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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.15 no.1 São Paulo jan./jun. 2018

 

ARTIGO

 

Abrir a possibilidade para novas narrativas: um desafio

 

Open the possibility for new narratives: a challenge

 

Abrir la posibilidad para nuevas narrativas: un desafio

 

 

Angela Hiluey*

CEF-Centro de Estudos da Família Itupeva

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Uma diversidade de narrativas pode enriquecer a vida humana, dada a possibilidade de atribuir significado à experiência relacional desde a vida intrauterina até a morte, postula Linares (2003; 2014). Por outro lado, conta-se com a resistência do ser humano a rever suas visões. Dada tal resistência, neste trabalho tem-se como objetivo mostrar uma ferramenta para auxiliar na construção de novas narrativas: a atividade artística-lúdica no atendimento a casais e famílias sob a ótica da abordagem sistêmico-integrativa. Tal ferramenta tanto permite que o ser humano, sem se dar conta, expresse sua angústia, quanto permite ser uma intervenção terapêutica propriamente dita. Através de um caso clínico, será ilustrado o planejamento da atividade lúdica; o uso da atividade proposta; e seus resultados. Constatou-se que novas percepções puderam ser referidas, e as mesmas permitiram a construção de novas narrativas familiares.

Palavras-chave: narrativas familiares; atividade lúdica; atendimento a casais e famílias; abordagem sistêmico-integrativa.


ABSTRACT

A variety of narratives can enrich human life, given the possibility of assigning meaning to the relational experience from intrauterine life until the death, postulates Linares (2003, 2014). On the other hand, there is the resistance of the human being to revise its visions. Given this resistance, this work aims to present a tool to assist in the construction of new narratives: the artistic-ludic activity to care for couples and families from the perspective of the systemic-integrative approach. Such a tool allows the human being, without realizing it, to expresses his anguish, as it allows to be a therapeutic intervention properly said. Through a clinical case, will be illustrated the planning of the ludic activity; the use of the proposed activity; and their results. It was observed that new perceptions could be referred to, and they allowed the construction of new family narratives.

Keywords: family narratives; ludic activity; care for couples and families; systemic-integrative approach.


RESUMEN

Una diversidad de narrativas puede enriquecer la vida humana, dada la posibilidad de atribuir significado a la experiencia relacional desde la vida intrauterina hasta la muerte, postula Linares (2003; 2015). Por otro lado, se cuenta con la resistencia del ser humano a revisar sus visiones. Dada tal resistencia, en este trabajo se tiene como objetivo mostrar una herramienta para auxiliar en la construcción de nuevas narrativas: la actividad artística-lúdica en la atención a parejas y familias bajo la óptica del abordaje sistémico-integrativa. Tal herramienta permite tanto que el ser humano, sin darse cuenta, expresa su angustia, como permite ser una intervención terapéutica propiamente dicha. A través de un caso clínico, se ilustra la planificación de la actividad lúdica; el uso de la actividad propuesta; y sus resultados. Se constató que nuevas percepciones pudieron ser referidas, y las mismas permitieron la construcción de nuevas narrativas familiares.

Palabras clave: narrativas familiares; actividad lúdica; atención a parejas y familias; enfoque sistémico-integrativo.


 

 

"O mundo não é o que penso, mas o que vivo, estou aberto ao
mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo,
ele é inesgotável."

(Merleau-Ponty, 1971, p.14)

 

Esta epígrafe nos oferece a oportunidade de nos apercebermos que enquanto tivermos vida teremos a possibilidade de aprender e assim poderemos tecer diferentes narrativas individuais e familiares.

Tais possibilidades podem nos estimular a enfrentar os desafios com os quais nos defrontamos na prática clínica. Temos uma vasta bibliografia na terapia familiar e em outros campos do conhecimento que são o nosso alicerce para seguirmos em frente. Tais pressupostos poderão auxiliar a autora a apresentar o objetivo desse trabalho.

Linares (2014) nos abre uma primeira porta para enfrentarmos tal desafio quando se refere ao sentido de sua expressão: Terapia Familiar Ultramoderna. O autor explicita que tem com essa terminologia o objetivo de estimular a abertura das janelas do território sistêmico para ares novos para que se alimente com aquilo que há de muito bom já presente na tradição psicoterapêutica.

No entanto estar aberto ao mundo, conforme a epígrafe permite vislumbrar, não é necessariamente uma possibilidade tão natural, e as palavras de Bion (1992, p.9-10) nos confirmam tal vislumbre:

(...) Mas todos nós odiamos a tempestade que implica o ato de rever nossas visões; é muito perturbador pensar que poderíamos chegar a mudar de parceiro, ou profissão, ou país, ou sociedade; assim, a pressão para dizer "daqui não passo" estabelece uma resistência ao aprendizado (...). (BION, 1992, p 9-10).

A presença da abordagem sistêmico integrativa por outro lado materializa o incentivo de Linares (2014) propiciando a integração das múltiplas escolas sistêmicas às contribuições de outras abordagens, dentre elas a psicanalítica, bem como de abordagens advindas de outros campos do conhecimento. Tal integração é fruto de uma postura aberta que favorece o nosso enriquecimento para nos ocuparmos das situações as quais a prática clínica nos apresenta, onde se constata que a mudança não é algo tão simples de ser conseguido.

Selvini, Sorrentino, Cirillo (2016) utilizam o termo pensamento sistêmico, complexo e integrado e, assim, revelam estarem intervindo, segundo uma postura integrativa.

Linares (2003; 2015) por sua vez ao escrever que narrativa é a atribuição de significado à experiência relacional, que ocorrerá desde a vida intrauterina até a morte, nos mostra quão rica pode ser nossa vida com uma diversidade de narrativas. Essa narrativa, segundo Linares, é o ato de descrever a si mesmo e ao que lhe acontece, dando a isso uma coerência, o que por sua vez é cultural e pessoal.

Laso (2017) pode auxiliar a especificar o que favorece as mudanças. Laso (2017) discorre sobre como vem levando em conta e intervindo sobre o aspecto emocional na terapia familiar e de casal. Esse autor destaca dois princípios fundamentais para viabilizar a mudança emocional: (1) compreender o lugar onde se está e (2) ver ou ao menos vislumbrar o lugar para onde se dirigir. Compreensão e visualização são conquistas advindas da experiência emocional desses grupos, segundo o autor.

As considerações dos autores citados permitem evidenciar que o objetivo desse trabalho é mostrar uma ferramenta para auxiliar a construir novas narrativas dadas as dificuldades implicadas nesse processo. Tal ferramenta é constituída pelas expressões artísticas e o brincar, atividades descritas em outros campos do conhecimento e/ou modelos teóricos que podem ser integradas ao atendimento de casais e famílias.

Tornam-se importantes ferramentas uma vez que a possibilidade de escrever novas histórias é inesgotável. Por outro lado, já que sabemos que reavaliar nossas posições é assustador, que precisamos nos dar conta de nosso lugar na relação (o que ainda implica outras gerações) bem como visualizar novos caminhos antes de seguir adiante podemos perceber a complexidade do processo. Sendo assim, ter novas ferramentas que possam abrir possibilidades para novas narrativas pode nos ser útil na prática clínica.

Pereira (2010) ao discorrer sobre o tipo de intervenção para promover a Resiliência Familiar mostra que a mesma deve permitir que se reconheça na narrativa familiar o sofrimento, que dê sentido ao ocorrido e um significado que possa ser aceito por todos os membros da família. Ou seja, nesse contexto continente como recomenda Pereira (2010) uma tempestade emocional como postula Bion está vigente precisando ser nomeada. Esta afirmação permite o reforço da tese sobre a relevância de mecanismos para abrir possibilidades para construção de novas narrativas.

Nesse trabalho o objetivo é apresentar a atividade artística- lúdica como útil ferramenta para a terapia de casal e família ao mesmo tempo em que evidenciar tanto a relevância como o que está implicado no planejamento da mesma pelo terapeuta para se favorecer a possibilidade de conversar sobre as dificuldades vividas.

Fazem-se, então, necessárias algumas considerações sobre as possibilidades desse instrumental.

Kenzler (1995) escreveu que o ser humano se defende das emoções e para tanto utiliza mecanismos de defesa. Sendo assim, segundo Kenzler (1995) o uso de técnicas em que o ser humano expressa sua angústia, sem perceber o que está fazendo pode ser significativo. Aqui temos as artes e o brincar.

Fernandes (2003) por sua vez especifica diferentes linguagens que transmitem a informação tais como: as atitudes, a mímica, a palavra, a escrita, o desenho. A arte, segundo Fernandes (2003) em suas cores e sons, melodias, ritmos, compõe e expressa.

Dentre essas diferentes maneiras de comunicação está o brincar como escreve Winnicott (1971).

Green (2013) completa escrevendo que na realidade externa existe horror demais: guerra, delinquência, catástrofes naturais, epidemias, desemprego e terrorismo nesse nosso mundo. Grenn (2013) pergunta-se como suportaríamos todos os traumas causados pela realidade sem o brincar onde no caso das crianças todos esses temas se encontram.

Andrade (1995) escreveu que nas diversas expressões artísticas o homem se coloca diante da realidade, ao expressar por meio de uma simbolização (a obra de arte) como estrutura seu mundo interior. A arte, pode, também, segundo ele, ser terapêutica, pois permite acessar a emoção tanto do criador como no público participante. O criador e o produto da criação são o porta-voz de como o homem aliou as sensações e percepções frutos de sua experiência pessoal e relacional. Através da arte forças oponentes podem ser integradas graças a sua qualidade integrativa.

Hiluey (2004; 2007; 2008) no contexto da investigação com alunos-médicos e famílias pode constatar a relevância de tal ferramenta para favorecer tanto o despontar do que angustia como para integrar percepções e informações. Novos caminhos podiam ser vislumbrados.

Para tanto uma ilustração prática parece ser oportuna e aqui se segue.

Pode-se constatar que "enganar" era o termo que melhor exprimia aquilo que vivia a Família Silva com seu filho de 11 anos. Essa vivência de ser enganado, respaldada por situações concretas gerava um sentimento de falta de confiança dos pais para com seu filho. A terapeuta tinha dados que lhe permitiam pensar que para os pais se aperceberem de seu filho não era algo simples. Eles possuíam alguns princípios e formas de educar filhos alinhados com as gerações anteriores e sua própria vivência enquanto filhos para os guiarem. Isso interferia significativamente impedindo que pudesse circular reconhecimento, valorização e carinho entre eles, o que favoreceria a possibilidade de seu filho ter uma vivência de ser amado, como descreveu Linares (2014).

A terapeuta optou por algumas técnicas expressivas as quais permitiram que um espaço fosse aberto para gerar novas narrativas que propiciaram a Família Silva experimentar um clima de confiança. Algumas das técnicas foram:

1) genograma lúdico que favoreceu que conversassem sobre as características das figuras de animais escolhidas para representar alguns membros da família o que gerou novas ideias sobre o relacionamento entre eles. Por exemplo o leopardo como um animal solitário; o hipopótamo como um animal altamente violento apesar de seus olhos doces. O diálogo possibilitou o reconhecimento da dinâmica estabelecida entre eles.

2) cada um escolher miniaturas em madeira de personagens, pessoas, animais, aves, objetos. A seguir se propunha conseguir as miniaturas que quisesse solicitando ao outro. Alguns dos temas conversados nesse jogo foram: que percebiam que através de truques até mímicos se engana para conseguir o que se quer; se aperceberam que tem coisas que não se quer dar; quem é enganado fica triste e com raiva.

3) leitura de conto infantil. Por exemplo: A toupeira que queria ver o cometa, de Rubem Alves. Onde se pode conversar sobre a prisão decorrente das próprias convicções que impedem de ver o que está diante dos olhos.

4) Ouvir a música: "Apenas tenha certeza que nunca está sozinho" (93 Million Miles). Solicitou-se que com recursos não verbais mostrassem como lhes chegou essa música. Pode-se conversar tanto sobre o que cada um esperava dos outros membros da família como foram constatando o que lhes era possível. Pode-se sinalizar que a confiança parecia estar vindo a ser uma experiência possível entre eles.

Em sessões com o casal parental, o casal pode rever suas convicções sobre como deveriam se portar como pais, versus sobre o que lhes era possível ser. Também puderam se aperceber de novas características do filho, até então não percebidas. Diziam eles: como a toupeira (referindo-se à personagem do livro infantil).

E assim uma nova narrativa despontou. Nessa nova história pais e filho lutavam focando três instâncias: a do querer, poder e dever enquanto iam se transformando, em família. Não estavam sozinhos, percebiam que tinham com quem contar, podiam confiar.

Comentários: a atividade artística lúdica

1) permite que se trate de temas penosos com seriedade, firmeza e humor, sem necessariamente deixar de chorar e/ou mesmo ficar bravo;

2) o terapeuta deve propor atividades que no seu entender propiciarão que surjam os temas que segundo sua percepção estão circulando no grupo familiar;

3) deve-se levar em conta as características das pessoas da família para escolher a atividade lúdica que possa lhes ser possível. Nem todas as pessoas se dispõe a brincar, mas dependendo da brincadeira até podem se dispor;

4) aqueles terapeutas que tenham uma experiência no trabalho com crianças e adolescentes, em especial em ludoterapia, terão um conhecimento relevante para utilizarem essa ferramenta no atendimento de casais e famílias.

5) o terapeuta deve ser significativamente participativo e utilizar seus conhecimentos teórico-técnicos em terapia familiar para fazer alinhamentos ao longo da sessão a partir das novas informações e percepções circulantes.

No entanto mesmo estimulados por novas ideias vale lembrarmo-nos da mensagem de Antonio Machado: Caminhante, não há caminho. O caminho se faz ao caminhar.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
Angela Hiluey
E-mail: angelahiluey@yahoo.com.br

 

 

* Psicóloga; Doutora em Educação pela FE/USP; Pós-Doutora em Terapia Familiar pela Universidade Autônoma de Barcelona/Espanha; Diretora e Docente do CEF-Centro de Estudos da Família Itupeva – escola associada a RELATES-Rede Européia e Latino-americana de Escolas Sistêmicas; Member of the EFTA - European Family Therapy Association; membro titular da ABRATEF e da APTF.

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