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Vínculo

Print version ISSN 1806-2490

Vínculo vol.16 no.1 São Paulo Jan./June 2019

http://dx.doi.org/10.32467/issn.1982-1492v16n1p17-28 

ARTIGO

DOI – 10.32467/issn.1982-1492v16n1p17-28

 

Os bastidores psíquicos do suicídio: uma compreensão psicanalítica

 

The psychic backstage of suicide: a psychoanalytic approach

 

Los bastidores psíquicos del suicidio: una comprensión psicoanalítica

 

 

Natália Gallo Mendes Ferracioli1; Érika Arantes de Oliveira-Cardoso2; Kelly Graziani Giacchero Vedana3; Sandra Cristina Pillon4; Adriana Inocenti Miasso5; Jacqueline de Souza6; Eduardo Name Risk7; Wanderlei Abadio de Oliveira8; Carolina Leonidas9; Manoel Antonio dos Santos10

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O suicídio é considerado um problema de saúde pública em escala planetária, com impactos não apenas na esfera interpessoal e familiar, como também econômica e social. Devido à sua proximidade com a finitude humana, um tema tabu na sociedade ocidental, o suicídio atrai estigmas e preconceitos que dificultam uma abordagem técnica isenta de juízos morais. Isso inibe o desenvolvimento de métodos de assistência que possam atender as necessidades do indivíduo com comportamento suicida, de seus familiares e da comunidade. Diante desse cenário, este estudo teve por objetivo apresentar uma compreensão psicanalítica do fenômeno do suicídio, fomentando reflexões que podem subsidiar os cuidados terapêuticos e as propostas preventivas e de promoção à saúde. Conclui-se que ainda persiste o enigma que sempre rondou o comportamento suicida em diferentes épocas e sociedades, como a motivação pessoal para o ato e a influência relativa de fatores emocionais, familiares, sociais e econômicos sobre sua concretização.

Palavras-Chave: suicídio; comportamento suicida; psicanálise; desejo de morte.


ABSTRACT

Suicide is considered a public health problem on a planetary scale, with impacts not only in the interpersonal and family sphere, but also economic and social. Because of its proximity to human finiteness, a taboo subject in Western society, suicide attracts stigmas and prejudices that hinder a technical approach devoid of moral judgments. This inhibits the development of care methods that can meet the needs of the individual with suicidal behavior, family and community. Given this scenario, this study aimed to present a psychoanalytic understanding of the phenomenon of suicide, fostering reflections that can subsidize therapeutic care and preventive and health promotion proposals. It is concluded that the enigma that has always surrounded suicidal behavior in different times and societies, such as the personal motivation for the act and the relative influence of emotional, family, social and economic factors on its concretization still persists.

Keywords: suicide; suicidal behavior; psychoanalysis; desire of death.


RESUMEN

El suicidio es considerado un problema de salud pública a escala planetaria, con impactos no sólo en la esfera interpersonal y familiar, sino también económica y social. Debido a su proximidad a la finitud humana, un tema tabú en la sociedad occidental, el suicidio atrae estigmas y prejuicios que dificultan un enfoque técnico exento de juicios morales. Esto inhibe el desarrollo de métodos de asistencia que puedan satisfacer las necesidades del individuo con comportamiento suicida, de sus familiares y de la comunidad. Ante este escenario, este estudio tuvo por objetivo presentar una comprensión psicoanalítica del fenómeno del suicidio, fomentando reflexiones que pueden subsidiar los cuidados terapéuticos y las propuestas preventivas y de promoción a la salud. Se concluye que aún persiste el enigma que siempre rondó el comportamiento suicida en diferentes épocas y sociedades, como la motivación personal para el acto y la influencia relativa de factores emocionales, familiares, sociales y económicos sobre su concreción.

Palabras clave: suicidio; comportamiento suicida; psicoanálisis; deseo de muerte.


 

 

INTRODUÇÃO

Não estar morto não significa estar vivo.
E. E. Cummings

O suicídio se configura como um problema de saúde pública em escala mundial (World Health Organization - WHO, 1998), com impactos não apenas na esfera interpessoal e familiar, como também econômica e social. Devido à sua proximidade com a finitude humana, um tema tabu na sociedade ocidental, o suicídio atrai estigmas e preconceitos que dificultam uma abordagem técnica isenta de juízos morais (Labaki, 2006). Isso inibe o desenvolvimento de métodos de assistência que possam atender as necessidades do indivíduo com comportamento suicida, de seus familiares e da comunidade.

Em virtude dos tabus associados ao suicídio ainda há muito o que se investigar nesse campo até que se tenha uma compreensão mais completa e abrangente desse fenômeno psicossocial multifacetado. O comportamento suicida pode ser analisado sob diversos enfoques e abordagens psicológicas, que têm em comum a crença de que o indivíduo que atenta contra a própria vida está, na verdade, almejando se livrar de uma dor intolerável, que o impede de vislumbrar outra saída possível para seu sofrimento (Botega, Rapeli, & Cais, 2006).

A atitude autodestrutiva é uma das maiores incógnitas que desafiam o conhecimento psicológico (Santos, 2017). Grosso modo, os estudos se dividem entre duas vertentes: aqueles que identificam no indivíduo que se aproxima do autoextermínio um transtorno mental preexistente e aqueles que argumentam que nem sempre se pode associar o suicídio a um quadro psicopatológico de base. De fato, a tentação de equacionar o suicídio com uma mera manifestação de arrematada loucura nos parece ser reducionista demais. Essa visão simplificadora começou a prosperar na sociedade ocidental após o advento triunfal da biomedicina, sustentada pelo discurso racionalista fundado na lógica cartesiana de separação entre corpo e mente. Nas civilizações orientais há uma visão completamente diferente da morte auto imposta, inclusive com períodos históricos em que o suicídio ritual era visto como um ato sublime de defesa da honra, como o haraquiri, forma de suicídio ritual praticada no Japão tradicional por guerreiros e nobres, que rasgavam o ventre à faca ou com a lâmina do sabre.

De qualquer modo, ainda persistem os grandes enigmas que sempre cercaram o comportamento suicida em diferentes épocas e sociedades, como a motivação pessoal para o ato e a influência relativa de fatores emocionais, familiares, sociais e econômicos sobre sua concretização (Botega, 2015). Desse modo, permanecem vivas as inquietações humanas em torno do assunto, tais como: o que impulsiona alguém a tirar a própria vida? O que faz uma pessoa desejar cessar a própria existência? E o que a faz ter menos medo da morte do que da vida?

Diante desse cenário repleto de arestas e paradoxos, este estudo teve por objetivo apresentar uma compreensão psicanalítica do fenômeno do suicídio, com a expectativa de que esses aportes teóricos possam fomentar reflexões que subsidiem a prestação de cuidados de saúde, especialmente em termos de programas e intervenções preventivas.

 

Método

Trata-se de um estudo teórico-reflexivo, que toma como fundamento a teoria psicanalítica, com vistas a colher subsídios e deduzir recomendações gerais que possam nortear diretrizes e orientações de atuação prática do psicoterapeuta no manejo dos casos de comportamento suicida.

 

Os bastidores psíquicos do suicídio: uma compreensão psicanalítica

O desejo de morte pode ser definido como um desejo inconsciente de morrer, que se manifesta em comportamentos autodestrutivos ou perigosos. Na perspectiva psicanalítica, o suicídio pode ser entendido como uma situação psicótica, na qual o indivíduo precisa sair "fora de si" para poder atacar a si mesmo (Dias, 1991). No entanto, a pessoa não está necessariamente vivenciando um estado psicótico ou apresentando sintomas dessa natureza, porque basta um instante de rebaixamento na capacidade de autodefesa do ego para que o impulso suicida irrompa na consciência de modo avassalador, expressando em ação (passagem ao ato, acting-out) os núcleos conflitivos da vida intrapsíquica. Nota-se, na maioria das vezes, a coexistência ambivalente entre desejos e atitudes antagônicas, que levam o indivíduo a um impasse, que traduz sua indecisão frente à vida. Ele "deseja morrer e, simultaneamente, deseja ser resgatado ou salvo. Atos estereotipados de tomar psicotrópicos e telefonar em seguida para conhecidos solicitando ajuda expressam ambas as faces do ato" (Bertolote, Mello-Santos, & Botega, 2010, p. S89).

Uma das primeiras menções ao comportamento suicida na obra de Freud aparece em Sobre a psicopatologia da vida cotidiana (Freud, 1901/1996a). Nesse texto seminal, o autor reservou um capítulo para descrever os "equívocos na ação", que segundo ele são formados da mesma maneira que os lapsos da fala. Há em ambos um desvio do que era intencionado originalmente. Como exemplos de equívocos na ação Freud elenca situações nas quais os atos praticados pelo sujeito sugerem determinações inconscientes escamoteadas sob a forma de equívocos e falhas, como pequenos acidentes domésticos, uso inadequado de objetos, quedas, escorregões, passos em falso e ferimentos auto infligidos.

Freud argumenta que jamais se pode excluir o suicídio como possível desenlace de um conflito psíquico (Freud, 1901/1996a, p. 181). Tentativas de suicídio ou suicídio consumado podem revelar uma intenção inconsciente, que eventualmente aparece mascarada como um acidente casual, um passo em falso, um tropeço ou escorregão seguido de queda. Esse desfecho seria, na verdade, resultado de uma tendência à autodestruição, que também pode se expressar nos ferimentos auto infligidos. Segundo Freud os ferimentos auto aplicados são produtos de uma formação de compromisso entre a pulsão de autodestruição e as forças que ainda se opõem à sua livre manifestação no consciente. Ou seja, resultam de uma luta encarniçada entre o impulso inconsciente que insiste e a barreira consciente que resiste.

Na concepção freudiana, o ego investe a tendência interna à destrutividade contra si mesmo, em um movimento próprio da melancolia. No texto clássico Luto e melancolia, Freud (Freud, 1917[1915]/1996b) descreve a identificação melancólica, que opera de acordo com a seguinte lógica: o ego se sente hostilizado e agredido pelo mundo externo; isso gera sentimentos hostis do eu contra o ambiente; na impossibilidade de realizar a descarga do impulso agressivo no mundo externo, o ego trata a si mesmo como um objeto, o que lhe permite fustigar e aniquilar a si próprio. Assim, a destrutividade contida na pulsão de morte é desviada e a potência disruptiva se volta com toda força contra o próprio ego, transbordando em violência que culmina no comportamento suicida. Desse modo, o suicídio pode ser visto como uma espécie de homicídio em que vítima e assassino coincidem, são a mesma pessoa (Dias, 1991).

Em outras palavras, todo suicídio seria um ato de auto assassinato. Nessa direção, trata-se de uma passagem ao ato, uma atuação implacável da tendência autodestrutiva que sobrepuja as barreiras do ego e da pulsão de autopreservação. A melancolia escancara algo estrutural, mas que geralmente permanece encoberto, que é o fato de o eu ser tomado como objeto de crítica e mortificação, graças a uma identificação com o objeto perdido. Isso permite que o indivíduo, ao se queixar de si mesmo, "preste queixa" do objeto, isto é, revide e se vingue de algum modo do abandono sofrido.

Desse modo, Freud (1917[1915/1996b) articula a melancolia ao suicídio. Na melancolia, o "eu" se revolta contra a perda, em vez de iniciar um trabalho de luto por meio do qual pudesse se conformar e se confortar. O "eu" se identifica maciçamente com o objeto perdido, a ponto de se deixar se arrastar e se perder junto a ele. Exaurida de suas forças, a vida se esvai e o eu, subjugado e debilitado, se esvazia progressivamente com a violência devastadora das projeções. Freud argumenta que a melancolia é como se fosse uma ferida aberta; atualizando a metáfora para a era contemporânea, podemos pensar em um buraco negro que suga vorazmente toda a libido, produzindo dor incessante e empobrecimento do ego. Outra maneira de conceber o que acontece nesse cenário psíquico é afirmar que se trata de uma entrega radical do eu ao objeto. Em um ato de submissão sacrificial, o "eu" se dobra, se curva, sucumbe e se rende totalmente, esgotando suas reservas estratégicas de autopreservação. Com isso, a sobrevivência psíquica fica ameaçada.

Por ser dinâmico, o quadro melancólico pode se reverter em episódio de mania, caracterizado por exaltação e agitação extremas. O "eu" pode transitar de um estado em que está completamente dominado e subjugado pelo objeto para uma situação na qual parece ter superado o luto pela perda do objeto. O triunfo maníaco se completa quando o eu, sentindo-se revigorado, se reconhece como sendo melhor do que o objeto.

Em suma, no percurso de construção de sua obra, Freud identifica uma tendência à autodestruição implícita nos ferimentos auto infligidos e nos suicídios, quer sejam consumados ou não. Essa tendência é referida na trajetória de construção teórica primeiramente como o sadismo que retorna ao eu e, em um momento posterior da teorização, a partir de 1920, ela emerge como manifestação pura, não vinculada, da pulsão de morte. Uma das vertentes da pulsão de morte, nos termos empregados por Freud, é "o sadismo intensificado do superego a que o ego se submete" (Freud, 1920/1996c, p. 210). O retorno do sadismo contra o próprio eu ocorre sempre que uma supressão cultural das pulsões impede que uma parte substancial dos componentes pulsionais destrutivos do indivíduo seja exercida (p. 211).

A supressão da pulsão geralmente resulta em um sentimento de culpa, que seria para Freud um subproduto do sadismo que se volta contra o eu. Por conseguinte, poderíamos pensar que a consciência de uma pessoa tende a se tornar mais rigorosa e vigilante quanto mais ela se abstém de direcionar suas tendências agressivas ao outro. Freud argumenta que temos a tendência de pensar que um homem que evita cometer atos agressivos, indesejáveis do ponto de vista da cultura, terá uma consciência cada vez mais sensível e amadurecida. "A situação geralmente se apresenta como se os requisitos éticos fossem a coisa primária e a renúncia às pulsões deles decorresse" (Freud, 1920/1996c, p. 212). Mas, na realidade ocorre o inverso: a primeira renúncia pulsional é forçada, segundo Freud, por poderes externos e somente isso cria o senso ético do indivíduo. Esse senso se expressa no consciente e exige, posteriormente, uma nova renúncia de gratificação pulsional. Em suma, não é a renúncia à gratificação que cria o senso ético, mas a repressão que provém do mundo externo que deflagra esse imperativo e o torna uma realidade psíquica. É este o fundamento que promoverá as condições, na esfera social, para que se sustente o princípio ético da coexistência entre os indivíduos, baseada na tolerância e convivência dos opostos.

A presença de uma pulsão que se satisfaz na autodestruição já havia sido antevista pelo menos desde 1901, em Sobre a psicopatologia da vida cotidiana (Freud, 1901/1996a). Mas é nos anos 1920 que o autor iria elaborar de forma mais engenhosa essa força que havia sido intuída nas décadas anteriores, todavia ainda sem a sofisticação dos acréscimos metapsicológicos que viriam a ser desenvolvidos posteriormente. Freud (1920/1996c) postulou a existência de duas tendências antagônicas do movimento pulsional no ser humano: uma que une, enlaça e vincula (Eros, ou pulsão de vida) e outra que cinde, rompe e separa (Tânatos, ou pulsão de morte). A primeira tendência se relaciona à integração, vinculação, ampliação, crescimento, criação e reprodução, ao passo que a função da segunda seria retornar ao nada, à beatitude do sentimento nirvânico, à platitude sem oscilações e conflitos, à irresistível tendência ao estado inanimado e à entropia. Assim, a segunda tendência diz respeito ao movimento de destruir, desconectar, cindir, desvincular, desinvestir, de forma que buscar alcançar o justo equilíbrio entre ambas é primordial para o amadurecimento psíquico, inclusive para que se possa utilizar a expressão silenciosa da pulsão de morte a serviço da vida. Ou seja, canalizar parte das forças de Tânatos a serviço de Eros, tornando proveitoso o mau negócio e transitando da conspiração silenciosa da morte à manifestação furiosa da vida.

A esse respeito, é interessante evocar outro conceito freudiano, o de masoquismo moral (ou erógeno), que se refere à capacidade do ego de redirecionar o investimento do desprazer envolvido nos processos de defesa para sua própria preservação. Freud (1924/1996e) propõe que essa é uma maneira de conferir suportabilidade ao desprazer e, assim, aumentar o limiar de tolerância frente ao desamparo primordial. O masoquismo moral é da ordem de "uma necessidade que é satisfeita pela punição e pelo sofrimento" (p. 210). Freud postula que o masoquismo moral deriva da pulsão de morte e corresponde à parte da pulsão que escapou de ser desviada para fora, como pulsão de destruição (Freud, 1924/1996e, p. 212); como o masoquismo moral tem "um componente erótico, a própria destruição de si mesmo pelo indivíduo não pode se realizar sem uma satisfação libidinal".

Desse modo, o masoquismo moral promove proteção e se coloca a serviço da preservação da vida, à medida que torna o sofrimento tolerável até certo ponto, abrindo espaço para experiências vitais transformadoras. Em contrapartida, a intolerância ao sofrimento levaria ao desinvestimento do ego e, consequentemente, ao empobrecimento e a formas indiretas ou diretas de morrer. O desinvestimento libidinal leva a um gradual empobrecimento do eu. Labaki (2006) menciona a teoria de Rosemberg, que em 1991 propôs que o suicídio, como expressão máxima da atuação da pulsão de morte no aparelho psíquico, configura-se como situação na qual o masoquismo erógeno fracassa, ocorrendo então um investimento radical no sofrimento masoquista. Isso torna esse tipo de sofrimento o instrumento privilegiado da destrutividade interna.

Assim, pode-se apreender o modo como o masoquismo se articula com a experiência erótica, buscando e obtendo prazer para anular a dor, quando o desejável seria tolerá-la e aprender a coexistir com ela, dentro do possível e do limite de tolerância que é variável em cada indivíduo. No desdobramento da obra freudiana, a pulsão de morte acabaria sendo vinculada à crueldade do superego (Freud, 1923/1996d). No ano seguinte Freud (1924/1996e) iria rever sua própria concepção do masoquismo, apontando que o eu pode, sim, apresentar, já de saída, impulsos destrutivos contra si próprio, sem passar necessariamente pelo sadismo (dirigido ao objeto) como um estágio preliminar.

 

Recomendações de cuidados terapêuticos

As recomendações de cuidados terapêuticos na área do suicídio envolvem a articulação de estratégias de prevenção e promoção de saúde a serem implementadas pelos profissionais de saúde mental. Pela complexidade inerente a esse campo, não é uma tarefa a ser desempenhada apenas pelo psicoterapeuta de abordagem psicanalítica. Um aspecto que certamente faz a diferença e pode contribuir muito é quando os profissionais da equipe de saúde estão alinhados e atuam em conformidade com os mesmos princípios de cuidado terapêutico, pactuados quando se estabelece o plano de atendimento individual. É importante que cada profissional, dentro de sua especialidade e competência específica, possa contribuir para sustentar uma estratégia de tratamento que esteja em consonância com os mesmos princípios gerais. Ou seja, o grau de consistência interna do trabalho interdisciplinar pode aumentar a probabilidade de sua efetividade.

De fato, a partir do conhecimento já bem documentado na literatura e das evidências acumuladas na área, sabemos que existem diretrizes comuns que devem ser observadas por todos os profissionais que atuam com indivíduos que se encontram sob risco de suicídio (Botega et al., 2006; World Health Organization, 1998). Em primeiro lugar, devemos partir do princípio de que é preciso fomentar a crença de que o suicídio pode ser prevenido, ao contrário do pensamento difundido com base no senso comum de que nada pode ser feito porque, se uma pessoa tem "tendências suicidas", ela mais cedo ou mais tarde acabará tirando a própria vida e não há nada que possa detê-la.

O enfoque na equipe de atenção primária à saúde é preconizado como o mais adequado porque os profissionais estão comprometidos com a promoção de saúde (Organização Mundial da Saúde, 2000). O fato de os profissionais de saúde da atenção primária estarem em contato próximo com as pessoas no contexto comunitário em que elas vivem faz com que sua influência seja mais efetiva. Os trabalhadores de saúde em geral são bem aceitos pela população local. É o que acontece com a equipe de atenção primária à saúde, devido à sua maior proximidade com a comunidade. Além disso, a equipe é vista como um elo vital entre a comunidade e o sistema de saúde. Em uma rede de saúde hierarquizada, essa é a porta de entrada para acesso aos serviços de saúde de diferentes níveis de complexidade.

Muitas vezes o profissional de atenção primária é o primeiro recurso de atenção à saúde e o seu conhecimento acerca da comunidade possibilitará catalisar a rede de apoio social, potencializando o suporte dos familiares, amigos e organizações sociais. Por essa razão esse profissional está em posição de oferecer o cuidado continuado que o indivíduo em risco suicida e seus familiares necessitam (Organização Mundial da Saúde, 2000). Uma abordagem aberta e baseada na aceitação e não julgamento pode facilitar a comunicação. Operar em um modelo dialógico pressupõe ouvir com atenção e cordialidade, saber usar da capacidade empática para acolher e compreender os sentimentos do indivíduo em sofrimento, no contexto de uma conversa honesta e autêntica. A psicanálise oferece um arsenal terapêutico que facilita alcançar essa postura empática e, por meio da valorização da experiência emocional compartilhada, é capaz de mobilizar recursos que auxiliem efetivamente o paciente a lidar com sua vulnerabilidade.

É importante que o terapeuta se sinta desimpedido para expressar sua preocupação, compaixão, cuidado e afeição pelo paciente. A escuta é fundamental para reduzir o sentimento que ele tem de estar isolado e isso pode reduzir significativamente o nível de angústia e impotência que alimentam o desespero suicida (Botega et al., 2006). Demonstrar respeito pela realidade psíquica e focalizar os sentimentos da pessoa podem ser de grande ajuda, o que implica evitar interromper seu relato e fluxo de ideias e, especialmente, abster-se de emitir comentários avaliativos e invasivos. Do mesmo modo, é preciso combater a desconfiança do paciente por meio do reforço da crença de que a vida é um aprendizado que vale a pena ser vivenciado, apesar da frustração acarretada pelos seus momentos ásperos, seus revezes e dissabores. Assim, tenta-se paulatinamente devolver ao paciente a esperança de que as coisas podem mudar para melhor (Organização Mundial da Saúde, 2000).

A psicoterapia é um dos principais recursos nos quais os profissionais de saúde mental podem se apoiar para auxiliar a prevenir o suicídio e suas consequências nefastas. A condução da psicoterapia com pacientes com potencial suicida requer, além de conhecimento específico do funcionamento mental, um tipo especial de sensibilidade, abertura ao inconsciente e preocupação genuína com o outro e o destino da humanidade em termos mais amplos. Ao contrário do que muitas vezes afirma a crença popular, falar a respeito de suicídio não é temerário, nem introduz a ideia mortífera na mente do indivíduo (Botega et al., 2006). Pelo contrário, a pessoa tende, inclusive, a se sentir grata ao se perceber aliviada porque pôde se abrir a respeito de um tema que ainda hoje permanece como um tabu social, cercado de intolerância e incompreensão. Portanto, é relevante disseminar uma cultura que privilegia uma abordagem direta, na qual se fala abertamente sobre essas questões ("Você tem sentido que a vida não vale a pena ser vivida?"). Essa postura pode ser extremamente benéfica nesse contexto (Organização Mundial da Saúde, 2000).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo alcançou seu objetivo de delinear um esboço de uma compreensão psicanalítica do fenômeno do suicídio, com o propósito de instigar reflexões que poderão dar subsídios para os cuidados terapêuticos e fundamentar propostas preventivas e de promoção à saúde. Nota-se que os aportes psicanalíticos fornecem uma visão das forças intra-subjetivas que estão em jogo no desejo suicida. Na abordagem psicanalítica a ênfase é posta na articulação interna do movimento pulsional com suas possibilidades e impasses, e não no comportamento suicida em si ou no contexto social.

Frente a esses pressupostos, fundamentados em uma compreensão psicanalítica do suicídio, esboçou-se uma reflexão sobre como os profissionais de saúde mental podem se valer desse referencial para planejar e ofertar cuidados terapêuticos, elaborando propostas de prevenção e promoção de saúde psicanaliticamente orientadas. É necessário disseminar uma cultura de prevenção ao suicídio. Também é imperativo ampliar os investimentos na qualificação do profissional que vai conduzir a avaliação e manejo dos casos de tentativas de suicídio ou ideação suicida, identificando possibilidades de intervenção junto a pacientes, familiares e demais profissionais de saúde. Aderir a uma teoria consistente sobre o suicídio é muito importante para o profissional escolher as melhores estratégias para atender as necessidades-chave de cada momento. Por exemplo, como conter a crise familiar deflagrada por uma tentativa de suicídio frustrada de um membro familiar.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
Natália Gallo Mendes Ferracioli
E-mail: nataliagmendes@hotmail.com

 

 

1 Natália Gallo Mendes Ferracioli. Psicóloga. Especialista em Psicologia Hospitalar. Coordenadora da Pós-Graduação em Psicologia Hospitalar e da Saúde do Centro Universitário Barão de Mauá. Presidente da Inclinare Psicologia. Membro do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde - LEPPS (FFCLRP-USP-CNPq).
2 Érika Arantes de Oliveira-Cardoso. Psicóloga. Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Especialista em Psicologia Hospitalar pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP). Vice-coordenadora do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde - LEPPS (FFCLRP-USP-CNPq).
3 Kelly Graziani Giacchero Vedana. Enfermeira. Professora Doutora do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (EERP-USP).
4 Sandra Cristina Pillon. Enfermeira. Professora Titular do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.
5 Adriana Inocenti Miasso. Enfermeira. Professora Associada do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (EERP-USP). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. (CNPq).
6 Jacqueline de Souza. Enfermeira. Professora Doutora do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP-USP).
7 Eduardo Name Risk. Psicólogo. Pós-doutorando do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Bolsista de Pós-Doutorado do CNPq. Editor Junior da revista Paidéia (Ribeirão Preto). Membro do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde - LEPPS (FFCLRP-USP-CNPq).
8 Wanderlei Abadio de Oliveira. Psicólogo. Professor Doutor da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP-USP). Pós-doutorando do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Bolsista de Pós-Doutorado da CAPES (PNPD). Membro do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde - LEPPS (FFCLRP-USP-CNPq).
9 Carolina Leonidas. Psicóloga. Professora Adjunta do Departamento de Psicologia do Instituto de Educação, Letras, Artes, Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (IELACHS - UFTM) e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFTM. Pesquisadora sênior do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde - LEPPS (FFCLRP-USP-CNPq).
10 Manoel Antonio dos Santos. Psicólogo. Professor Titular do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Coordenador do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde - LEPPS (FFCLRP-USP-CNPq). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq nível 1A.

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