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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.13 no.2 São Paulo  2016

 

ARTIGO

 

Indicação de terapia familiar psicanalítica para uma família com uma criança obesa

 

Indication of psychoanalytic family therapy for a family with a child obese

 

Indicación de terapia familiar psicoanalítica para una familia con un niño obeso

 

 

Caroline Berque*; Philippe Robert**

Universidade Paris Descartes (Paris V)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O processo terapêutico de uma terapia familiar psicanalítica com criança que sofre de obesidade coloca em evidência a complexidade subjacente à esta problemática. A dinâmica da família discutida neste artigo é caracterizada por movimentos de indiferenciação entre a criança e a mãe, acompanhada de uma falha de continência familiar. Esta falha se especifica pelo surgimento de elementos brutos, traços de uma problemática incestuosa e de violência conjugal. O objetivo dessa terapia não se caracteriza pela busca de conhecimento sobre os eventos vividos pela família, mas principalmente por uma elaboração grupal dos elementos percebidos (como o caos e a confusão) no aqui e agora de cada sessão, possibilitando aos membros da família instaurar o movimento de separação e de individuação.

Palavras-chave: indicação de terapia familiar; obesidade infantil; continência familiar; violência familiar; problemática de separação-individuação.


ABSTRACT

The therapeutic process of a family therapy, with a child suffering from obesity, has demonstrated the complexity of such a pathology. The characteristic of the family dynamics is a lack of differentiation mother and child, together with a failure of the family holding. This failure of the family holding is specified by the occurrence of gross elements, the signs of an incestuous problem and domestic violence. The aim of this therapy is not so the presentation of these life events but more a group formulation of these various elements (like chaos and confusion) which occur in the « hic and nunc » of the course of the therapy, thus enabling the process of separation and individuation within the members of the family.

Keywords: indication of family therapy; pediatric obesity; family holding; family violence; problem of separation and individuation.


RESUMEN

El proceso terapéutico de una terapia familiar psicoanalítica con niños que sufren de obesidad pone de relieve la complejidad subyacente a esta cuestión. La dinámica de la familia mencionada en este artículo se caracteriza por movimientos de indiferenciación entre la niña y la madre, acompañados por un fallo de la continencia familiar. Este fallo se especifica mediante el aumento de elementos crudos, vestigios de una problemática incestuosa y de la violencia doméstica. El objetivo de esta terapia no se caracteriza por la búsqueda del conocimiento acerca de los eventos experimentados por la familia, pero sobre todo para una elaboración grupal de preparación de los elementos percibidos (por ejemplo, el caos y la confusión) en el aquí y ahora de cada sesión, permitiendo a los miembros de la familia establecer el movimiento de separación e individuación.

Palabras clave: indicación de terapia familiar; obesidad infantil; contenencia familiar; violencia familiar; problemática de separación-individuación.


 

 

A problemática da obesidade, que se estende do excesso de peso à obesidade dita mórbida, compreende um desafio crescente para a saúde pública, sendo particularmente preocupante a situação da criança e do adolescente (Vincelet e Galli, 2007). Os cuidados de saúde dispensados centram-se essencialmente no acompanhamento individual da criança ou do adolescente com excesso de peso por uma equipe multidisciplinar (pediatra, nutricionista, psicólogo) e em oficinas de educação terapêutica pais-filhos. A indicação terapêutica para uma análise da dinâmica e dos vínculos familiares não tem sido considerada em primeiro plano, sendo que, não raramente, as famílias chegam ao atendimento com demandas diversas daquela da obesidade. Além disso, ressaltamos que existem poucos artigos sobre terapia familiar psicanalítica de famílias com crianças obesas.

Reconhecida como multifatorial, a obesidade pode estar ligada não apenas a fatores genéticos e ambientais, mas também a fatores familiares. Frelut (2012) evoca notadamente o caso de maus-tratos e de abuso sexual - aspectos que fazem parte da história da família que será discutida neste artigo. Essa autora atribui o fracasso do tratamento a uma má análise pelo terapeuta dos mecanismos de defesa, das respostas inadequadas, e não apenas a aspectos que concernem ao paciente ou à família.

Grangeard (2013) assinala que no campo da medicina o termo obesidade encontra-se centrado na vertente física, uma vez que sua expressão coloca em destaque o corpo. A autora propõe ir além do sintoma para fazer sobrevir o sujeito, de forma a investigar a inscrição do sintoma em sua história. Assim, a questão não é definir uma personalidade obesa, pois, como sabemos, a obesidade encontra-se associada a diferentes estruturas psíquicas, mas envolve uma abertura dos campos terapêuticos, considerando o sujeito "em sua globalidade". Afim de inscrever a obesidade no campo psicanalítico, segundo a complexidade com que esta passa a ser compreendida, Grangeard (2013) introduziu o neologismo "obesologia", buscando ainda oferecer um ponto de junção para o interesse recente da psicanálise por essa problemática.

Na literatura psicanalítica, a dimensão emocional da obesidade é associada ao pensamento operatório enquanto distúrbio psicossomático (Marty, 1980). O campo da psicossomática analisa os processos em jogo nesse distúrbio, permitindo uma compreensão e uma interpretação que levem em consideração suas múltiplas causalidades, passando por razões médicas e psicológicas, sem, no entanto, definir um determinismo psicológico. Na perspectiva de Marty (1980), a carência do pensamento fantasmático presente na dinâmica dos distúrbios psicossomáticos induz a uma relação transfero-contratransferencial como "uma relação branca". Trata-se de uma relação presa ao fatual, aos aspectos concretos das experiências vividas, carente de simbolização, relação que se reproduz na vida do paciente. Um mecanismo psíquico frequentemente adotado é aquele do tipo obsessivo, o isolamento, que corresponde a uma separação entre afetos e representação, de forma que o sujeito se encontra "presente" na relação, mas "vazio", revelando fragilidades identificatórias significativas. Esta forma de pensar, marcada pelo pensamento operatório, exprime-se sobretudo no paciente "psicossomatose", para o qual as situações conflituosas têm como via de escape o soma e a carência no campo afetivo leva à dificuldade de exteriorização das pulsões agressivas.

Dumet (2006) fala da obesidade como "ato-sintoma", ressaltando sua função defensiva e regressiva. A obesidade da criança pode, portanto, ter uma função de descarga e de evacuação do sofrimento psíquico nos registros comportamental e corporal. Ela assinala: "o comportamento alimentar seria assim para o sujeito uma solução inconsciente para silenciar ou então ocultar experiências, angústias e conflitos - neuróticos, mas mais certamente narcisistas e arcaicos (os expressando pela via sintomática)" (Dumet, 2006, p. 73). Trata-se de uma falha no trabalho de pensar do aparelho psíquico transbordado por uma quantidade de energia demasiadamente importante, relativa aos eventos da vida. Dumet (2006) aponta também o disfuncionamento da função de para-excitação do envelope psíquico, explicando que o continente se encontra diante de um conteúdo economicamente muito carregado. Um dos mecanismos postos em cena é a repressão, via a forclusão dos afetos e das representações. O desafio do sintoma da obesidade é estar a serviço da "subjetivação", pois o comportamento alimentar torna-se expressão de uma tentativa de revitalização da vida psíquica, em conexão com uma experiência de "desaparecimento".

Nessa medida, a obesidade não é apenas o sintoma de um disfuncionamento, mas também a expressão de uma forma de vida do sujeito. As funções de subjetivação encontram-se preservadas, sendo menos custoso psiquicamente utilizar uma função de descarga do que fazer face às emoções evocadas pelos conflitos.

A abordagem psicanalítica em terapia familiar, originária do pensamento de André Ruffiot (1981) e de Alberto Eiguer (1987), privilegia a "tecedura dos vínculos psíquicos" para compreender as questões familiares. Esses autores desenvolvem a perspectiva de que a construção subjetiva de um sujeito se realiza a partir do grupo familiar.

Nessa linha de pensamento, Cuynet (2010; 2012; 2015) realizou estudos sobre estruturas familiares com a sintomatologia da obesidade criando o conceito de corpo familiar. Esse autor inaugura um deslocamento da análise do problema psicossomático de uma perspectiva intrapsíquica para uma perspectiva intersubjetiva. Segundo Cuynet (2010, p. 8), "o soma individual poderia também portar as marcas de um sofrimento grupal traumático intersubjetivo e até mesmo transgeracional" e "a ausência de representação não evacua a dimensão do afeto que se exprime pela via somática".

O sofrimento grupal expressa-se nessas famílias, com a sintomatologia da obesidade, por uma falha da continência. Decherf (2005) propõe analisar diferentes formas de continência, uma das quais é a continência paradoxal, que se caracteriza pelo excesso e, ao mesmo tempo, insuficiência do continente familiar. Se a criança é confrontada a certa violência proveniente de fora, sem que a continência familiar favoreça suas capacidades de integração, o efeito sobre o sujeito é "uma ameaça de implosão psíquica", associada ao uso de mecanismos de defesa arcaicos, como a clivagem. Outra reação é o apoio na violência, seja em sua vertente ativa, seja na forma passiva de vitimização. A análise dos mecanismos em jogo na violência permite ao terapeuta diferenciar os lugares ocupados pelos membros da família.

Por meio do caso clínico de uma terapia familiar psicanalítica de uma família com uma filha obesa: Isabelle, discutiremos indícios de uma falha de continência no nível da dinâmica familiar com impactos em termos de sofrimento grupal. Interessamo-nos em analisar os vínculos familiares e maneira como Isabelle engaja-se nas alianças inconscientes assujeitizantes. Esta menina, reduzida ao silêncio, manifesta seu sofrimento psíquico pela sintomatologia da obesidade, em uma tentativa de subjetivação.

As características da problemática da obesidade descritas pela abordagem psicossomática, tais como carências narcísicas, dificuldades identitárias e de elaboração psíquica, puderam ser observados no caso estudado, como discutiremos a seguir.

 

A FAMÍLIA EM TERAPIA

Em um primeiro momento, encontro sozinha Liliane, depois de um encaminhamento médico para entrevistas de orientação em relação à educação de seus filhos. Ela tem três filhos da primeira união conjugal: Paul, quinze anos, Laurent, doze anos, e Isabelle, de dez anos. Liliane divorciou-se quando o filho mais velho tinha seis anos. Em sua segunda união conjugal deu à luz a Lily, de quatro anos. Liliane não vive na mesma casa que o pai de Lily, embora, como ela precisa, continuem a se encontrar e não estejam separados.

Desde as primeiras entrevistas individuais, ela relata que vive sozinha com seus quatro filhos, omitindo precisar as filiações paternas distintas. Ela é uma mulher alta e dinâmica com uma postura que me parece um pouco masculinizada. Com uma fala rápida e uma voz rouca, ela enumera diferentes eventos do cotidiano familiar e, parecendo não saber o que fazer, mostra-se sobrecarregada com o cuidado dos filhos. Encontro-me invadida por informações factuais, o que ocasiona uma confusão no curso de meu pensamento. Para além da ideia geral de uma dificuldade de exercer a autoridade parental, tenho a impressão de ter em mãos as peças de um quebra-cabeça que não posso montar. Respondendo sem restrição às minhas questões, ela evoca um problema de incesto vivido em sua infância, problema que ela tem a impressão de reviver por causa de várias situações atravessadas com seus próprios filhos. Sem que eu compreenda o que se passa e o motivo - diante da dificuldade da paciente em me escutar e a seu discurso, que suponho envolver uma forma de recusa da realidade - ela me conta que o serviço de assistência social de referência foi chamado pelo poder judiciário para atender sua família.

Considerando que Liliane fala essencialmente dos filhos e que seu discurso provoca em mim incompreensão e confusão, avalio que o enquadre de atendimento familiar em coterapia com uma colega seria mais adaptado. Proponho, então, a receber nesse novo enquadre juntamente com seus filhos, o que ela aceita sem reservas. Os pais das crianças dão seu aval, sendo que o pai da filha caçula, Lily, participa de duas entrevistas, mas em seguida deixa de vir.

Recebemos a família em coterapia, em atendimento familiar, no serviço de psiquiatria adulta de um Centro médico-psicológico. O enquadre dessa terapia comportou também um observador-anotador (psicólogo em formação em terapia familiar).

Desde as primeiras entrevistas familiares a coterapeuta e eu ficamos presas em um alvoroço, uma cacofonia; as crianças importunam e todos se interrompem. O enquadre é prejudicado, sendo preciso relembrarmos a regra de abstinência e estabelecermos o interdito de tocar. Rapidamente surgem no grupo questões relativas à nossa preocupação de não sermos confundidas com conselheiras pedagógicas.

Percebemos um atraso mental na filha mais velha e dificuldades de aprendizagem de Isabelle, associadas a um atraso na linguagem. Enquanto Paul prepara-se para ingressar em um curso profissionalizante, Isabelle encontra-se em uma classe especial. Toda a família, incluindo Laurent, parece ter atraso ou dificuldades no nível da linguagem. Além de Paul e Isabelle, Lily apresenta um problema de fala que requer acompanhamento fonoaudiólogo - problema que atinge também Liliane.

Durante as sessões, Lily faz o que quer e importuna, parecendo testar o enquadre. Ela provoca seus irmãos, muda de lugar, sem ouvir as diversas proibições colocadas pela mãe. Em uma ocasião, intervenho em um tom firme e diretivo para que não toque na tela do projetor, com medo de que se machucasse. Sua irmã e cúmplice, Isabelle, responde a seus gestos, enquanto tenta não ser dominada por ela. Isabelle é com frequência questionada por sua mãe, seja a acusando de incomodar sua irmã, seja pedindo que tome conta dela.

Na ocasião de sua vinda à sessão, o pai de Lily fala espontaneamente sobre os comportamentos das crianças, relatando que, por vezes, o irmão mais velho dorme com a caçula. A partir da sessão subsequente ele não retorna, declarando motivos profissionais. Liliane, por sua vez, não se mostra passiva, ameaça os filhos, mas sem sucesso, o que os agita, excita. A atmosfera é delituosa, a lei da autoridade parental não é ouvida. A partir do momento da sessão em que a coterapeuta coloca à disposição os materiais para desenhar, Lily e Isabelle conseguem se colocar, o que nos fornece um material clínico significativo.

Durante as sessões, Liliane reclama do ex-marido, pai dos três filhos mais velhos, que, diferentemente do previsto, costuma não os buscar nos finais de semana. Uma vez que esperam em vão, eles se irritam, o que a incomoda. Ela diz: "eu também sofro de ver meus filhos dizerem que o pai virá e ele não vem, mas eu não suporto o comportamento deles". Enquanto atravessa esse momento difícil com os filhos, ela acaba por culpá-los, ao invés de conter a decepção, o nervosismo e as emoções vivenciadas por eles, o que deixa a situação mais difícil.

Com frequência, Liliane dirige-se a Isabelle, que permanece silenciosa, dizendo: "isso diz respeito a você também, é a verdade o que eu estou falando!". Ela interpela seus filhos com um olhar insistente, sem perceber que sua demanda paradoxal não deixa espaço para a fala do outro. Enquanto desenha, Lily fala, de modo lacônico, que seus irmãos e sua irmã não querem falar. Quando os filhos exprimem sentimentos que não correspondem aos seus, Liliane reage imediatamente, adotando um tom agressivo e resistente, dizendo que eles mentem. Em seguida, ela acrescenta que o silêncio deles lhe faz mal e que esta atitude silenciosa repetitiva, em relação aos profissionais do serviço de assistência social, não permite que conheçam a verdade. Este tema da verdade alterna com aquele da mentira. Nesse momento, ocorre uma forma de esmagamento da fala do outro.

O ambiente familiar é descrito como violento, com brigas e insultos entre as crianças. Ao contrário do habitual, Isabelle se manifesta e consegue dizer o que sente: "Eu não estou feliz". Entretanto, destacamos com dificuldade suas falas, pois Liliane enche o espaço com uma enxurrada de falas e injúrias. Na maior parte do tempo Isabelle permanece quase muda, mas desenha regularmente. Ela faz o desenho de um barco ao qual dá o nome de "Titanic". Fazemos a associação entre a representação de um barco que afundou e as falas de Paul, que desde a segunda sessão, explica que os encontros poderiam ajudar a reconstruir a família: "Eu não sei, mas quando uma família é destruída, é preciso reconstruí-la, isso é o que penso". Quando tentamos assinalar outra relação entre o desenho e o que acontece na família, Liliane fala da viagem de cruzeiro de seus pais. Percebemos que ela tem dificuldade de acesso à metáfora, à linguagem simbólica, permanecendo presa a aspectos concretos da associação barco-cruzeiro. Assim como as crianças, temos muitas dificuldades para intervir.

Após a sessão, falamos sobre o clima de mal-estar e confusão a que somos confrontados, destacando nossa dificuldade, enquanto terapeutas, de emprestar nosso "aparelho de pensar os pensamentos" e nossa "função alfa" para a família. Os mecanismos de defesa aos quais essa família recorre tendem a manter a indiferenciação entre seus membros. As crianças, entretanto, mantêm vínculos distintos com a mãe. Paul, o mais velho, parece ter uma relação privilegiada com ela, chegando, às vezes, a manterem conversas paralelas. Temos, então, a impressão de observar um casal. Laurent, o caçula entre os meninos, consegue se expressar em alguns momentos, sempre na forma de deboche, enquanto Isabelle parece psiquicamente desligada. Lily, por sua vez, através de seus desenhos e comentários lacônicos, desempenha frequentemente o papel de porta-voz do grupo familiar.

Liliane revela que a família foi convocada pelo judiciário porque o pai dos filhos mais velhos não aceitou que eles falassem sozinhos com os profissionais do serviço de assistência social. As intervenções da justiça são vivenciadas como acusatórias e intrusivas, ao que se soma o medo de que os filhos sejam levados à instituição de acolhimento. A justiça é como uma ave de mau agouro, pairando sobre a terapia familiar. Liliane afirma que os problemas vêm do exterior da família e que é por causa deles que sua família precisa ir à justiça. Um desses problemas, segundo ela, provém da escola de Isabelle. Ela fala, então, da depressão de Isabelle na escola, referindo-se ao fato da filha conviver com onze meninos de comportamentos estranhos. Isabelle encontra-se em acompanhamento psicológico individual, mas diz não falar: "eu não entendo o que ele [terapeuta] diz". De forma breve, ela nomeia sua dificuldade em relação à alimentação: "minha mãe e minha avó dizem: 'se você está com fome, coma sua mão e guarde a outra para amanhã'". E então ela diz: "Eu sinto fome!". A questão do seu excesso de peso encontra-se marcada e entrelaçada por uma problemática familiar mais complexa.

Quando o divórcio dos pais é abordado, os filhos mais velhos evitam o assunto, refugiam-se nos fatos concretos e falam sobre o seu quotidiano. Preocupadas em manter o fio de nosso pensamento, eu a coterapeuta ficamos com essa questão em suspenso, até que entendemos as razões do divórcio: as agressões e as lesões na relação conjugal. Laurent diz que não sabia. Em um momento de grande tensão, a mãe evoca os efeitos da violência conjugal, como a prematuridade do filho mais velho, Paul, e o atraso de linguagem de Isabelle. Durante o tempo em que sua mãe fala, Lily agita-se e dificilmente permanece no lugar. Apesar de muito incentivo por parte das terapeutas, Isabelle pronuncia apenas algumas frases curtas, tendendo a refugiar-se no desenho. Ela faz então um desenho da família.

Conforme vemos na figura, a seguir, as representações dos membros da família estão abaixo do que é esperado para sua faixa etária. Os personagens são indiferenciados e expressam um corpo comum, tanto em termos das diferenças sexuais quanto intergeracionais. Sozinhos, os meninos comentam o desenho de Isabelle e adicionam um elemento de diferenciação sexual.

 

 

De forma fragmentada, percebemos que a euente, o discurso grupal revela que a assistente social e a escola identificam os irmãos de Isabelle como responsáveis pelos hematomas em seu corpo.

Durante outra sessão, Isabelle conta que é representante de turma e que foi convidada para o aniversário de um colega, revelando seu desejo de ir. Esforçamo-nos em apoiar sua fala e sua tentativa de subjetivação, enquanto Liliane continua a enfatizar a violência das crianças da escola: "Ela é empurrada, agredida, e eu estou aqui para protegê-la!". E acrescenta: "Ela é uma menina, e com os meninos nunca se sabe". Isso nos faz pensar na revelação feita por Liliane durante entrevista individual sobre o abuso sexual incestuoso que ela havia sofrido. Ela projeta sobre a filha suas angústias, sujeitando-a à ameaça que para ela recai sobre Isabelle, por ser uma menina. Como expressão de um movimento de indiferenciação, ela propõe que a filha siga o mesmo tratamento medicamentoso ao que está submetida. Isabelle é designada a um lugar, como um objeto de repetição da experiência materna, o que supomos indicar que há uma espécie de identificação adesiva no vínculo intersubjetivo entre mãe e filha.

Percebemos uma repetição transgeracional da violência física entre a geração dos pais e aquela dos filhos, com uma falha de continência familiar. Embora Liliane atribua os problemas de violência à escola, ela não se mostra indiferente ao que se passa em sua casa, revelando-se angustiada com a violência que percebe se repetir com seus filhos, o que - ainda que não tenha sido diretamente verbalizado - motivou sua procura pelo serviço.

O enunciado da violência na família provoca fortes emoções. Liliane diz: "estão dizendo que não sou uma boa mãe, tenho fortes crises de angústia". Depois, dirigindo-se aos filhos, ela diz: "se continuar assim, vocês vão ser deixados para trás". Em alguns momentos ela busca apoio perguntando às terapeutas: "Vocês veem violência nos desenhos das crianças que sofrem coisas muito graves, vocês podem ver nos desenhos? Aqui vocês não veem!?". No momento em que propõe levar para casa os desenhos com a frase "Eu te amo mãe", a agitação recomeça com frases que se entrechocam. Então, ela diz: "Eu não vou saltar pela janela, porque senão eles [assistentes sociais] vão abrigar vocês!".

Uma característica notável da dinâmica familiar é a passagem, sem transição, entre uma atmosfera grupal de caos, violência, confusão e outra de compartilhamento dos sentimentos de amor, em momentos descontraídos. Os diversos eventos surgem no discurso na forma de elementos beta (Bion, 1962), dificilmente metabolizáveis psiquicamente pelas terapeutas, criando uma atmosfera caótica. Sentimos nossos pensamentos presos, com uma incapacidade de rêverie, sendo estimulado apenas o ruído, com eventos enunciados de maneira fragmentada. Optamos, algumas vezes, por clivar nossa escuta.

O sofrimento do grupo familiar expressa-se pela falha de continência, revelada também pela ameaça de abandono enunciadas pela mãe e vivenciadas na relação com o pai. Como um retorno do recalcado, do conteúdo não elaborado, a violência física inscreve-se como um objeto de transmissão transgeracional, que se manifesta no casal e, em seguida, na fatria, traduzindo uma transgressão da lei.

A obesidade de Isabelle manifesta o fracasso de simbolização de uma experiência traumática dificilmente dizível em uma transmissão transgeracional (Schwaibold, 2014), experiência que remete ao incesto sofrido por Liliane. Com o contrato narcisista não sendo respeitado, o que é revelado pelas transgressões dos interditos, as gerações continuam a sofrer o impacto do que não foi elaborado pelas gerações precedentes. Assim, no caso dessa família, a obesidade de Isabelleinscreve-se na problemática familiar transgressiva, em que ela ocupa o lugar de porta-voz da violência da história familiar.

Face à angústia que a mãe projeta sobre ela, com a ideia de que ser menina pode ser perigoso, e diante do lugar que lhe é designado, Isabelle parece ter erigido seu sistema defensivo contra sua vida pulsional. Kipman (1979) refere-se a "uma fortaleza vazia contra as angústias extremamente precoces advindas da relação com o exterior", associando o espessamento da pele do paciente obeso a um movimento de sufocamento das possibilidades de florescimento da personalidade, o que cria um "self branco". O aparelho psíquico individual é submetido a uma submersão de palavras, de afetos, sendo a problemática da obesidade reveladora de uma disfunção do metabolismo psíquico da família. Uma terapia familiar pode modificar a qualidade do aparelho psíquico familiar (Kaës, 1993).

Durante o processo terapêutico, as crianças falam mais livremente e reconhecem as brigas e os insultos sem, no entanto, procurar um culpado. Isabelle passa a mostrar o desejo de destacar sua feminilidade. Através da formação de um grupo de coterapeutas foi possível apoiar o trabalho de pensamento da família. O neogrupo (Granjon, 2007) cria um envelope psíquico grupal (Anzieu, 1985) possibilitando metabolizar os elementos brutos graças à função alfa das coterapeutas (Berque, 2012).

A realização de um acompanhamento individual de Isabelle não parecia constituir um fator de prognóstico favorável, em função das dificuldades de expressão de suas capacidades psíquicas, o que certamente entrava um vínculo terapêutico em uma relação dual. A própria Isabelle exprime sua dificuldade de falar e escutar durante o acompanhamento psicológico individual: "Eu não entendo o que ela diz". O cenário de uma relação dual com um terapeuta, provavelmente, reatualiza as incapacidades psíquicas de Isabelle de se diferenciar na relação com a mãe. Em contrapartida, o enquadre grupal permitiu, ao interferir na qualidade do aparelho psíquico familiar, uma mobilização de suas capacidades psíquicas.

É difícil afirmar uma especificidade da relação transferencial-contra-transferencial da dinâmica familiar de famílias com filhos com obesidade. No entanto, esta problemática familiar testemunha uma falha de continência com uma predominância de movimentos de indiferenciação entre os membros, com uma forma de pensar marcadamente caracterizada pela presença de elementos beta. Estes elementos representam traços psíquicos deixados por eventos de vida, sinalizando a importância de um trabalho de terapia familiar psicanalítica, a qual se caracteriza como um trabalho de transformação psíquica desses elementos. A perspectiva, aqui discutida, de intervenção na problemática da obesidade infantil coloca em questão as fronteiras do enquadre institucional, pois ainda pode causar estranhamento receber em um serviço de psiquiatria adulta os pais com seus filhos pequenos.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
Caroline Berque
E-mail: caroline.berque78@gmail.com

Philippe Robert
E-mail: aprobert@wanadoo.fr

 

 

* Psicóloga clínica, terapeuta familiar, doutoranda na Universidade Paris Descartes (Paris V), Laboratório de Psicologia Clínica, Psicopatologia e Psicanálise. Roger Henry, 18, St Cyr L'Ecole, 78210, Paris.
** Psicanalista, professor titular na Universidade Paris Descartes (Paris V). Av. Edouard Vaillant, 71, Boulogne-Billacourt, 92774, Paris.

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