetição são, assim, fundamentais na análise, fora da análise e depois da análise.

Nesse sentido, Leo Rangel (1981) defendeu a ideia de uma "responsabilidade do insight", atitude ativa do analisando em empreender novos padrões de comportamento adquiridos através do insight.

Ainda assim, o alvo continua a ser, prioritariamente, o conjunto das vivências "negativas", e não as "positivas". E isto acontece também com outras formas de terapia. E também com a Psiquiatria.

Vaillant (2008), por exemplo, fez notar que, das 500 000 linhas de texto do "Comprehensive Textbook of Psychiatry", apenas cinco se referem à esperança, uma à alegria e nenhuma à fé, à compaixão, ao perdão ou ao amor. De qualquer forma, é justo salientar o fato de que alguns autores psicanalíticos terem, ao longo do tempo, valorizado as vivências "positivas". O amor (Freud), a gratidão e o perdão (Melanie Klein), o brincar (Winnicott) e a fé (Bion) são apenas alguns de muitos exemplos.

E, mais recentemente, foi editado por Salman Akhtar (2009) um livro ("Good feelings - psychoanalytic reflections on positive emotions and attitudes") que aborda o entusiasmo, a coragem, o altruísmo, a fé, o tato, o amor, a amizade, o humor, a criatividade, a resiliência, a expiação, o perdão é a bondade.

No entanto, a ênfase continua a ser nas vivências "negativas". Talvez a influência de Freud ainda se faça sentir. Ele tinha uma visão pessimista da natureza humana, e, em 1930, afirmou:

"… que um homem pense ser ele próprio feliz, simplesmente porque escapou à infelicidade ou sobreviveu ao sofrimento, e que, em geral, a tarefa de evitar o sofrimento coloque a de obter prazer em segundo plano" (FREUD,1930, p.85).

As vivências "positivas", por seu lado, não têm sido suficientemente valorizadas e têm sido até esquecidas. Talvez a razão subjacente seja a que repousa sobre o pressuposto de que, resolvidos os problemas, cada pessoa será capaz de, natural ou automaticamente, fazer o melhor uso delas.

Esse pressuposto encontra-se bem traduzido no testemunho de Graham Music, Associate Clinical Director of the Child and Family Department da Tavistock Clinic. A ideia que lhe foi transmitida no início da sua vida clínica era expressa na seguinte frase: (o trabalho de psicoterapia analítica consistia em) look after the negative, and the positive will look after itself.

A questão é que isso não é verdade. As vivências "positivas" precisam de ser identificadas, reconhecidas e desenvolvidas.

Uma das áreas de conhecimento e intervenção terapêutica que mais e melhor o tem feito é a Psicologia Positiva. É certo que a Psicologia Positiva não atua nas vivências "negativas" e tende até a desvalorizá-las e mesmo a negligenciá-las. Esse fato transforma-a, em meu entender, numa terapia incapaz de resolver problemas, dificuldades e conflitos, sobretudo aqueles que derivam de motivos e fatores inconscientes, e desse modo, como terapia, é muito incompleta e precária. Mas no que diz respeito às vivências "positivas", a sua capacidade para as valorizar e fazê-las desenvolver pode constituir uma fonte importante de inspiração e ensinamentos.

Esta Psicologia tem conseguido, através de técnicas e exercícios específicos, desenvolver e melhorar, de fato, as vivências "positivas".

E o que inúmeros estudos evidenciam é que o resultado é uma melhoria clara do bem estar geral, da saúde e do funcionamento cognitivo, emocional e relacional. Como?

Através da ativação do sistema imunitário; através do aumento da libertação de endorfinas e da ocitocina, proporcionando prazer, bem estar e confiança; e através da estimulação de vias dopaminérgicas específicas, proporcionando um aumento da curiosidade, do interesse, da busca e do prazer.

E, se é verdade que, nesta área, existem autores obscuros ou de idoneidade científica e humana duvidosas, outros há, mais credíveis, que se têm dedicado ao tema.

Entre muitos, das áreas da psicoterapia analítica e das neurociências, cito os seguintes: George Vaillant (2008), Jaak Panksepp (2006), Allan Schore (2011) e Daniel Siegel (2007 e 2009).

Considerando e seguindo todas estas ideias, o que será suposto, como grupanalistas, fazermos?

A resposta é simples, na minha opinião. O que devemos continuar a fazer é ANÁLISE, e mais nada.

Mas considero que a Grupanálise pode ser mais terapêutica se, ao longo de cada análise, existirem momentos de alegria, humor e reforços positivos. E que isso seja assumido e "oficializado", isto é, que não seja sentido, sobretudo pelos analistas em formação, como uma quebra das regras ou como uma atitude não analítica.

Quando sistematizou o seu conceito de Padrão, Eduardo Luis Cortesão (1989) considerou a pessoa do analista como uma importante dimensão da "Natureza do Padrão"

Neste sentido, quando o otimismo, a gratidão, a esperança, o entusiasmo e o amor constituem componentes da natureza do Padrão, isto é, quando estas dimensões estão impregnadas nas atitudes do analista, elas serão internalizadas pela matriz do grupo, e poderão expandidas e potenciadas, porque as emoções são contagiosas.

Acredito também que as vivências "positivas" podem funcionar como fatores promotores e constitutivos da resiliência.

O povo Brasileiro (a quem, através dos colegas presentes no Encontro Luso-Brasileiro de Grupanálise e Psicoterapia Analítica de Grupo, prestei homenagem) tem uma expressão que traduz de forma feliz o que é a resiliência: Tirar leite das pedras.

 

REFERÊNCIAS

AKHTAR, SALMAN. Good feelings - psychoanalytic reflections on positive emotions and attitudes. Karnac Books. London, 2009.         [ Links ]

BURGDORF, J.; PANKSEPP, J. The neurobiology of positive emotions. Neuroscience and Biobehavioral Reviews. 30, 2006, 173–187.

CORTESÂO, E. L. Grupanálise – teoria e técnica. Edição Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa, 1989.

FREUD, S. (1918) – Linhas do progresso na terapia psicanalítica. In: Ed. Standard Brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Imago Editora. Rio de Janeiro: Imago, 1969. V. XVII, p. 173.

FREUD, S. (1893) – A psicoterapia da histeria . In: Ed. Standard Brasileira das obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v. II, p.316.

FREUD, S. (1930) – O mal estar na civilização. In: Ed. Standard Brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Imago Editora. Rio de Janeiro: Imago, 1969, v. XXI, p. 5.

RANGEL, L. From insight to change. Journal of the American Psychoanalytic Association. 29:119-141, 1981.         [ Links ]

SCHORE, A. Joy and fun. Gene, neurobiology and child brain development. Psychotherapy.net. 2011.         [ Links ]

SIEGEL, D. The mindful brain: Reflection and attunement in the cultivation of well-being. W. W. Norton, 2007.         [ Links ]

SIEGEL, D. The healing power of emotion. W. W. Norton, 2009.         [ Links ]

VAILLANT, G. Positive emotions, spirituality and the practice of Psychiatry. Mens sana monogr. 2008 Jan-dec: 6 (1): 48–62.

 

 

1 Médico e grupanalista. Membro da Sociedade Portuguesa de Grupanálise e Psicoterapia Analítica de Grupo. Email: jcmelo4@gmail.com

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