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Vínculo

versión impresa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.16 no.1 São Paulo enero/jun. 2019

http://dx.doi.org/10.32467/issn.1982-1492v16n1p41-51 

ARTIGO

DOI – 10.32467/issn.1982-1492v16n1p41-51

 

Violência nas perturbações da personalidade – características, significado e funções

 

Violence in personality disorders - characteristics, meaning and functions

 

Violencia en los trastornos de la personalidad – características, significado y funciones

 

 

Guadalupe Marinho1

Centro Hospitalar Universitário do Algarve, EPE, Sítio do Poço Seco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A violência é um fenómeno complexo que assume diferentes perspectivas de acordo com os indivíduos nela envolvidos, a gravidade, a frequência e o contexto em que ocorre. É também um importante problema de saúde pública, sendo uma causa importante de mortalidade em todas as regiões do mundo. Alguns estudos afirmam que a prática da violência é influenciada por diferentes parâmetros da personalidade, nomeadamente, a capacidade de controlo dos impulsos e a regulação dos afetos. Estas duas dimensões estão amplamente afetadas em muitos dos indivíduos diagnosticados com perturbação da personalidade. Esta relação entre perturbação da personalidade e violência tem sido exaustivamente investigada, tendo-se verificado uma maior prevalência de comportamentos de automutilação, suicídio e violência dirigida a terceiros nos indivíduos com esta perturbação. A compreensão dos gestos violentos a que os pacientes com perturbação da personalidade frequentemente recorrem, conhecendo as suas características, significado e funções, assume uma elevada relevância para o estabelecimento de uma relação terapêutica empática. Esta relação é essencial para o tratamento destes indivíduos, o que por sua vez é indispensável para uma redução eficaz da violência associada à perturbação.

Palavras-chave: Perturbação da Personalidade; Violência.


ABSTRACT

Violence is a complex phenomenon that assumes different perspectives according to the individuals involved, the severity, the frequency and the context in which it occurs. It is also a major public health problem and a major cause of mortality in all regions of the world. Some studies affirm that the practice of violence is influenced by different personality parameters, namely, the ability to control impulses and the regulation of affects. These two dimensions are largely affected in many of the individuals diagnosed with personality disorder. This relationship between personality disorder and violence has been thoroughly investigated, with a higher prevalence of self-mutilation, suicide and violence directed at others in individuals with this disorder. The understanding of the violent gestures that patients with personality disorders frequently resort to, knowing their characteristics, meaning and functions, assume a high relevance for the establishment of an empathic therapeutic relationship. This relationship is essential for the treatment of these individuals, which in turn is indispensable for effective reduction of violence associated with the disorder.

Keywords: Personality disorder; Violence.


RESUMEN

La violencia es un fenómeno complejo que asume diferentes perspectivas de acuerdo con los individuos, la gravedad, la frecuencia y el contexto en que ocurre. Es también un importante problema de salud pública, siendo una causa importante de mortalidad en todas las regiones del mundo. Algunos estudios afirman que la práctica de la violencia está influenciada por diferentes parámetros de la personalidad, en particular, la capacidad de control de los impulsos y la regulación de los afectos. Estas dimensiones están ampliamente afectadas en muchos de los individuos diagnosticados con trastorno de la personalidad. Esta relación entre perturbación de la personalidad y la violencia ha sido investigada exhaustivamente, habiendo una mayor prevalencia de comportamientos de automutilación, suicidio y violencia dirigida a terceros en los individuos con esta perturbación. La comprensión de los gestos violentos a los que los pacientes con trastorno de la personalidad frecuentemente recurren asume una elevada relevancia para el establecimiento de una relación terapéutica empática. Esta relación es esencial para el tratamiento de estos individuos, lo que a su vez es indispensable para una reducción eficaz de la violencia asociada a la perturbación.

Palabras clave: Trastornos de la Personalidad; Violencia.


 

 

1 INTRODUÇÃO

O termo "violência" é frequentemente usado para descrever um comportamento agressivo praticado por indivíduos e que tanto pode ser dirigido contra o próprio, como contra outros indivíduos, seres ou objetos. Constitui um fenómeno epidemiológico por si só e é provavelmente um dos principais problemas de saúde pública atualmente. É responsável por várias mortes e importantes graus de incapacidade, atingindo todas as regiões do mundo. A incidência anual combinada de homicídio e suicídio ronda os 0,2 – 0,3/100 000 pessoas por ano. Estes valores são relativamente constantes nos países industrializados e não variam significativamente com o decorrer do tempo, parecendo a violência ser um fenómeno transversal às diferentes gerações de indivíduos e populações (Fountoulakis, 2008).

O fenómeno da violência tem sido estudado por diferentes áreas das ciências. Uma das questões abordadas é a importância da personalidade e o seu contributo na perpetração de atos violentos graves, tal como a interferência das perturbações da personalidade (PP) na execução destes gestos e a sua importância na avaliação clínica e legal dos indivíduos que delas padecem.

Tanto na área da Psiquiatria como da Psicologia, o investimento clínico em indivíduos com PP que praticam atos de violência, principalmente dirigidos a outros, têm sido preteridos em relação a pacientes com outras patologias e sintomas. Muitos deles são considerados "um fardo", tanto sob o ponto de vista médico, como também social e legal, tendo sido amplamente estigmatizados nestas áreas. Nas últimas décadas, esta visão tem vindo a mudar, em grande parte devido aos novos avanços na compreensão e no tratamento das PP.

A compreensão dos gestos violentos a que os indivíduos com PP muitas vezes recorrem, conhecendo as suas características e possível significado e funções, assume uma elevada relevância para o estabelecimento de uma relação terapêutica empática, sendo esta por sua vez essencial para o tratamento e melhoria destes indivíduos. De forma a facilitar esta compreensão, o trabalho iniciará com a apresentação de um caso clínico, seguido de uma exposição das características da violência associada aos indivíduos com PP, do seu possível significado e das funções que esta pode assumir junto dos pacientes que sofrem desta perturbação.

 

2 Violência nas Perturbações da Personalidade – Caso Clínico

A.S.C.L, sexo feminino, 27 anos de idade, 7º ano de escolaridade, baixo nível socioeconómico. Atualmente, encontra-se desempregada e separada do ex-companheiro, do qual tem 2 filhos. Os filhos têm 7 e 4 anos de idade e estão à guarda do ex-companheiro. A paciente reside numa habitação social com o avô, a irmã, o cunhado e os dois sobrinhos.

A doente foi fruto de uma relação casual e de uma gravidez não planeada, com 7 meses de gestação, tendo sido interrompida por complicações associadas a infeção por HIV por parte da progenitora. O período pós-natal decorreu sem problemas. A.S.C.L foi criada pela avó materna e nunca teve contato com os pais. Afirma sempre ter tido desinteresse pela escola e uma relação conflituosa com colegas e professores: "batia neles todos, ninguém abusava de mim… uma vez bati a uma professora e dei-lhe pontapés porque não me deixou usar calculadora no teste, mas a outro colega deixou" sic. Aos 13 anos de idade, após a avó ter tido um acidente vascular cerebral e ter ficado com importantes limitações funcionais e cognitivas, A.S.C.L iniciou um comportamento francamente disruptivo. Segundo familiares, começou a tornar-se mais instável a nível emocional, mais irritável, com consumo de álcool e canabinóides e prática de gestos autolesivos (intoxicações medicamentosas voluntárias, ingestão de lixívia e cortes nos antebraços). A doente manifestava comportamentos de oposição, desafio e desrespeito perante a autoridade. Na sequência de um processo em tribunal, após ter sido presa por assalto em grupo com recurso a armas brancas, foi retirada do ambiente familiar e integrada numa instituição, onde residiu até aos 18 anos. Refere que na instituição: "era horrível… tínhamos muitas regras… odiava aquilo tudo e aquelas pessoas todas… fazia porcaria todos os dias e partia tudo… era muito revoltada… fugia muitas vezes para ir ver a minha avó ao hospital, ela foi a única pessoa que gostou de mim e se importou comigo… quando fiquei sem ela, fiquei sem nada" sic. Aos 18 anos conheceu o ex-companheiro, do qual teve 2 filhos, o primeiro aos 20 anos de idade. Relata que desde o início da relação foi vítima de violência doméstica: "Começou com umas bofetadas e depois já eram pontapés na cabeça e na barriga… mesmo quando estava grávida… ameaçava-me com facas quando ninguém estava a ver… por qualquer coisa que ele achasse que fiz mal, dizia-me: quando chegarmos a casa tu vais ver… eu muitas vezes fingia que estava a dormir, mas ele puxava-me pelos cabelos e começava a bater-me… muitas vezes à frente dos nossos filhos" sic.

Ao fim de uma convivência de 8 anos, A.S.C.L. decidiu terminar a relação, mas referia que a separação do ex-companheiro lhe provocou um sofrimento maior do que aquele que ele lhe infligiu com o seu comportamento agressivo – "fui-me completamente a baixo… não comia… não dormia… nada me interessava… só pensava porquê… porquê eu… já tinha sofrido tanto e só queria uma família… porque é que nem isso consegui ter?" sic. Foi nesta altura que a doente começou a recorrer à urgência de Psiquiatria por crises de angústia e desespero.

O quadro clínico foi-se agravando e a doente iniciou comportamentos autolesivos associados a uma extrema impulsividade e particularmente baixa tolerância à frustração. Foram realizadas tentativas de controlo sintomático com recurso a múltiplos psicofármacos, mas sem melhoria significativa associada. O sofrimento que a doente descreve foi aumentando de intensidade, até ao ponto em que cometeu várias tentativas de suicídio com recurso a medicação e produtos de limpeza, e também, posteriormente, violência dirigida contra familiares e técnicos de saúde, principalmente quando impedida de levar a fim os gestos autolesivos. A.S.C.L já foi internada várias vezes na Unidade de Internamento de Agudos do Serviço de Psiquiatria, nos quais foi diagnosticada com Perturbação da Personalidade Borderline e medicada com antipsicóticos orais e injetáveis, antidepressivos, estabilizadores de humor e benzodiazepinas. Durante os internamentos, observa-se uma melhoria ao nível do comportamento associada a uma diminuição da angústia. Contudo, apenas alguns dias após ter alta médica, o sofrimento e a violência, dirigida tanto contra a própria como contra terceiros, voltam a manifestar-se e o ciclo mantém-se nesta espiral de angústia e violência.

 

3 Violência na Perturbação da Personalidade – Características

A violência é um fenómeno complexo que assume diferentes perspectivas e proporções de acordo com os indivíduos nele envolvidos, bem como com a gravidade, a frequência e o contexto em que ocorre. Um ato de violência pode ser definido como um gesto impulsivo/emocional/reativo ou como um ato controlado/premeditado. Pode também ser categorizado de acordo com o objetivo que ele cumpre: alívio de afetos negativos, reforço de um afeto positivo associado ao prazer que certos indivíduos têm ao infligir sofrimento noutros, ganho de bens materiais ou estabelecimento de domínio social. Associado a cada gesto violento estão também diferentes emoções, desde excitação a prazer, ressentimento, raiva, medo, tristeza e sofrimento (Fazel & Danesh, 2002; Howard, 2015).

Numa perspectiva dimensional da personalidade, há autores que defendem que os indivíduos com maior tendência a praticar atos de violência são aqueles com maior impulsividade, com deficiente regulação afetiva e com traços de personalidade paranoide e narcísica. Relativamente aos 5 domínios da personalidade comtemplados no modelo alternativo da 5ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM – 5) para as PP, os indivíduos que estão mais envolvidos em comportamentos violentos são aqueles que expressam afetividade negativa com instabilidade emocional, distanciamento e introversão, antagonismo e desinibição (Esbec & Echeburúa, 2010).

Os gestos violentos podem ser influenciados por diferentes parâmetros da personalidade, nomeadamente, a capacidade de controlo dos impulsos e a regulação dos afetos (Nestor, 2002). Estas duas dimensões estão amplamente afetadas em muitos dos indivíduos diagnosticados com PP, o que poderá levar a supor que os gestos violentos sejam mais frequentes ou graves nestes indivíduos (Nestor, 2002). Na verdade, vários estudos apontam para uma elevada prevalência de indivíduos com PP nos estabelecimentos prisionais e forenses. Numa meta-análise que englobou uma amostra de 10797 homens e 3049 mulheres, a prevalência de PP nos indivíduos do sexo masculino era de 65% (a maioria - 47% - diagnosticada com PP antissocial) e nos indivíduos do sexo feminino era de 42% (25% diagnosticada com PP borderline e 21% com PP antissocial). Num outro estudo, que englobou vários estabelecimentos prisionais em Espanha, a prevalência de PP foi de 60%, com predomínio da PP antissocial (30%), seguida da PP borderline (17%). A PP antissocial estava mais associada ao abuso de substâncias psicoativas e a um perfil penal mais grave, enquanto a PP borderline, para além de estar igualmente associada com o consumo de substâncias psicoativas, estava também relacionada com comportamentos auto agressivos, estando, no entanto, associada a perfis penais menos graves (Esbec & Echeburúa, 2010; Fazel & Danesh, 2002; Howard, 2008; Nestor, 2002).

Num estudo longitudinal retrospectivo de 5 anos, numa amostra não-clínica no Reino Unido e que englobou mais de 8000 indivíduos, 11% dos que tinham o diagnóstico de PP apresentavam comportamento violento, contra os 7% da população em geral que também demonstravam estes comportamentos, mas que não tinham esse diagnóstico (Pickard, 2015).

Num outro estudo onde foi avaliado o risco de violência, verificou-se que a prevalência de comportamentos violentos em um ano após a saída do estabelecimento prisional era maior nos indivíduos com PP e abuso de substâncias psicoativas (43%), do que naqueles também com perturbação mental grave (como esquizofrenia e perturbação afetiva bipolar) e abuso de substâncias, mas sem PP (31.1%) ou apenas com perturbação mental grave (17.9%) (Esbec & Echeburúa, 2010).

Relativamente aos diferentes grupos da PP, estudos indicam que indivíduos com PP do grupo B (principalmente aqueles com PP antissocial, borderline e histriónica) são dez vezes mais propensos a ser condenados criminalmente e têm cerca de oito vezes mais probabilidade de terem estado presos em comparação com aqueles sem PP do grupo B (Esbec & Echeburúa, 2010; Howard, 2008; Pickard, 2015). Existe também uma forte associação entre PP do grupo B e comportamentos de autolesivos, suicídio e violência dirigida a terceiros (Esbec & Echeburúa, 2010; Howard, 2008; Pickard, 2015). Os indivíduos diagnosticados com PP do grupo B também estão relacionados com um maior consumo de álcool e de outras substâncias psicoativas, em comparação com indivíduos de outros grupos, o que por sua vez é um importante fator precipitante de violência (Esbec & Echeburúa, 2010). Investigadores apontam ainda para uma maior associação entre comportamentos autolesivos e abuso sexual na infância; assim como violência contra terceiros quando existiu abuso psicológico também na infância (Pickard, 2015).

 

4 Violência na Perturbação da Personalidade – Significado e Funções

Alguns estudos que têm investigado comportamentos violentos em indivíduos com PP afirmam que o principal fator comum nestes indivíduos é a raiva. Esta pode ser considerada como parte de uma resposta neuropsicológica a uma ameaça ou a uma percepção de risco. Pode ainda ser desencadeada na sequência de outras emoções e sentimentos como: desconfiança, vergonha, ciúme, frustração, percepção de ser tratado de forma diferente, sentimento de exclusão ou rejeição, entre outros (Esbec & Echeburúa, 2010).

Uma proporção significativa de indivíduos com PP grave pertencem a meios de pobreza psicossocial e económica extrema, sofreram várias adversidades ao longo da vida, foram vítimas de trauma, negligência e/ou abuso na infância e, como adultos, levaram vidas caóticas e fragmentadas, com elevados níveis de sofrimento psicológico e marginalização social. Julga-se que a angústia extrema, raiva e vergonha que podem estar subjacentes aos comportamentos violentos, estão muitas vezes ligados às origens adversas e traumáticas, típicas dos indivíduos com PP (Howells, 2009; Novaco, 2010; Pickard, 2015).

Neste contexto, a violência dirigida a terceiros pode ser um comportamento desenvolvido para atingir determinados fins, tais como (Cartwright, 2002; Duggan & Howard, 2009; Fincham, 2011; Howells, 2009; Klonsky, 2007; Motz, 2009; Novaco, 2010; Pickard, 2015; Siever, 2008; Yakeley & Meloy, 2012):

a) Regulação afetiva - permitindo a expressão de impulsos agressivos e o alívio de experiências emocionais negativas, podendo ser usada como uma forma de libertar a tensão e raiva acumuladas, que de outra forma não conseguiriam gerir;

b) Obtenção de atenção - a violência pode ser usada para suscitar preocupação junto de terceiros e alertar para a necessidade de cuidados;

c) Domínio social e interpessoal – a capacidade de cometer atos violentos pode permitir obter vários benefícios dependendo do grupo sociocultural onde se está inserido, muitas vezes em conformidade com os estereótipos culturais;

d) Vingança, punição ou retaliação para com aqueles que perpetraram um dano psicológico ou físico no próprio ou a alguém significativo para o mesmo;

e) Recuperação de uma sensação de poder e de controlo perante sentimentos de desamparo e situações de abuso;

f) Proteção contra futuros danos - podendo servir a violência para sinalizar uma disposição para retaliar e assim agir como uma defesa quando direcionada para aqueles que perpetraram danos ao indivíduo ou que ameaçam provocá-los.

No caso da violência dirigida contra o próprio, esta pode ocorrer na forma de comportamentos autolesivos, tentativas de suicídio ou suicídio consumado; e apesar de aparentemente incompreensível à primeira vista, também este tipo de violência pode ter certas funções, tais como (Cartwright, 2002; Duggan & Howard, 2009; Fincham, 2011; Howells, 2009; Klonsky, 2007; Motz, 2009; Novaco, 2010; Pickard, 2015; Siever, 2008; Yakeley & Meloy, 2012):

a) Regulação afetiva – o comportamento auto lesivo pode ser uma forma de expressar/libertar emoções fortes (especialmente raiva e vergonha) e de obter alívio a curto prazo de uma experiência emocional negativa, servindo como distração da dor emocional ao substituí-la por uma dor física;

b) Comunicação - a autoagressão pode ser uma forma de comunicar a angústia, a necessidade de receber cuidados e de se ser ajudado. Na PP, é comum a dificuldade na expressão verbal das emoções; c) Autopunição - indivíduos com PP têm muitas vezes baixa autoestima e acreditam ser pessoas "más" que merecem ser punidas;

d) Punição do outro – o comportamento auto lesivo pode constituir uma forma segura de expressar raiva e emoções relacionadas com terceiros, quando a violência dirigida a estes é considerada inaceitável e estes são pessoas próximas do indivíduo que se preocupam com ele e que sofrem ao ser confrontadas com estes gestos;

e) Controlo - a autoagressão pode criar um sentimento de força e domínio, dando a sensação ao indivíduo de recuperar a propriedade sobre o seu próprio corpo perante a experiência de se sentir impotente e abusado. Para indivíduos cujos corpos foram "atacados e usados" por outros, pode ser um ato de reconquistar o corpo, estabelecendo-se que são eles, e mais ninguém, que agora têm o domínio e controlo sobre o mesmo;

f) Manifestação do desejo de morte - quando associado à PP, o desejo de morrer pode ser entendido como resultado de sentimentos como angústia e desesperança, sendo muitas vezes a expressão de uma vontade de escapar, de forma permanente, ao sofrimento de viver.

 

5 CONCLUSÃO

Estar ciente do significado e das possíveis funções da violência a que os indivíduos com PP, consciente ou inconscientemente, procuram quando praticam atos violentos, dirigidos a terceiros ou contra os próprios, é essencial para poder compreender o seu comportamento e o motivo pelo qual muitos destes indivíduos recorrem a estes atos de forma tão persistente, nas mais variadas situações e aos quais têm dificuldade em renunciar. Isto é compreensível na medida em que a violência cumpre estas funções de forma rápida e eficaz, e abster-se dela pode exigir que o indivíduo se submeta e suporte sentimentos de extrema raiva, angústia e sofrimento, sem alívio posterior. É portanto essencial, mais do que travar os atos violentos em si, dar a conhecer aos pacientes com PP outras alternativas mais adaptativas de suprir as necessidades que os fazem recorrer a estes, sendo esta provavelmente a única forma de os ajudar a colocar um fim ao ciclo de violência e sofrimento que muitas vezes se apodera deles.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
Guadalupe Marinho
E-mail: glupe.marinho@gmail.com

 

 

1 Guadalupe Marinho. Interna de Formação Específica de Psiquiatria. Serviço de Psiquiatria de Portimão- Centro Hospitalar Universitário do Algarve, EPE, Sítio do Poço Seco. 8500-338 – Portimão – Portugal.

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