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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.12 no.2 São Paulo dez. 2015

 

ARTIGOS

 

Ato e palavra no contexto da ética, Ato e não-palavra na via do consumo1

 

Act and word in the context of ethics Act and non-word on the route of consumption

 

Acto y palabra en el contexto de ética Acto y no palabras en la ruta del consumo

 

 

Esperidião Barbosa Neto2

Universidade Federal de Alagoas

 

 


RESUMO

Este artigo trata da ética da psicanálise diante do mundo globalizado e consumista. Ato e palavra são pensados como inerentes ao humano, cujo vínculo de um ao outro representa o movimento do sujeito na sua constituição. Por outro lado, a exacerbação do consumo compromete a estrutura psíquica. Nosso objetivo é articular a ética da psicanálise ao consumismo da nossa época, considerando o paradoxo da desaceleração do consumo como risco. A partir de um texto encenado no teatro, e uma publicação sobre ele, situaremos o ato e a palavra no contexto da ética da psicanálise; em seguida, observaremos os riscos do consumo exacerbado na atualidade e seus efeitos sobre a estrutura psíquica do sujeito; por último, situaremos a ética, por um lado, e o consumismo, por outro, para levantar uma questão paradoxal: a inibição do consumo também pode ser uma ameaça à organização psíquica. Nossa posição é de que o ter, na via do consumo, restringe-se ao aqui e agora, enquanto o ser, no contexto da ética, realiza-se no tempo do sujeito.

Palavras-chave: ética da psicanálise; ato; palavra; consumo; sujeito.


ABSTRACT

This article is about the ethic of psychoanalysis in a globalized and consumerist world. Act and word are thought of as inherent in the human, which bond to each other represents the movement of the subject in its constitution. In addition, the exacerbation of consumption compromises the psychic structure. Our goal is to articulate the ethics of psychoanalysis to consumerism of our age, considering the paradox of deceleration in consumption as a risk. From a text enacted in the theater, and a publication about it, we will place the act and the word in the context of psychoanalytic ethics; then observe the risks of exacerbated consumption at the present time and their effects on the psychic structure of the subject; Finally, we will place the ethics on the one hand, and consumerism, on the other, to raise a paradox question: inhibition of consumption can also be a threat to the psychic organization. Our position is that to have, on the path of consumption, is limited to the here and now, as to be, in the context of ethics, is taken place on the subject's time.

Keywords: ethics of psychoanalysis; act; word; consumption; subject.


RESUMEN

Este artículo se ocupa de la ética del psicoanálisis ante un mundo globalizado y consumista. Acto y palabra son considerados como inherentes al ser humano, cuyo vínculo entre sí representa el movimiento del sujeto en su constitución. Además, la exacerbación del consumo compromete la estructura psíquica. Nuestro objetivo es articular la ética del psicoanálisis al consumismo de nuestros tiempos, considerando la paradoja de la desaceleración del consumo como un riesgo. A partir de un texto que fue montado en el teatro, y una publicación sobre el mismo, vamos a colocar el acto y la palabra en el contexto de la ética del psicoanálisis; luego observar los riesgos del consumo exacerbado de la actualidad y sus efectos sobre la estructura psíquica del sujeto; finalmente, colocamos la ética, por una parte, y el consumismo, por otro, para plantear una cuestión paradójica: la inhibición del consumo también puede ser una amenaza para la organización psíquica. Nuestra posición es que tener, en el camino del consumo se limita al aquí y ahora, mientras ser está en el contexto de la ética, se realiza en el tiempo del sujeto.

Palabras-clave: ética del psicoanálisis; acto; palabra; consumo; sujeto.


 

 

INTRODUÇÃO

A clínica psicanalítica testemunha, na atualidade, a situação do sujeito na sua relação com o consumo. No cotidiano, observamos a retração do poder aquisitivo das pessoas, em consequência, a desaceleração do consumo; nossa prática clínica constata um certo enfraquecimento da estrutura psíquica como efeito dessa questão social. Vemo-nos diante de um problema: assim como o consumismo tende a coisificar o sujeito, a inibição desse consumo não o emancipa. Esse é um desafio para a psicanálise do Século XXI.

Diante desse quadro, nosso objetivo é pensar a ética no contexto da psicanálise, articulando-a ao consumismo, levando em conta o paradoxo da desaceleração do consumo que põe o sujeito em situação de risco do ponto de vista psíquico. Utilizaremos, para a nossa reflexão, um texto encenado no teatro e uma publicação brasileira sobre ele, esta situando o ato e a palavra no contexto da ética da psicanálise; em seguida, observaremos os riscos do consumo exacerbado na atualidade e seus efeitos sobre a estrutura psíquica do sujeito; por último, situaremos a ética, por um lado, e o consumismo, por outro, para levantar uma questão paradoxal: a inibição do consumo também pode ser uma ameaça à organização psíquica. Nossa posição é de que o ter, na via do consumo, restringe-se ao aqui e agora, enquanto o ser, no contexto da ética, realiza-se no tempo do sujeito.

 

ATO E PALAVRA NO CONTEXTO DA ÉTICA

Para refletir a respeito da questão sobre a qual nos ocupamos, utilizaremos, como suporte, o texto Le Profe, do dramaturgo belga Jean-Pierre Dopagne. Ele foi encenado em vários países, no Brasil com o nome de Prof! Profa!, em 2013, pela atriz Jandira Martini, dirigida por Celso Nunes (DOPAGNE, 2013).

A obra conta a história de uma menina que sonhava em ser professora. Havia um obstáculo, seus pais, humildes agricultores, eram muito pobres para lhe proporcionar educação de qualidade. Ainda assim, esforçaram-se, pondo a jovem em escola privada. Ela fez jus ao sacrifício, avançou nos estudos. Pesquisou, com esmero e paixão, sobre os grandes autores da literatura, refletindo a respeito das mais importantes obras para a humanidade.

Na medida em que se aprofundava nas interpretações literárias, a estudante não apenas elevava seu gosto pela vida, ela alimentava o sonho de compartilhar aqueles conhecimentos com seus futuros alunos. Uma vez formada, juntou suas expectativas, a coragem, disposição e material didático, pondo-se ao exercício da nova função.

Contudo, não levou muito tempo e o sonho definhou, cedeu lugar à decepção. Os alunos não apenas demonstraram falta de interesse pelos grandes mestres, tanto quanto pelo conteúdo de suas obras, negando-se à reflexão, a ignorância deles funcionava como tentativa de destituição de qualquer saber, sobretudo o esforço da sua transmissão. Havia falta de atenção generalizada, banalização do conhecimento, desrespeito pela dignidade do professor. Indiferença, hostilidade, ofensas apontavam o descompasso entre o sonho da professora e a realidade da sala de aula.

Diante das circunstâncias, a jovem professora foi acometida de um surto, metralhou todos os alunos. Tendo sido julgada e condenada, recebeu uma pena inusitada: recolhida ao presídio, deveria ir ao teatro, todas as noites, lá contar sua história, a história do ato.

Em dezembro de 2014 foi publicado, no Brasil, um artigo sobre o texto do autor belga, com o título de Preso pelo ato, condenado à palavra: um olhar psicanalítico (BARBOSA NETO; PASSOS, 2014). Essa publicação articula o ato à palavra. Seus autores serviram-se dos escritos de Freud e de Lacan para explicar o ato como expressão de afetos não representados, classificando-os desde os mais aparentemente despropositados aos literalmente destruidores: os que falham, aqueles que imperam e os atos que destroem.

No artigo, a expressão "preso pelo ato" tem duplo sentido. Preso, por ter cometido o ato; preso, por estar ligado a ele como destino. O vocábulo Palavra aparece como trabalho de elaboração, cuja repetição pode emancipar o sujeito em relação ao ato, absolvendo-o.

"Preso pelo ato e condenado à palavra", é o destino de todo sujeito. Como ser de linguagem, sua tarefa é se esforçar, durante a existência, no sentido de se apropriar da palavra. "Cada homem se encontra preso pelo ato", diz o texto. E, cintando Lacan: "estamos feitos desse ato x pelo qual o nó já está feito" (LACAN, 1974-1975, p. 153). Continua o texto: "cada um, tendo se inserido na ordem da linguagem, há que pagar um preço: recorrer à palavra, passar a vida fazendo uso dela, ainda que [ela] não dê conta, não seja suficiente para dizer tudo. Somente assim o ato perde sua consistência" (BARBOSA NETO; PASSOS, 2014. P. 45)

Servimo-nos do material avaliado, até aqui, para contextualizar a ética do desejo. A publicação em referência não se propõe abordar sobre a ética, no entanto, ela o faz na medida em que situa a palavra como função elaborativa e, ao mesmo tempo, responsabilidade do sujeito que a profere. A pena pelo ato, nesse contexto ético da psicanálise, não se reduz à "correção" moral ou criminal, há que se reparar, do ponto de vista subjetivo, o ato. Uma questão de responsabilidade do indivíduo diante da sua condição no mundo, sobretudo seu sintoma.

No contexto da análise, a palavra precisa ser repetida, como afirma Ângela Bernardes, no livro Tratar o impossível: a função da fala na psicanálise (BERNARDES, 2003). A autora se refere ao trabalho de elaboração psíquica, pelo qual a fala se repete, quantas vezes for necessário, até que o ato seja diluído nela. Isto é, até que a palavra possa nomear o que não tem representação, aquilo que não é possível ser dito.

Nessa perspectiva, somos remetidos à ideia de vulnerabilidade e incompletude: "nenhum homem tem pleno domínio sobre si mesmo, por se encontrar preso ao ato, este enquanto força inconsciente e determinante" (BARBOSA NETO; PASSOS, 2014, p. 45). Em outras palavras, isso quer dizer que o sujeito do inconsciente tem, apenas, um pequeno controle sobre suas ações. A psicanálise pensa a ética porque reconhece essa condição humana, a da falta.

Num outro plano, o da psicologia, não são ignorados os tropeços, próprios da condição humana, os quais põem em risco a relação entre as pessoas, no campo pessoal e profissional. Ali, o Código de ética profissional do psicólogo é apresentado como instrução à moral e instrumento legal no sentido da correção. Uma espécie de "ajuste de conduta", pela qual a lei vem de fora no sentido de promover um alinhamento às normas. A psicanálise, por outro lado, entende que esse apelo moral, aliado à educação que atua desde a infância, não é suficiente para lidar com os efeitos das pulsões sem representação. O processo educativo e/ou corretivo não dá conta porque deixa restos, o que não pôde ser elaborado e se mantém no nível dos afetos, ou do inconsciente. A psicanálise aposta na palavra, meio possível de fazer representar os afetos. Desse modo, o Código de Ética está para a psicologia assim como a Palavra está para a psicanálise.

Fazendo uso da palavra, o sujeito é capaz de superar-se. Seu movimento, um êxodo errante, implica ruptura de si mesmo. Rompe-se a ignorância, produz-se furo no Real. Desse modo, como disse Lacan (1959-1960), o sujeito não deve abrir mão do seu desejo, isto é, negligenciá-lo. O desejo precisa ser levado em conta, questionado.

 

ATO E NÃO-PALAVRA NA VIA DO CONSUMO

Na atualidade, vivemos uma prática desenfreada de consumo. "Consuma", "não consuma", eis o imperativo. Vive-se um gozo sustentável do ponto de vista psíquico. O sujeito é preparado para consumir seja qual for o produto, em curto espaço de tempo. À proporção que mais e mais bens são adquiridos, aumenta o descarte deles, dada sua curta utilidade, e isso funciona como dinâmica, ou preparação, para se consumir uma versão ainda não conhecida do que é produzido. Dizia um jingle, sobre determinado artigo eletrônico, veiculado em TV espanhola: "Yo soy lo que usted necesita", cujo contexto significava "eu sou o que for necessário à indústria". A ordem é ter o hábito de não se habituar a objeto algum.

Visando negar a condição de falta do sujeito, o mercado promete completude, erradicação de todo mal-estar. Não se pode sofrer, nem ficar triste, como escreve Jones (2015). Ele diz: "rimos [...] em 'selfies' interminavelmente compartilhadas" (n/p), um riso artificial cujo descarte não fará falta nenhuma. É flagrante a demonstração forçada, segundo a qual o sujeito é "senhor da sua própria casa", contrariando, assim, a escrita freudiana sobre o desejo (FREUD, 1917). Para dar sustentação à plenitude ilusória, diante do mal-estar inevitável, a indústria de consumo oferece, com frequência e desproporcionalmente, o medicamento, a autossugestão, a proposta do consumo exacerbado.

O consumidor, uma vez identificado com esses objetos, incluindo-se certos diagnósticos, torna-se, ele próprio, objeto – "eu sou meu carro", ou, "eu sou doente". Note-se que há uma reverência ao ter em detrimento do ser, decadência do Ideal do Eu (esta como imagem construída, cuja referência é o Outro simbólico). Então, caímos no campo do gozo. Enquanto consumimos e descartamos, nos tornamos consumidos - com-sumidos, o que implica desaparecimento do sujeito. Como efeito, surgem novos sintomas: compulsão pela comida, trabalho, sexualidade, exercícios físicos, modelagem do corpo e, paradoxalmente, esquecimento patológico desse próprio corpo (BARBOSA NETO; ROCHA, 2013); síndrome de pânico etc..

Seduzido, o sujeito recai a um nível mais primitivo, o do eu ideal (imagem como extensão da imagem do Outro): ele faz do Outro mercadológico sua imagem e perfeição. É a supremacia da imagem em detrimento do simbólico. Rojas (2014, p. 5) afirma que "a subjetividade formada na cultura da imagem e do conjunto de condições impostas pelo mercado neoliberal parece se construir ‘superficialmente', a imagem adquire maior valor que a interioridade", o que, para nós, significa o enfraquecimento da estrutura psíquica. Desse modo, afagam-se os estilhaços do ato, silenciando-os, pelo menos momentaneamente, dando lugar a uma diversidade de sintomas. Isto é, o sujeito é sedado, a ele negada a palavra, evitando-se qualquer tipo de questionamento a respeito de si, do seu mal-estar.

Lacan (1959-1960) afirmou que estamos diante de uma crise ética. Ele nos faz entender que há uma propositada desconsideração do inconsciente na medida em que não se leva em conta o desejo. É o que podemos ver na atualidade, quando se tenta eliminar a inquietação do sujeito por meio da oferta de objetos de consumo: prescrição medicamentosa, autossugestão, frases de ordem. Considerar o desejo, por outro lado, significa questionar a ideia segundo a qual esses objetos completam o sujeito ou satisfazem o desejo. Ora, o desejo nunca é satisfeito, a não ser parcialmente.

Voltando ao Artigo citado no início, na sociedade de consumo não se cumpre a "pena pelo ato" na medida em que se nega a palavra. Nessa perspectiva, o cumprimento da "pena" implicaria questionar o ato, o que promoveria ruptura do gozo no contexto do consumo.

Até aqui, vinculamos a crise ética ao consumismo. Agora, seria razoável pensarmos que a desaceleração desse consumo daria lugar à palavra. Isto é, se o consumo em excesso compromete a estrutura psíquica, sua decadência promoveria uma emancipação do sujeito. Contudo, há um paradoxo, o recuo do crescimento da produção e do consumo nos põe diante de um abismo: ao invés de uma mudança em função do sujeito, lidamos com uma estrutura psíquica debilitada.

Diante dos sinais indicadores de um limite ao consumo, segundo a diminuição do poder aquisitivo, a força do mercado persiste no seu vigor de apelo e promessa de felicidade. O sujeito, acossado por essa circunstância, não apenas entra em conflito mas também permanece incapaz de elaborar seu ato. O apelo "consuma", "não consuma" ainda ecoa. Por um lado, inventam-se métodos pelos quais devemos "voltar a consumir", a exemplo de instituições que facilitam negociações de dívidas antigas; por outro, técnicos se empenham no sentido de "ensinar a viver moderadamente", tendo surgido, inclusive, a figura do terapeuta financeiro. A crise financeira e os conselhos apontam: "você não deve desperdiçar água, energia etc."; "precisa calcular e relacionar créditos e despesas". Porém, a matemática da economia pulsional é inapreensível. O sujeito até se esforça, mas em vão. Surgem os sintomas como espécie de "síndrome de abstinência" do consumo, e não se aprende a viver, porque para isto não há receita.

Estamos diante de um sujeito que não sabe lidar com seu desejo, então ele desperdiça a vida na medida em que perde seu sentido. Na ilusão de se completar, busca "saber tudo" como expressão do "não querer saber nada" sobre si mesmo. A crise do simbólico perdura.

A construção do sintoma é trabalhosa e demorada. Sua desconstrução é mais ainda, com o agravante dos riscos: basta um tijolo deslocado indevidamente, e em tempo inapropriado, para um desastre. A violência despropositada contra os outros e sobre si mesmo é o que mais se evidencia na atualidade.

Lacan tem nos feito entender que no tratamento há que se dar, muitas vezes, um passo para trás na esperança de dois para à frente. A via da palavra possibilita esse ganho, não sem um preço. A via do consumo, por outro lado, não permite o avanço do sujeito. Ela é de mão dupla: se tínhamos a violência sofisticada do consumismo, agora se pode observar a violência como efeito da desaceleração desse consumo. O sujeito se perde, ora porque não controla seu limite, ora por falta de condições para fazer escolhas. Em todo caso, uma incapacidade de responsabilizar-se pelos próprios atos.

De nossa parte, pensamos o sujeito em sua temporalidade. Isto é, a ideia de instante no sentido kierkegaardiano (BARBOSA NETO, 2015), segundo a qual passado, presente e futuro formam uma só unidade. É a ideia de sucessão abolida, pela qual não há um tempo (ou dimensão) que termina nem outro que se inicia. A rigor, não há presente.

Valho-me de uma passagem das Escrituras para situar a temporalidade do sujeito no contexto do parágrafo acima. Consta no Antigo Testamento que Esaú, filho de Isaac, abriu mão da sua primogenitura para obter uma apetitosa refeição. Ele se deteve no prazer do momento, não levando em conta o tempo do ser, isto é, tendo que escolher entre o ter e o ser, decide pelo primeiro. Seduzido por um saboroso prato de lentilhas, preparado por Jacó, seu irmão, e a proposta deste, Esaú obteve a guloseima pagando por ela aquilo que lhe era de direito na condição de primogênito. Fez tal escolha sob a justificativa de que o futuro encontrava-se distante, podendo ele morrer antes da chegada desse tempo: "então disse Esaú: eis que vou morrer de que me servirá então a primogenitura?" (Gênesis, XXV, 27 a 34, citado por Savater, 1996). Em outros termos, entre o prazer imediato, o qual destitui o tempo da vida, e os laços que constituem a vida, prevaleceu o primeiro. Neste caso, ao negociar sua progenitura. Esaú optou pela morte.

Savater (1996, p. 72), comentando a respeito dessa questão bíblica, escreveu que a vida "é feita de tempo, nosso presente é cheio de recordações e esperanças". Na opinião desse autor, para Esaú, segundo sua escolha, a vida não vale à pena, porque ele pensa seu ato sem ontem nem amanhã, de modo que vale mais um objeto de prazer (o imediato) do que os vínculos com os outros, pelos quais ele se determina como sujeito (a espera, o tempo). A progenitura, na tradição antiga, seria a marcação do posicionamento do sujeito na vida, o que o situa no mundo. Ela significa o vínculo entre elementos do passado (pelas tradições e antepassados) a projetos de um futuro não apenas em vida, mas que transcendem a outras gerações.

Nessa perspectiva, o consumo exacerbado na atualidade se constitui perda de tempo, o tempo da vida. Ao se gastar sem limites, no aqui-agora, descarta-se muito do que se ganhou trabalhando, cujo tempo gasto significa, também, desperdício futuro. Desse modo, desconsidera-se o ontem e o amanhã, porque o hoje é o "entre" no qual o sujeito faz seu percurso em função do ser, isto é, produz o sentido da vida. Esse vínculo que faz do tempo unidade é essencial ao movimento do sujeito, por outro lado, sob o vigor do consumismo, há fragmentação da unidade na medida em que se abre mão da vida. Quer dizer, abdica-se dos laços com os outros e com a história, priorizando-se a morte.

A reflexão ética aponta para a escolha, por parte do sujeito, considerando o laço que inclui o outro. O sentido da vida se faz pela herança da tradição, a qual o sujeito se apropria de modo novo. Lacan (1955) fazia referência a essa herança no contexto do discurso do Outro. Esse discurso, disse ele:

É o discurso do circuito ao qual estou integrado. Sou um dos seus elos. É o discurso do meu pai, por exemplo, na medida em que meu pai cometeu faltas as quais estou absolutamente condenado a reproduzir – é o que se denominou super-ego. Estou condenado a reproduzi-las porque é preciso que eu retome o discurso que ele me legou, não só porque sou o filho dele, mas porque não se para a cadeia do discurso, e porque estou justamente encarregado de transmiti-lo em sua forma aberrante a outrem (LACAN, 1955, p. 118).

Não se trata de repetir o discurso, simplesmente. O sujeito se constrói na medida em que o ressignifica e se torna responsável por ele. É o que se pode ler, por exemplo, nas palavras de Goethe: "Aquilo que herdastes, adquire-o para poder possuí-lo".

Diriam muitos, talvez: "os tempos mudaram, as tradições já não precisam ou não são seguidas". Sim, é verdade. Contudo, haveremos de esperar um tempo para que possamos entender como se constituirá esse novo sujeito. Haverá outra configuração, mas em nosso tempo, por conta da transição, há sofrimento, e precisamos lidar com ele.

Enquanto não se instalar uma nova configuração de sujeito, precisamos pensa-lo diante das condições nas quais ele está implicado, geradora de sofrimento. Neste caso, não há humano sem uma cultura que o fundamente, nem sem a linguagem que lhe dê sentido. E isto é anterior ao sujeito.

A vida no instante é feita de tensão, por causa da falta e dela o desejo que nos rege. A morte, por outro lado, é pura inércia, esgotamento total do desejo. A morte tampona a falta.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A relação sujeito consumo, no ponto em que chegamos, tem se constituído desafio para a psicanálise no século XXI. A questão é, como se posicionar, no contexto do tratamento, sem desconsiderar a ética do desejo? Como lidar com esse sujeito, se, muitas vezes, o gozo pleno do consumismo dá lugar ao gozo trágico da violência pelo declínio desse consumo?

Paradoxalmente, vê-se que a psicanálise não é poupada com a desaceleração do consumo. Seja como for, é preciso encorajar o sujeito, por meio de um discurso que lhe proponha dignidade, mas não sem sofrimento, nem com a promessa de felicidade plena. Há que se interrogar: o que dará mobilidade ao seu desejo? Do ponto de vista do próprio sujeito: "o que eu desejo?"

 

REFERÊNCIAS

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1 Um primeiro esboço deste trabalho foi apresentado na Bienal Internacional do Livro de Alagoas, em Maceió, dezembro de 2015.
2 Professor da Universidade Federal de Alagoas. Psicólogo com atuação clínica. Especializado em Filosofia Política, Psicologia Social e Psicopedagogia. Mestre em Psicologia Clínica. Doutor em Psicologia Clínica, com pesquisa em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise. E-mail: esperidiao.bn@ig.com.br (Alternativo: esperidiaobneto@gmail.com)

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