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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.13 no.1 São Paulo jun. 2016

 

ARTIGO

 

"Não há tempo... A perder": questões sobre a atuação do psicanalista no hospital geral

 

"No time… to lose": questions about psychoanalyst s work in general hospital

 

"No hay tiempo... Que perder": cuestiones acerca de las operaciones del psicoanalista em el hospital general

 

 

Roberto Calazans1, I; Elaine C. Azevedo2, II

IUniversidade Federal de São João del-Rei
IIHospital São João de Deus em Divinópolis-MG

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é esclarecer como o psicanalista pode dar condições ao sujeito, em situação de urgência, subjetivar a angústia que o imobiliza. Nossa hipótese é que a estratégia do tempo lógico de Jacques Lacan é um importante recurso psicanalítico nesse momento em que a angústia implica em uma ruptura simbólica. O manejo do tempo lógico permite restaurar um tratamento da presença do objeto da angústia, convocando o paciente a respondê-la a partir de sua condição de sujeito. Neste sentido, este artigo problematiza a função do analista em casos limites tratados em Centros de Terapia Intensiva, demonstrando a importância de se considerar à função do analista diante de algo que urge e precipita o sujeito na angústia.

Palavras-chave: psicanálise; tempo; urgência; angústia, abordagem psicoterapêutica, hospital geral.


ABSTRACT

The aim of this paper is to clarify how the psychoanalyst can give conditions to the subject, in an urgent situation, subjectify the anguish that immobilizes him. Our hypothesis is that the logical time strategy of Jacques Lacan is an important psychoanalytic resource in this time when the anxiety implies a symbolic break. The management of logical time allows to restore a treatment from the presence of anguish object, calling the patient to answer it from its condition of subject. In this sense, this article problematizes the analysts role in limiting cases treated in an Intensive Therapy Centers, demonstrating the importance of considering the role of the analyst in the face of something that urges and precipitates the subject in anguish.

Keywords: psychoanalysis; time; urgency; angst, psychotherapeutic approach, general hospital.


RESUMEN

El objetivo de este trabajo es aclarar cómo el psicoanalista puede dar condiciones para el sujeto, en una situación de urgencia, subjetivar la angustia que lo inmoviliza. Nuestra hipótesis es que la estrategia de tiempo lógico de Jacques Lacan es un recurso psicoanalítico importante en este momento en que la ansiedad implica una ruptura simbólica. La gestión del tiempo lógico permite restaurar un tratamiento de la presencia del objeto angustia, llamando a la paciente para responder a ella a partir de su condición de sujeto. En este sentido, este artículo problematiza el papel del analista en la los casos limites tratados en un centros de terapia intensiva, lo que demuestra laimportancia de considerar el papel del analista en la cara de algo que urge y precipita el sujeto en la angustia.

Palabras-clave: psicoanálisis; tiempo; urgencia; angustia, abordaje psicoterapéutico, hospital general.


 

 

INTRODUÇÃO

O Centro de Terapia Intensiva é o local onde o psicólogo se integra à equipe multidisciplinar. Partimos neste artigo da perspectiva psicanalítica lacaniana, apontando nossa prática nesse espaço do hospital, onde atendemos pacientes e seus familiares, pautando-nos pela escuta psicanalítica. Assim, sempre que há demanda de atendimento subjetivo, o psicanalista de plantão é solicitado. Nesses casos, podemos deparar-nos com várias apresentações do sujeito, seja ele o paciente ou os familiares, diante desses momentos de rupturas: agitações psicomotoras, delírios, alucinações e até mesmo acting-outs e passagens ao ato como resposta à emergência da angústia frente ao urgente do caso e da relação com a morte. No entanto, o sujeito mergulhado na inércia da angústia precisa de um tempo que foge aos protocolos de atendimento médico.

 

ANGÚSTIA COMO AFETO QUE NÃO ENGANA

A angústia, nesses espaços, abre uma temporalidade específica que demanda uma abordagem num tempo em que há urgência. Para Lacan (1962-1963/2005), a angústia é um afeto diferente dos outros e tem a especificidade de ser o único que não engana. Não engana, uma vez que é uma presença que escapa a qualquer possibilidade de sentido. Ela se apresenta nos pontos desconectados da rede simbólica do sujeito a partir de um acontecimento que desestabiliza e lhe coloca num impasse.

A partir do referencial psicanalítico, entendemos as apresentações dos sujeitos, que se encontram no hospital, como características da angústia, vivência de rupturas e mal-estar, que podem ser percebidos por atos, silêncio, embaraços, passagens ao ato e acting-outs. A angústia, nesses momentos, invade o sujeito, deixando-o sem referências simbólicas e deflagrando algo para o sujeito que embarga o uso da palavra. Freud, em seu texto Inibições, sintomas e angústia (1926/1996), busca uma explicação mais consistente para esse afeto, uma vez que já havia verificado precocemente que a angústia estava ligada ao padecimento psíquico de seus pacientes após formular, a partir de sua teorização, a angústia como reação a uma situação traumática ou de perigo que tem em comum o medo da perda do objeto amado.

Assim o perigo de desamparo psíquico é apropriado ao perigo de vida quando o ego do indivíduo é imaturo; o perigo da perda de objeto, até a primeira infância, quando ele ainda se acha em dependência de outros; o perigo de castração, até a fase fálica; e o medo do seu superego, até o período de latência. Não obstante, todas essas situações de perigo e determinantes de angústia podem resistir lado a lado e fazer com que o ego a elas reaja com angústia num período ulterior ao apropriado; ou, além disso, várias delas podem entrar em ação ao mesmo tempo (Freud, 1926/1996, p. 140).

Freud, durante toda sua obra, mostra gradativamente como o conceito de angústia vai ocupando um lugar de destaque no campo dos afetos, tornando-se este o afeto mais importante. À medida que esse afeto se apresentava na clínica a Freud, nas várias formas de neuroses, ele concedeu à angústia um lugar cada vez mais privilegiado em sua investigação, tornando-se este oafeto mais radical e singular do sujeito. Lacan, em seu esforço de retorno ao pensamento freudiano, serve-se das brechas encontradas na trajetória freudiana acerca do tema da angústia para trazer avanços à teoria da angústia a partir da essência dos ensinos de Freud, de forma, porém, a subverter as leituras pós-freudianas da época acerca da angústia. E é em seu Seminário X, intitulado A angústia (1962-1963/2005), que Lacan se debruça sobre esse tema na obra freudiana. Para Lacan (1969-1970/1992, p. 136), esse afeto também ocupa o lugar de um afeto por excelência, sendo ele o "afeto central, aquele em torno do qual tudo se ordena". A questão de Lacan ainda se desdobra a partir do grande problema que se apresenta à pesquisa de Freud sobre a angústia, a saber: qual o objeto da angústia? Para Freud, esse objeto não aparece de forma clara em sua obra. Todavia, Freud não chega a uma resposta final sobre o estatuto do objeto da angústia. Lacan (1962-1963/2005, p. 101), porém, vai às últimas consequências e aponta que a angústia "não é sem objeto". E esse lugar do objeto e sua relação com a angústia são importantes para a direção do tratamento – principalmente em casos de urgência.

Lacan serve-se do afeto da angústia para elaborar sua concepção de objeto a. Esse afeto aparece no momento do encontro com o objeto, pois para ele, a angústia não é sem objeto; há algo embora não se saiba o que: "Já podemos dizer que esse algo diante do qual a angústia funciona como sinal é da ordem da irredutibilidade do real. Foi neste sentido que ousei formular diante de vocês que a angústia, dentre todos os sinais, é aquele não engana". (Lacan, 1962-1963/2005, p. 178)

 

ANGÚSTIA E TEMPO NO CTI

Percebemos, na prática clínica no hospital, que, diante de aspectos como medo, dor e morte, o sujeito atropelado pelo inesperado tem dificuldades de suportar com tal urgência e não apresenta recursos simbólicos ou imaginários para lidar com esse momento de manutenção da vida ou de constatação da morte. Vemos, nesses momentos, a emergência da angústia tal como definida por Freud e Lacan. Desde os primeiros movimentos de enfrentamento dos sujeitos com a urgência, é possível perceber como tal vivência de angústia abre uma temporalidade que desestabiliza aquele que chega desprovido de informações e notícias. Uma temporalidade avassaladora aparece aí, já que, nessa aparição da angústia frente às exigências de um Real do corpo que se apresenta sem as marcas imaginárias ou simbólicas, o presente e o futuro se veem embaraçados num passado de histórias. A escuta psicanalítica nesse espaço permite atentar-se para uma possibilidade de dar voz ao sujeito para além da materialidade orgânica dita pelos médicos nos boletins. É fundamental que o psicanalista aposte na palavra nesse momento.

O trabalho do psicanalista nesse espaço é possibilitar que uma rede de significantes possa ser construída a partir da palavra do sujeito, dando contorno possível a uma desordem que aponta para uma irrupção de um real que desarticula a cadeia significante. Numa vivência de angústia, o sujeito perde sua posição diante do outro; algo cai, deflagrando um real impossível de ser simbolizado. Esse momento, que localizamos no campo da urgência, consiste num avanço do Real sobre o Imaginário, produzindo angústia. A angústia, como já dissemos, é um afeto que não engana, que toca o corpo; a angústia é o encontro do sujeito com um gozo impossível, fora da cadeia significante. Se o sujeito se constitui por meio de sua relação com o Outro, na crise ele não encontra lugar para sua palavra e perde o recurso simbólico para lidar com esse real. Sem esse recurso, o que se mostra é o ponto radical da angústia. Diante da angústia, o sujeito experimenta a pressa diante de uma saída conclusiva, uma certeza precipitada sem um tempo de compreender. É aqui que propomos o manejo do tempo lógico de Lacan nesses espaços onde a palavra do sujeito fica impedida pela emergência da angústia diante da morte.

A certeza que se apresenta nesses momentos difere da certeza que surge ao final do tempo lógico proposto por Lacan em seu texto O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada (1945/1998), pois não permite a emergência de um sujeito, mas, sim, o que se mostra é um curto- circuito, sujeito-objeto.

Lacan introduz a temporalidade na direção do tratamento, elaborando para isso a noção de tempo lógico. A partir da ideia da temporalidade específica do sujeito do inconsciente, Lacan indicará que, do manejo e eficácia desse tempo, dependem a psicanálise, mostrando, assim, a importância da questão do tempo para a clínica psicanalítica. Dá-se importância a tal questão, uma vez que o efeito de uma intervenção no tempo e sobre o tempo incide sobre o sujeito. Lacan inclui ao tratamento a tríade temporal, do instante de ver, do tempo de compreender e do momento de concluir, possibilitando, assim, diferenciar a lógica na experiência subjetiva do tempo. Podemos perceber que, no sofisma i dos prisioneiros apresentado nesse texto, a dimensão do sujeito não está posta. O tempo lógico determina para o sujeito um começo, pois ganha o valor de ato, em que o movimento e o tempo se articulam de forma a possibilitar ao sujeito criar sobre si uma hipótese. É a partir da função do tempo que podemos pensar na dimensão do sujeito que Lacan (1945/1998, p. 208) chamou de "sujeito da asserção conclusiva".

Segundo Vera Lúcia Santana (2004), considerando a hipótese de que, numa situação desconhecida – que localizamos no campo da angústia vivenciada pelos sujeitos/familiares nas salas de espera do CTI –, o olhar é quem governa no instante de ver, o fato de que isso não esgota a questão indica a necessidade de um tempo para compreender. Nesse tempo para compreender, ou seja, no segundo tempo, o sujeito acede ao movimento dos outros, que traduz o reconhecimento do um e do outro como homogêneo. Mas é no terceiro tempo, no momento de concluir, que a necessidade lógica de solucionar o problema produz uma intensidade temporal que culmina em uma enunciação subjetiva. Essa enunciação ocorre quando uma certeza conclusiva, mas suspensa ao outro, antecipa a sua realização. Se a pressão do tempo for muito incisiva, os três momentos podem reduzir-se apenas ao instante de ver como uma tradução da percepção primeira; ou seja, desse olhar que em seu instante pode engolir todo o tempo para compreender (Lacan, 1945/1998, p. 205).

Nossa hipótese neste trabalho é que a urgência do tempo lógico permite tirar o sujeito de uma possível suspensão, na qual este poderá dar uma resposta na condição de sujeito. No hospital, a certeza ligada à angústia permanece no primeiro momento, o instante de ver proposto por Lacan nesse texto de 1945, em que há uma suspensão do tempo de compreender. No instante de ver, há a perda do outro como Outro. Tal acontecimento precipita uma certeza sem a possibilidade de uma simbolização a partir do tempo de compreender.

Em nossa prática no CTI, podemos notar como o tempo se apresenta desconectado de um sentido, desarticulado de uma lógica diante da urgência da experiência de angústia que se apresenta nesse espaço. Não há como ignorar a questão do tempo na angústia. A angústia aparece como um curto-circuito entre o instante de ver e o momento de concluir, deflagrando uma temporalidade singular a cada sujeito. Diante da urgência da angústia, o sujeito precipita tanto seu julgamento quanto sua saída. Em face da urgência de um corpo adoecido, a proximidade da morte, o sujeito apresenta-se colado no instante de ver e no momento de concluir, em que não há tempo para que ele possa articular uma compreensão.

O psicanalista, nesse espaço, precisa trabalhar para que esse tempo necessário para compreender não seja atropelado na pressa por concluir, que se apresenta diante daqueles que da urgência participam – médicos, equipe de enfermagem e família. Nesses momentos, o tempo de compreender pode possibilitar a elaboração de uma dificuldade diante do que urge em face do encontro desvelado com o objeto faltoso.

Se para a psicanálise o tempo se apresenta diferente do tempo cronológico, tomando, assim, a dimensão lógica do tempo do sujeito, a pressa, a urgência e o tempo tornam-se importantes para se pensar a prática clínica do psicanalista na instituição hospitalar, em que o tempo se tornasignificativo operador clínico do analista diante da possibilidade de dar um contorno à angústia a partir da palavra.

O psicanalista vê-se confrontado, nesses momentos, entre dois tempos, o da instituição, que exige uma resposta rápida, e o do sujeito, que se mostra paralisado diante da ruptura de uma cadeia de significantes, uma ruptura no campo simbólico proporcionada ali, pela situação do paciente. Entendemos que isso dificulta o acesso à palavra. O psicanalista, por sua vez, não pode prescindir do sujeito, considerando, assim, o tempo subjetivo, instaurando a pausa na pressa e possibilitando que, nesse intervalo entre o que urge e a pressa, possa advir o sujeito.

Podemos apontar aqui as implicações da dimensão do tempo lógico e como o manejo desse tempo pode ajudar na direção do tratamento dos sujeitos/ familiares, num Centro de Terapia intensiva (CTI), uma vez que o tempo no CTI, pelo próprio atravessamento do Real, será sempre lógico. Portanto, torna-se importante sustentar um saber fazer do analista nesse espaço, que possibilite um manejo desse tempo.

A urgência é pensada pela clínica médica como uma ruptura aguda, diante da qual se busca apoio num saber que elimina a dimensão do tempo e age imediatamente sobre o acontecimento. A urgência do ponto de vista da psicanálise, embora também pressuponha pressa, prioriza uma pausa propícia para a produção de um sujeito dividido pelo acontecimento.

Na clínica psicanalítica, tal momento é tratado como urgência subjetiva. Aparece em relação direta com um vazio, um sem sentido, que irrompe numa dada ordem e que tem relação com o real. Guillermo Belaga (2008) indica-nos que a urgência subjetiva é a urgência apresentada pelo sujeito no momento de crise, quando há irrupção de um acontecimento que não encontra saída nem sentidos, em que algo não pode esperar, desconectado de um tempo:

É nesse sentido que a "urgência" se apresenta como uma nova forma sintomática ligada ao traumatismo generalizado de nossa época, na qual a modalidade temporal que responde ao acontecimento, ou à inserção de um trauma, seria um signo da emergência do que urge como traumatismo, como furo num discurso que até esse momento, ordenava o sentido da vida (Belaga, 2008, p. 17).

Assim, podemos ver a temporalidade como ponto comum na clínica da urgência, o que nos permite considerar a importância do tempo lógico na abordagem dos sujeitos. Entendemos que, independentemente do contexto, o campo da angústia se articula diretamente a uma lógica do tempo, vivência que se impõe no confronto dos sujeitos com a presença do objeto, localizada a partir de nossa prática nas situações vivenciadas no CTI. É com as diversas formas de apresentação do sujeito que o psicanalista deverá ocupar-se no momento da chegada daquele ao CTI, acolhendo a angústia que está implicada nesse acontecimento e o desatamento da cadeia significante que ocorre num momento de urgência. Isso pode favorecer a abertura de um espaço onde o sujeito possa ser escutado, não a partir de uma sutura precipitada da falha do momento, mas de um canal pelo qual o real possa articular-se a um dizer.

Na psicanálise, o tempo revela-se articulado a outros marcadores além do cronológico. É sensível à experiência que pode, por exemplo, ser observada nos sujeitos que chegam ao Centro de Terapia Intensiva. Percebemos que, no CTI, estes vivenciam um presente fugaz, entrelaçado a um passado já remoto e um futuro quase sempre incerto e temido.

A partir do referencial lacaniano, podemos inferir que o tratamento do sujeito pelo discurso analítico é questão de um tempo que ultrapassa a dimensão cronológica. Trata-se, como já dissemos, de um tempo lógico que faz valer a possibilidade de um advento do sujeito e a invenção de uma saída, de um tempo na direção do tratamento. É na urgência do movimento lógico que o sujeito/família precipita o seu juízo e a sua saída, e o momento de concluir pode objetivar-se.Entendemos que os sujeitos, enredados pela atemporalidade das fantasias e medos decorrentes da angústia, podem precisar de tempo não necessariamente por um alongamento do tempo cronológico, mas pela inserção de uma pausa, um corte no fluxo subjetivo que lhe permita, por meio do ato do analista, reposicionar-se em relação ao objeto de sua angústia. De acordo com Dominique Fingermann (2009), podemos dizer que o instante da entrada do paciente e da família no CTI e o momento do fim (que separa, em geral, um longo tempo para compreender) são dois tempos paradigmáticos da incidência do discurso analítico na clínica no CTI.

Podemos articular diretamente a incidência do tempo lógico em nosso trabalho no CTI. O instante de ver – da entrada do sujeito na unidade – é um momento de interrogação, que equivale à emergência real de um corpo adoecido e de uma família desamparada diante da urgência que se antecipa. O instante de ver na urgência consiste num topar com o real sem lei. Inclui a entrada do real no jogo, momento no qual a associação livre e a escuta analítica são fundamentais.

O tempo seguinte é o tempo para compreender. Nesse tempo, verificamos que a história de vida do sujeito e seu lugar no arranjo familiar vão tomando forma no discurso da família, que, a partir da oferta de escuta do analista, vai dando lugar ao que, no instante de ver, se perdeu perante a sincronia do olhar. Esses ditos dos sujeitos na vivência da angústia tentam circunscrever algo da cadeia significante que se rompe diante da urgência que precipita uma saída. Esses ditos apresentam-se como demandas de sentido. A associação livre desdobra, recorta, alinhava e remenda o espaço topológico da estrutura familiar. Pouco a pouco, às voltas com os ditos e queixas, vão contornando a realidade dos boletins médicos e constroem a possibilidade de uma entrada no tempo para compreender. Nesse tempo para compreender, o analista disponibiliza uma escuta de um lugar diferente do saber médico, desconectado da posição de saber, possibilitando ao sujeito uma direção rumo ao momento de concluir.

O momento de concluir apresenta-se enfim. Do sujeito, espera-se uma saída, que lhe possibilite respostas singulares perante a angústia. Buscaremos, por meio de um fragmento clínico, exemplificar a temporalidade inerente ao fazer analítico no CTI como recurso possível pela psicanálise. No momento de acolhimento posterior à internação de sua filha no CTI neonatal, um pai questionava: "Minha filha não deve ser transfundida, doutor; minha religião não está de acordo e tenho certeza de que ela não irá precisar". Os dias passaram-se e o pai em seu discurso narrava à psicanalista a história gestacional do bebê e o lugar dessa criança no arranjo familiar, mas ao médico sempre questionava quanto aos exames de hemograma realizados na criança, a fim de verificar e assegurar-se da não necessidade de transfusão. O médico prontamente lhe respondia e revelava algo do real que não cessava de ser deflagrado a partir dos exames. Dezessete dias passaram-se e os relatórios médicos indicavam a gravidade do estado de saúde da criança e a urgência da transfusão de sangue.

Era chegado o momento. Nos últimos dias, os exames mostravam ao pai uma proximidade excessiva com o real, e ele se calava e confiava de alguma maneira na intervenção divina. "Vinte mil plaquetas! Teremos que transfundir. Chame o pai, faremos uma reunião", disse o médico, que chamou a analista e aguardou a chegada do pai. Na sala, o médico já aguardava certa dificuldade por parte do pai e mostrava-se ansioso em alguns momentos, irritado com a situação, mas mantinha- se ali, à espera do pai. O pai, chamado para a reunião, mostrava-se angustiado. Dizia à psicanalista que já sabia do que se tratava a reunião. O momento de concluir precipitava-se enfim. "Doutor, uma fração de sangue não é sangue, o sangue é dividido em três frações; não é isso, doutor?" O médico olhou para a psicanalista, que, ao sustentar com o pai a necessidade de sua enunciação, permitiu ao sujeito uma conclusão: "O concentrado de hemácias não é sangue, é uma fração de sangue; uma fração de plaqueta não é sangue, é uma fração de sangue; uma fração de plasma também não é sangue. Estive pensando sobre isso durante todos esses dias, li vários textos e dividi essa questãocom membros da minha Igreja. Sendo assim, posso dizer ao senhor que a minha filha poderá receber tal fração. Ela poderá ser transfundida".

O arranjo do sujeito ultrapassa a urgência médica e apresenta uma saída possível diante do atordoamento. É na urgência do movimento lógico que o sujeito/família precipita o seu juízo e a sua saída, caminhando para um momento de concluir.

Se o tempo para a psicanálise não se referencia somente numa dimensão cronológica, entendemos que o tempo lógico possa ser um recurso importante na prática clínica hospitalar, uma vez que, no hospital, diante da angústia, o sujeito tende a responder de forma conclusiva, por meio dos atos ou impedimentos; ou seja, ruptura da possibilidade de uma articulação simbólica. O psicanalista inserido na equipe do CTI apoia-se num saber-fazer que privilegia a dimensão do sujeito e a possibilidade da invenção de uma saída possível diante da angústia que se sustenta num instante de ver: "O analista se dedica a encarnar na atualidade o instante do passado. É por isso que não se trata simplesmente de saber e sim de sujeito suposto saber" (Miller, 2000, p. 52). Sustentamos que tal fazer abra uma dimensão possível para um tempo de compreender. Tal perspectiva permite-nos sustentar a especificidade da prática analítica no CTI, em que se torna fundamental sustentá-la, haja vista outros saberes que ali se apresentam.

O tempo que se abre na urgência aponta para um desnudamento significante que tem efeitos sobre um sujeito. Portanto, torna-se necessário pensar o trabalho do psicanalista no CTI diante da experiência de angústia dos sujeitos e em seu saber-fazer perante a irrupção do real. É preciso abrir espaço de manejo da angústia.

Nem tudo que aparece nesses momentos é da ordem da angústia. Aliás, o que dá à angústia seu caráter de destaque, e que nos convoca a colocá-la aqui em primeiro plano, é o poder de escapar-se à palavra e precipitar-se no corpo, como palpitação, vertigem, vômito, desmaio. No entanto, é a partir desta dobradiça entre o tempo lógico e a vivência de angústia que se pretende pensar nossa prática no CTI.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na angústia, a certeza apresenta-se de modo precipitado, sem a possibilidade de um trabalho significante, como um curto-circuito entre o instante de ver e o momento de concluir, sem que se constitua a passagem ao tempo de compreender do tempo lógico. A angústia apresenta-se nesses momentos de urgência diante da certeza do encontro com o objeto, impossibilitando uma mediação simbólica que produza uma articulação significante. No tempo lógico, o segundo tempo denominado por Lacan (1945/1998) de tempo de compreender, apresenta-se a possibilidade ao sujeito de uma articulação significante necessária ao momento de concluir. Tal possibilidade perde- se na certeza da angústia diante da proximidade excessiva do objeto a. Frente à impossibilidade dessa operação simbólica presente na angústia, o sujeito tomado pelo instante de ver/concluir depara-se com a presença sem corte do objeto a. O que se apresentará, pois, nesse momento, é a falta da falta. Perante a angústia, há um fechamento do tempo de compreender, o estilhaçamento deste, ficando o sujeito à deriva de uma construção singular, de uma invenção.

Nosso artigo, portanto, vale-se de nossa prática e inquietude perante os arranjos e saídas criativas, feitos pelo sujeito no momento de urgência diante da angústia vivida no hospital. O psicanalista vale-se de sua única arma, a escuta, para fornecer a esses sujeitos a possibilidade de outras invenções, abrindo tempo e espaço de escuta.

 

REFERÊNCIAS

BELAGA, G. Na cidade pânico. Sintomas da urgência subjetiva e respostas da psicanálise. Curinga, Belo Horizonte, Escola Brasileira de Psicanálise, 2008, Seção Minas Gerais, n. 27, p. 17- 26.         [ Links ]

FINGERMANN, D. O tempo na experiência da psicanálise. Revista USP, São Paulo, n. 81, p. 58- 71, mar./maio 2009. Disponível em: <http://www.usp.br/revistausp/81/05-dominique.pdf>. Acesso em: 12 mar. 2015.         [ Links ]

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LACAN, J. (1945). O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998.         [ Links ]

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MILLER, J. A. A erótica do tempo. In: Latusa. Rio de Janeiro, Escola Brasileira de Psicanálise, 2000. p. 7-79.         [ Links ]

SANTANA, V. L. O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada. Salvador, 21 jan. 2004. Disponível em: <http://ebp.org.br/wp-content/uploads/2012/08/Vera_Lucia_Santana_O_Tempo_logico_e_a_assercao_da_certeza_antecada1.pdf>. Acesso em: 15 mar. 2015.         [ Links ]

 

 

1 Roberto Calazans Psicanalista, Doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei; Bolsista de Produtividade Nível 2 CNPq E-mail: calazans@ufsj.edu.br
2 Elaine C. Azevedo Psicanalista, Psicóloga, Mestre em Conceitos Fundamentais e Clínica Psicanalítica pela UFSJ, Coordenadora do Serviço de Psicologia do Hospital São João de Deus emDivinópolis-MG. Endereço: Avenida Sete de Setembro, 1313, apto. 401. Centro. Divinópolis-MG. CEP: 35500-011. Contato. (37) 98803-8539. E-mail: elaineazvdo@hotmail.com
i O diretor de um presídio manda escolher três prisioneiros e lhes comunica sem maiores explicações que a libertação de um deles dar-se-á mediante uma prova a que deverão se submeter e que deverão resolvê-la. Anuncia-lhes a existência de cinco discos que só diferem pela cor, sendo três brancos e dois pretos. Sem que lhes seja informada a cor, o diretor irá escolher três discos entre os cinco citados, que deverão ser fixados respectivamente nas costas dos três prisioneiros. Explica-lhes, então, a prova: cada um deles terá a oportunidade de ver a cor dos discos de seus parceiros, mas continuará na ignorância da cor de seu próprio disco. Os prisioneiros não poderiam relatar aos outros a cor dos discos que se encontram nas costas de seus parceiros, sendo isso de substancial importância, pois é intrínseco ao interesse de cada um. O primeiro que pudesse deduzir a sua própria cor seria favorecido com a liberdade proposta. Para finalizar, o diretor ainda esclarece que a conclusão de cada um deve se regular por motivos de lógica e não somente de verossimilhança. O primeiro a formular a resposta deverá transpor determinada porta para que, em particular, coloque a sua resposta em julgamento. Após algum tempo de observação, os três sujeitos avançam em direção à porta, com o propósito de fornecer a sua resposta de modo particular como foi sugerido pelo diretor. "Sou branco, e eis como sei disso. Dado que meus companheiros eram brancos, achei que, se eu fosse preto, cada um deles poderia ter inferido o seguinte: Se eu também fosse preto, o outro, devendo reconhecer imediatamente que era branco, teria saído na mesma hora, logo, não sou preto. E os dois teriam saído juntos, convencidos de ser brancos. Se não estavam fazendo nada, é que eu era branco como eles. Ao que saí porta afora, para dar a conhecer minha conclusão" (Lacan, 1945/1998, p. 198).

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