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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.14 no.2 São Paulo  2017

 

ARTIGO

 

Os grupos e a construção da subjetividade: quem é o estranho?

 

Groups and the construction of the subjectivity - who is the weird

 

Los grupos y la construcción de la subjectividad - quien es el siniestro

 

 

Lazslo A. Ávila1

Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto

 

 


RESUMO

O presente trabalho, de natureza conceitual, visa discutir os complexos vínculos entre os processos intersubjetivos que se dão nos grupos humanos e o permanente desenvolvimento da Subjetividade e da identidade individual. Abordaremos os vínculos familiares, determinadas noções antropológicas e alguns aspectos da Psicanálise das Configurações Vinculares.

Palavras chave: Grupos; Subjetividade; Psicanálise das Configurações Vinculares.


ABSTRACT

The present work, of a conceptual nature, aims to discuss the complex links between the intersubjective processes that occur in human groups and the permanent development of Subjectivity and individual identity. We will address the family ties, certain anthropological notions and some aspects of the Psychoanalysis of the Linking Configurations.

Keywords: Groups, Subjectivity; Linking Psychoanalysis Configurations.


RESUMEN

El presente trabajo, de naturaleza conceptual, pretende discutir los complejos vínculos entre los procesos intersubjetivos que se dan en los grupos humanos y el permanente desarrollo de la subjetividad y de la identidad individual. Vamos abordar los vínculos familiares, ciertas nociones antropológicas y algunos aspectos del Psicoanálisis de las Configuraciones Vinculares.

Palabras clave: Grupos; Subjetividad; Psicoanálisis de las Configuraciones Vinculares.


 

 

O presente trabalho, de natureza conceitual, visa discutir os complexos vínculos entre os processos intersubjetivos que se dão nos grupos humanos e o permanente desenvolvimento da Subjetividade e da identidade individual, desde antes do nascimento da pessoa até muito depois de sua extinção física. Pretendemos demonstrar, com exemplos tomados de diferentes fontes referenciais, que aquilo que consideramos objetivamente como unidade, ou seja, o Indivíduo deveria antes ser tomado em sua multiplicidade inerente, como agregado de interações humanas.

Campos de manifestação a serem considerados:

1) O casal humano e suas trocas emocionais;

2) A família e os projetos e desejos dos pais na constituição subjetiva de seus filhos;

3) A língua e demais sistemas simbólicos determinados culturalmente, como matrizes das configurações subjetivas;

4) O desenvolvimento do individuo humano nas suas interações desde a infância, educação, grupos de iguais na adolescência, e posteriormente nos demais contextos de sua socialização;

5) Os estudos antropológicos e etnológicos que abordam as diferentes possibilidades de construção da individualidade, do self e das participações no coletivo;

6) Os grupos enquanto objeto de estudo, análise e transformação dos indivíduos, a partir da imersão e circulação elaborativa dos afetos e representações, nos campos intrapsíquicos, intersubjetivos e trans-subjetivos. Pichon-Rivière, René Käes e Wilfred Bion são aqui os nortes referenciais.

Iniciemos nossa discussão pelo mais concreto e atual: um casal humano e o que se troca em sua interação cotidiana. Um homem e uma mulher se escolheram para formar um par. Que motivos determinaram sua escolha mútua? Sabemos, pela psicanálise, que não há encontro, mas sempre reencontro. Ou seja, a escolha, qualquer escolha, está sempre pré-determinada. Assim, esse homem escolhe essa mulher em particular, porque ela já lhe representa alguém que seu desejo antecipou. Esse homem já fez parte das fantasias e vivências edípicas dessa mulher, e já foi pré-formatado por elas. Um dia se encontram e constatam o quanto já representam um para o outro, mal se conhecem. Chamam de Amor isso.

E é de fato belo verificar a potência do Amor em trabalhar esses dois seres tão desiguais, tão complexos e únicos, cada um com sua trajetória de vida, seus sonhos, seus fracassos, sua singularidade trabalhada pelos acontecimentos da vida. Ao se unirem, vivem a ilusão do encontro perfeito, seguida rapidamente pela ação do principio da realidade e o confronto com a alteridade radical do outro enquanto outro. Aquilo que parecia tão familiar, de pronto é o estranho. Quem é você? Quem sou eu para você? O que estamos fazendo juntos?

A convivência, principalmente quando dura muitos anos, vai tornando-os semelhantes. Eles se parecem, mas continuam se julgando, se sentindo, e de fato sendo, tão estranhos, e tão reconhecíveis ao mesmo tempo. Dia-a-dia, tantas refeições juntos, tantos problemas compartilhados, sonhos e projetos, realizados ou não, situações de todo tipo, a multiplicidade dos eventos, dos obstáculos, das realizações, a imensa variedade que a vida vai tecendo. O casal compartilha, absorve, troca, refaz, conecta, significa. O vivido virá matéria incorporada, por isso o muito vivido faz com que se assemelhem, mais e mais. Se a vida leva um deles, o outro pode sentir-se amputado, desmembrado, e muita vez pode ver-se frente a uma encruzilhada: ir logo ao encontro do outro, que foi sua vida, ou seguir adiante, aceitando as mudanças e o desvanecimento da presença do outro, convertido em memória e inscrições psíquicas altamente significativas. E a vida segue, com seu preço de presença e mudança.

O casal também vive de modo imensamente significativo o ter filhos e criá-los. Filhos são uma experiência transformadora, inscrevem-se em todos os ambitos psíquicos, nos sonhos, nos medos, nas memórias, na autoestima, nos projetos de futuro, e nos significados das relações interpessoais. Interfere, assim, profundamente na interação do casal.

Ao virar três, o dois se perde para sempre. Daí o ódio ao filho, inteiramente suprimido, reprimido, transformado, mas ativo. Diz Groddeck que dessa lei ninguém escapa, onde há amor, também há ódio. Felizmente, para a espécie humana e nossa sobrevivência, os filhos trazem tal gama de satisfações que renunciamos a partes do nosso narcisismo e da intensa vinculação ao par, para nos abrirmos a essa novidade que é a criança. O filho abre seu caminho, a vida deseja renovar-se e obriga os pais a amar.

O filho nasce, mas seu nascimento simbólico foi há muito tempo, desde a infância e das vivências e resoluções edípicas de seus pais. No berço psíquico em que cada criança nasce já encontra entretecido o conjunto amplo e muitas vezes desconexo das fantasias e identificações de seus pais, entre si, com os seus próprios pais e de modo muito obscuro, com a longa cadeia dos antepassados de cada um. A transgeracionalidade marca destinos, pré-configura trajetórias de vida. São inúmeras suas marcas, seus vestígios e a moldagem que as questões deixadas por cada geração vai legando para as próximas gerações. Um exemplo que não deixa nenhuma dúvida é o Nome próprio que se carrega vida afora, prenhe de sentidos. O nome nos inscreve em uma linhagem: o sobrenome na linhagem dos antepassados, e o prenome nas redes de significação que os nossos pais nos imprimem. Chamar-se Hitler, Napoleão, Neymar, John Lennon, etc... É uma herança recebida que terá que ser resolvida por cada sujeito.

Esse tema nos conduz imediatamente a outro, mais vago, mas mais constituinte e essencial. Como se sujeita o Sujeito? Quais são as redes organizativas e disruptivas que pré-formam a cada um de nós? Como sujeitos humanos somos muito mais do que DNA, somos, cada um, uma história única. Contudo, essa história é amplamente determinada pela história coletiva que nos antecede e nos envolve. Não nascemos primeiro e depois nos tornamos brasileiros ou de outra nacionalidade, de gênero masculino ou feminino, de uma determinada etnia, pertencentes a tal classe social, residentes em certo local, cidade ou não, sendo filhos de tal pai e tal mãe, sendo primogênito, caçula ou qualquer outro lugar na ordem dos nascimentos, etc... Ou seja, já nascemos sendo algo, alguém, bastante sujeitado e trabalhado, muito antes de qualquer consciência ou ação possível no mundo. Somos pré-concebidos, pré-configurados, e, no entanto, abertos a um desdobramento de caminhos e destinos que não se pode pré-determinar. Não sabemos o que seremos, nem quando e nem onde.

Ao aprendermos a falar, o que é que estamos aprendendo? Uma língua é uma imensa constelação de sons e significados, de experiências vividas e pensadas e expressadas, um universo de sentidos, que vem atravessando gerações e gerações por milênios. Do ponto de vista linguístico, cada língua é um complexo aglomerado, muitas vezes impossível de rastrear em todos os seus elementos de formação, mas que é um todo vivo, em contínua transformação, já que é renovada e confirmada por cada um dos seus usuários, os portadores/transmissores/atores da língua. Sabe-se da íntima relação entre a linguagem e o pensamento. Os processos psíquicos de cada sujeito humano se articulam com os elementos linguísticos, de modo que se pode dizer que pensar é uma fala interna, e a fala é o pensamento que se externaliza. Mas observe-se, quando um sujeito usa qualquer palavra, constrói frases com uma gramática, quando articula sentidos e se comunica, ele está usando os elementos linguísticos que carregam, inerentemente, as experiências de seus antepassados. Somos capazes de falar, com grande facilidade, mas não somos capazes de aprender quantos sujeitos falam através de nós. Incontáveis outros falantes compuseram esse instrumento que agora empregamos e atualizamos, e nos sentimos tão criativos e originais, totalmente inconscientes e ignorantes sobre a origem dessa condição.

E a fala e a língua são apenas um dos aspectos do todo maior que é a Cultura que conforma o habitat do sujeito humano. Quando recorremos à compreensão antropológica e etnológica, constatamos que todas as nossas categorias de Sujeito, Mente, Corpo, Pensamento, Sentimento, Memória, Desejo, Angústia, Amor, Medo, Raiva, Família, Coletividade, etc., ou seja, todas as nossas categorias de representação, são completamente determinadas culturalmente. Não há fato humano que escape dessa determinação. Dois exemplos dão conta disso:

O corpo humano é organismo, ente biológico, isso é inescapável. Porem, corpo humano de fato, é o que a mente humana constrói, psicossoma, imagem corporal, esquema corporal, corpo simbólico, corpo erógeno, corpo trabalhado por cada formação cultural. A psicossomática psicanalítica tem incontáveis descrições de como a saúde, a doença, e no limite, a vida e a morte, não podem ser consideradas só no registro biológico, mas são extensamente determinadas pelos significados simbólicos.

Outra situação marcante: considera-se que determinados sentimentos seriam universais, e escapariam das particularizações de cada formação cultural específica. No entanto os relatos etnológicos mostram que o medo, por exemplo, pretensamente presente em qualquer ser humano, só existe se for assim conceituado, se houver uma representação social, um nome, uma expressão linguística que o designe. Caso contrário ele não existe.

Retomando então a questão do Estranho: se o estranho é o outro, é preciso reconhecer que esse outro me habita o tempo inteiro. Ele é todos os outros da minha história de vida.

Então: o que eu faço com o estranho? Eu o entranho. Eu o torno parte de mim, me identifico com ele, o "devoro", no sentido da antropofagia da Semana de Arte Moderna. Então, eu e o outro passamos a fazer parte do mesmo conjunto, grupo, cidade, país.

É basicamente isso o que realizamos com nossas técnicas de grupo, o Estranho se torna Eu. A imensa diversidade de experiências humanas, a inerente individualidade e singularidade de cada participante do grupo se encontram nos espelhamentos das transferências múltiplas, nas identificações entrecruzadas, e no sedimento comum da humanidade que nos constitui. "Nada do que é humano me é alheio".

 

REFERÊNCIAS

GRODDECK, G. Estudos psicanalíticos sobre Psicossomática. Trad. de Neusa Messias Soliz. São Paulo: Perspectiva, 1992, 310p.         [ Links ]

GRODDECK, G. Livro dIsso. Trad. José Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva, 1984. (Coleção Estudos, 83), 276p.         [ Links ]

 

Recebido em: 30.08.2017
Avaliado em: 20.09.2017
Aceito em: 10.11.2017

 

 

1 Psicologo, mestre e doutor (USP), livre docente da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, Membro do NESME e SPAGESP.

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