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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.14 no.1 São Paulo  2017

 

ARTIGO

 

Como nossos pais: a função da identificação na construção dos modelos

 

"Como nossos pais": the function of identification in the construction of models

 

"Como nossos pais": la función de identificación en la construcción de los modelos

 

 

Edilberto Clairefont Dias Maia*

Centro de Estudos de Psicanálise e Psicoterapia Analítica de Grupo do Pará

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor inicia transcrevendo um trecho da música do cantor brasileiro Belchior que diz que "apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais", para enfatizar a importância da identificação, objeto deste trabalho, pois dela depende o que o sujeito fará com a herança de seus ascendentes. A identificação marca o futuro do sujeito. Através da Teoria Paterno-Infantil de Winnicott, mostra-se que é pela osmose pela pele desse primeiro vínculo com a mãe que ocorrem as primeiras identificações, referindo-se à identificação projetiva e introjetiva, e se descreve as três formas sintáticas de identificação descritas por Eiguer. Finaliza mostrando que, apesar de todas as mudanças impostas pela sociedade pós-moderna, no investimento que os pais terão com seus bebês, estarão sempre presentes os valores e leis impostos pelo meio social onde vivem. Conclui-se que "minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais", também da música do cantor citado.

Palavras-chave: Identificação; Relação paterno-infantil; Família.


ABSTRACT

The author begins by transcribing a piece of music by the Brazilian singer Belchior, who says that "although we have done everything we have done, we are still the same and live as our parents", to emphasize the importance of identification, object of this work, because it will influence on what the subject will do with the inheritance of his ascendants. Identification marks the future of the subject. Through Winnicott's PaternoInfantile Theory, it shows that it is by the osmosis by the skin of that first bond with the mother that the first identifications occur, referring to the projective and introjective identification, and describes the three syntactic forms of identification described by Eiguer. The author ends by showing that despite all the changes imposed by postmodern society on the investment that parents will have with their babies, the values and laws imposed by the social environment in which they live will always be present. He concludes that "my pain is to realize that although we have done everything we have done, we are still the same and we live like our parents", from the song of the singer mentioned.

Keywords: Identification; Paternal and child relationship; Family.


RESUMEN

El autor inicia el texto com la transcripción de un fragmento de música del cantante brasileño Belchior, diciendo que "a pesar de que hemos hecho todo lo que hemos hecho, seguimos siendo los mismos y vivimos como nuestros padres", para hacer hincapié en la importancia de la identificación, el objeto de este trabajo, porque es de ella que depende lo que el sujeto va a hacer con la herencia de sus antepasados. La identificación marca el futuro del sujeto. Por medio de la Teoría Paterno-Infantil de Winnicott, se muestra que es por ósmosis a través de la piel em el primer vínculo con la madre que se producen las primeras identificaciones, en referencia a la identificación de proyección y introyección, y se describen las tres formas sintácticas de identificación descritas por Eiguer. El texto se termina mostrando que, a pesar de todos los cambios impuestos por la sociedad posmoderna, en la inversión que tienen los padres con sus bebés están siempre presentes los valores y las leyes impuestas por el entorno social en el que viven. Llegamos a la conclusión de que "mi dolor es darse cuenta de que a pesar de que hemos hecho todo lo que hemos hecho, seguimos siendo los mismos y vivimos como nuestros padres", también de la música del cantante brasileño.

Palabras clave: Identificación; Relación padre-hijo; Familia.


 

 

INTRODUÇÃO

Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo, tudo, tudo, tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos, ainda somos os mesmos, e vivemos como nossos pais (BELCHIOR,1976).

A intenção desse trabalho é discutir a importância da identificação na estruturação da personalidade do sujeito, porque dessa identificação depende o que a criança fará com o que herdou de seus ascendentes. A identificação marca o futuro das pessoas.

A identificação começa com o nascimento através da relação, inicialmente, com a mãe e depois com o pai. A mãe é quem apresenta o pai à criança e é quem o designa como genitor, então, antes de investir neles, e de se identificar com eles, a criança atribui aos pais seu lugar de pais.

Winnicott (1983), através da Teoria do Relacionamento Paterno-Infantil, mostra que no início o Ego do bebê é um Ego corporal, no qual a pele é o que dá a delimitação do interno e do externo, então, é por osmose pele a pele desse primeiro vínculo da criança com a mãe que vão ocorrer as primeiras identificações, pois a criança se identifica à dedicação de sua mãe, assim, quanto mais próximo a mãe chegar de uma compreensão das necessidades do bebê, melhor. É como se ele esperasse que existisse uma compreensão mágica de suas necessidades (WINNICOTT, 1983, p. 49).

Nas relações interpessoais, os Egos vão se impregnando e incluindo aspectos do funcionamento da personalidade do outro, com isso sofrendo modificações. A criança se identificará com os pais da mesma forma como os pais com a criança. Inconscientemente, eles oferecem ao filho seu modelo pessoal, mas também, sairão mudados. Estamos falando da identificação projetiva e introjetiva. A identificação projetiva precede a introjetiva. A esse primeiro mecanismo em questão Eiguer (2016, p. 14) deu a denominação de identificação projetiva de comunicação.

Em seu trabalho sobre função da identificação, Eiguer (2016) adota três formas sintáticas de identificação: atributiva, reflexiva e passiva.

Na identificação Atributiva, o movimento é centrífugo (que se afasta ou tende a se afastar do centro, que faz desviar-se do centro). "Eu o identifico a mim mesmo", "Eu o identifico a alguém que não sou eu, mas que faz parte de mim". O sujeito é ativo; o outro é passivo. Eiguer (2016, p.15) chama de "identificação do primeiro tipo".

Na identificação Reflexiva, o movimento é centrípeto (que se dirige para o centro; que procura aproximar-se do centro; que atrai para o centro). "Eu me identifico a você". Eiguer (2016, p.15) chama de "identificação do segundo tipo".

A identificação Passiva refere-se a três personagens, sendo que um é ativo (o outro), o segundo é passivo (o sujeito que é objeto dessa identificação), e o terceiro, que não está presente no vínculo, é, finalmente, bastante central. Exemplo: "Meu amigo me identifica com seu padrinho", "Meu amigo me trata ou me vivencia, me ama, como se eu fosse seu padrinho". "Eu sou identificado por um outro que vê em mim um terceiro". Ou de forma mais simples "parecido com seu padrinho". Esta é a "identificação do terceiro tipo" (EIGUER, 2016, p.15).

Múltiplas combinações são possíveis.

Fragmento de sessão

Neste fragmento de sessão, assinalamos a mobilização das identificações.

Trata-se de um grupo psicoterápico analítico e aberto, que vem funcionando desde 1990. No momento da presente análise, o grupo estava composto por cinco membros, todos do sexo feminino.

J, 43 anos, policial militar, solteira, participa do grupo há quatro anos, procurou tratamento dentro de um quadro depressivo. Faz uso de antidepressivo.

I, 38 anos, enfermeira, solteira, está há três anos no grupo, procurou tratamento também por causa de um processo depressivo. Fez uso de antidepressivo por dois anos. Hoje, está assintomática, só com a grupoterapia.

F, 50 anos, comerciante, separada, foi minha paciente cinco anos atrás. Atualmente está no grupo há um ano e voltou por causa de uma nova crise depressiva. Faz uso de medicamento.

E, 42 anos, advogada, professora universitária, divorciada. Está no grupo há um ano, procurou tratamento por causa do processo de divórcio, quando entrou num quadro depressivo. Faz uso de antidepressivo.

A, 21 anos, estudante de direito, solteira, procurou tratamento comigo já trazendo um diagnóstico de transtorno bipolar, faz uso de estalibilizador de humor e antidepressivo. Veio em busca de grupoterapia por indicação de uma tia que já havia feito terapia de grupo comigo. Está no grupo há quatro meses.

Essa sessão começa com J dizendo: "Dr. Edilberto, o senhor lembra que há dois anos minha filha passou no Vestibular, e que deveria ser um ano feliz, e foi terrível, lembra que ela se envolveu afetivamente com uma colega, uma menina que vivia lá por casa, dormia lá, até que comecei a ficar desconfiada e coloquei minha filha na parede e ela confirmou que elas estavam namorando, proibi a menina de entrar em casa, no final do ano, troquei minha filha de faculdade, parecia que as coisas tinham engrenado, ano passado, eu a vi saindo com alguns garotos, mas, do final do ano para cá, já peguei várias conversas de minha filha, novamente, com a mesma menina. Não sei mais o que fazer".

A diz: "Já que você está falando desse assunto, sobre isso, nunca falei aqui no grupo. Eu compreendo sua filha, já passei por uma situação semelhante, também sou homossexual. Sou de Benevides, cidade pequena, e sempre me senti atraída por meninas. Quando tinha 16 anos, comecei a namorar com uma amiga lá em Benevides, não comentávamos com ninguém, mas minha mãe percebeu, veio pra cima de mim, e fui forçada a contar que ela era minha namorada, minha vida virou um inferno. Minha mãe fez um escândalo, foi na casa da menina e contou pros pais dela A menina ficou com ódio de mim, não quis mais me ver. Fui expulsa de casa. Fiquei seis meses na casa de minha avó, comendo o pão que o diabo amassou. Precisou minhas tias conversarem muito com meus pais para eles me aceitarem de volta em casa".

A seguir, J diz: eu entendo a atitude dos seus pais, no meu caso, sou mãe solteira, crio minha filha sozinha e não quero essa vida pra ela, por isso tomei a atitude de trocá-la de faculdade. Quero que ela case, me dê netos, estou vendo elas voltarem a manter contato, e isso me apavora".

A intervém: "Meus pais foram muito duros comigo, minha mãe também falou que gostaria de me ver casada, dando netos pra eles, e que para viver com eles teria que ser daquela forma. No meio da confusão meu pai disse que eu parecia a Alice, foi ai que fui saber que a tia Alice era homossexual, e, que, quando eu era pequena, ela foi expulsa de casa por cauda do homossexualismo, foi para São Paulo e nunca mais voltou em Benevides. Compreendi, então, que para ficar com eles, teria que mudar meu comportamento. Hoje, continuo tendo atração por meninas, mas nunca mais me relacionei com elas, só com garotos, mas não sinto nada por meninos".

E se manifesta: "Essa questão de parecer com parentes é uma questão interessante. Depois daquele final de semana que meus filhos estavam com o pai, e que sai com umas amigas, bebi, e em vez de ir para casa, fui para a casa do Renato com a desculpa de que eu queria dormir com meus filhos, e que ele me expulsou de lá, me empurrando, me jogando no chão, e que quebrei as vidraças das janelas da varanda? Pois bem, semana passada estava conversando com meu irmão e ele disse que estou parecendo com minha mãe e minha avó. Minha avó se matou por causa de meu avô, e minha mãe enlouqueceu por amor ao meu pai. Meu pai era político e cheio de mulheres, desvalorizava minha mãe, mas ela sempre o colocava em primeiro lugar".

 

ANÁLISE

Podemos iniciar a análise desse fragmento de sessão, falando de identificação projetiva e introjetiva. Quando A diz: "eu compreendo sua filha, já passei por uma situação semelhante, também sou homossexual". e J diz: "eu entendo a atitude dos seus pais", nos parece que ambas colocam um certo número de elementos que lhes são próprios e que estes compartilham seus princípios, a partir daí introjetam e se identificam com seus traços pessoais, remetendo à Identificação Atributiva.

Podemos tratar esse fragmento de sessão também através da Identificação Reflexiva, quando A se identifica com a filha de J, enquanto que J se identifica aos pais de A.

A seguir, quando o pai de A diz que ela parecia com a tia Alice, irmã dele, homossexual, e quando o irmão de E diz que ela está parecendo com a avó, que se matou por causa de seu avô, e a mãe que enlouqueceu por amor a seu pai, o movimento é de estar ai presente a Identificação Passiva, quando aparecem os três personagens, onde o pai de A e o irmão de E são os (outros) ativos, A e E são os segundos passivos (sujeitos que são objetos dessas identificações), e a tia Alice de A, e a avó e a mãe de E são os terceiros que não estão presentes nos vínculos, porém, são bastante centrais. Nessas identificações a uma terceira pessoa, podemos ressaltar os efeitos transgeracionais. No caso de A, seu pai a identifica com a tia Alice, e o irmão de E a identifica com a avó e a mãe. Nessa forma de identificação, são levados em conta os afetos e o vínculo com relação ao objeto antepassado, então, por indução e sugestão, o pai de A faz o possível para que A se pareça com a tia Alice, e E pareça com a avó e a mãe, induzida por seu irmão. Isso pode suscitar uma Identificação reflexiva por parte de A e E, que acabam por se parecer com a tia, a avó e a mãe.

E, que já foi usuária regular de drogas, e hoje diz usar de forma recreativa, reconhece que vem exagerando no uso do álcool, e, com muita frequência vem perdendo o controle de seus atos. Pergunta-se: será que não vem se identificando com essa mãe desvalorizada e será que com isso pode estar erotizando sua marginalidade e degradação, o que pode a estar levando a um comportamento masoquista?

Finalizando as análises, quando A diz que sua mãe deseja que ela case e lhe dê netos, e que a partir dali ela nunca mais saiu com meninas, só com meninos, mesmo assim dizendo que não sente nada por eles, será que ai não houve apenas a introjeção precipitada do desejo da mãe e, nessas circunstâncias, a introjeção não pode se realizar em condições que permitam uma identificação? É o que Eiguer (2016, p.15) chama de incorporação. O que é introjetado passa a ser um objeto estranho, provocando uma devastação no interior. A é uma paciente que somatiza muito, com muita frequência chega nas sessões dizendo que esteve na urgência de seu plano de saúde (UNIMED) em crise de vômito.

 

Considerações finais

Como o tema deste trabalho é a identificação como modelo, e como a criança necessita de referências para a construção da personalidade, a família mostra-se importante. Por mais que esteja sujeita a mudanças condicionadas pelos fatores socioculturais de cada época, a família transmite sua herança genética e tem papel primordial na transmissão da cultura, estabelecendo uma continuidade psíquica entre as gerações.

Apesar de todas as mudanças impostas pela sociedade pós-moderna, no investimento que os pais terão com seu bebê estarão sempre presentes os valores e leis impostos pelo meio social onde estes vivem, é o que Piera Aulagnier (1979, apud CYPEL, 2016, p. 69) chama de "contrato narcisista", e onde em contrapartida, a criança demanda dos pais e do grupo o reconhecimento de pertencimento e de direito a um lugar na história pessoal e cultural. Aos pais cabe fazer esse lugar para o filho (CYPEL, 2016, p. 69).

A identificação aparece como um processo que diz respeito não somente à pessoa como aos outros, a começar por aquele ou aqueles a quem ela se identifica.

A identificação se estabelece numa relação de continuidade ou contiguidade com o outro, porém, a autonomia psíquica da pessoa deve estar madura o suficiente para que ela se reconheça como diferente do outro. Então, para se criar condições para uma identificação bem-sucedida, os pais vão conseguir criando uma espécie de atração para si.

Por tudo o que foi dito, finalizamos dizendo que: "minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo, tudo, tudo, tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos, ainda somos os mesmos, e vivemos como nossos pais" (BELCHIOR, 1976).

 

REFERÊNCIAS

CYPEL, L. R. C. Psicanálise dos Vínculos de Família e Casal e a Subjetivação do Indivíduo nos Tempos Atuais. In: GOMES, I. C.; FERNANDES, M. I. A.; LEVISKY, R. B. (org.). Diálogos psicanalíticos sobre família e casal. São Paulo: Escuta, 2016.         [ Links ]

EIGUER, A. Os Vínculos Intersubjetivos na Família: Função da Identificação. In: GOMES, I.C.; FERNANDES, M. I. A.; LEVISKY, R. B. (org.). Diálogos psicanalíticos sobre família e casal. São Paulo: Escuta, 2016.         [ Links ]

WINNICOTT, D. W. (Donald Woods). Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1990.         [ Links ]

WINNICOTT, D W. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Sulina, 1983.         [ Links ]

BELCHIOR. Álbum Alucinação. 1976. Philips Phonogram.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Edilberto Clairefont Dias Maia
E-mail: edilbertocdmaia@gmail.com
Av. Almirante Wandenkolk, 1243, Sala 606

Umarizal
CEP: 66055-030
Contatos: (91) 98915-9999/ 3223-8493

Recebido em: Maio de 2017
Avaliado em: Junho de 2017
Aceito em: junho de 2017.

 

 

* Psiquiatra e psicanalista, Presidente do Centro de Estudos de Psicanálise e Psicoterapia Analítica de Grupo do Pará, Ex-presidente da Associação Paraense de Psiquiatria

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