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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.17 no.2 São Paulo jul./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.32467/issn.19982-1492v17n2p20-45 

Suporte em saúde mental às agentes comunitárias de saúde: o espaço protegido dos grupos interativos

 

Mental health support for community health agents: interactive groups as protected space

 

Soporte en salud mental a las agentes comunitarias de salud: el espacio protegido de los grupos interactivos

 

 

Emily Eunice Dal Prá da SilvaI; Flávio Braga de FreitasII; Fernanda Karla MetelskiIII; Márcia Luiza Pit Dal MagroIV

IFarmacêutica. Especialista em Análises Clínicas. Agente do Nasf-AB na Secretaria de Saúde de Chapecó, Santa Catarina. Integrante do Grupo de Desenvolvimento Humano desde 2013. E-mail: emilydalpra@gmail.com
IIMédico. Mestre em Psicologia. Médico Psiquiatra na Secretaria de Saúde de Chapecó, Santa Catarina. Coordenador Técnico do Grupo de Desenvolvimento Humano desde 2012
IIIEnfermeira. Doutoranda em Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora Assistente do Departamento de Enfermagem da Universidade do Estado de Santa Catarina. Integrante do Grupo de Desenvolvimento Humanos no período de 2012 a 2018
IVPsicóloga. Doutora em Psicologia. Professora do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais e do Curso de Psicologia da Universidade Comunitária da Região de Chapecó. Coordenadora do macroprojeto de pesquisa

 

 


RESUMO

As Agentes Comunitárias de Saúde colaboram com a consolidação da Política Nacional de Humanização, para o que são fundamentais questões como acolhimento, responsabilização e vínculo. Isso impõem demandas psíquicas à essas trabalhadoras e exige ações de respaldo às mesmas. Este estudo teve por objetivo compreender as contribuições de um Grupo Interativo para o suporte em saúde mental às Agentes com vistas ao cuidado humanizado. A metodologia utilizada foi o estudo de caso clínico na perspectiva psicanalítica, de um Grupo Interativo com as Agentes. A elaboração teórica do caso indica que as vivências intoleráveis e os sentimentos pessoais impensáveis e reprimidos gerados pelas experiências pessoais e do trabalho que não podiam ser expressos e elaborados, emergiam de modo inconsciente na forma de atuações, dificultando as relações laborais e o próprio cuidado inerente ao fazer das Agentes. Por sua vez, o Grupo Interativo contribuiu para as Agentes compreenderem e expressarem suas atuações, e ressignificarem vivências traumáticas. Conclui-se que o suporte em saúde mental possibilitado pelo Grupo Interativo gerou desenvolvimento das Agentes, com potencial para o cuidado humanizado.

Palavras-chave: grupos nas políticas públicas; grupos interativos; desenvolvimento humano; agentes comunitárias de saúde; atenção primária à saúde.


ABSTRACT

Community Health Agents collaborate with National Humanization Policy consolidation, for which issues such as reception, accountability and bonding are fundamental. This imposes psychological demands on these workers and requires actions to support them. This study aimed to understand Interactive Group contributions as Agents' mental health support aiming for humanized care. The methodology used was clinical case study, in the psychoanalytic perspective. The theoretical elaboration of the case indicates that intolerable experiences and unthinkable and repressed personal feelings generated by personal and work experiences that could not be expressed and working-through, emerged unconsciously in the form of acting in, hindering labor relations and people health care. In turn, Interactive Group contributed to the Agents to understand and express their actions, and to re-signify traumatic experiences. It is concluded that the support in mental health made possible by the Interactive Group generated Agents' development, with the potential for humanized care.

Keywords: groups in public policies; interactive groups; human development; community health workers; primary health care.


RESUMEN

Las Agentes Comunitarias de Salud colaboran con la consolidación de la Política Nacional de Humanización, por lo que son fundamentales cuestiones como acogimiento, responsabilidad y vínculo. Eso impone demandas psíquicas a esas trabajadoras y exige acciones de respaldo a las mismas. Este estudio tuvo por objetivo comprender las contribuciones de un Grupo Interactivo para soporte en salud mental a las Agentes con vistas al cuidado humanizado. La metodología utilizada fue el estudio de casos clínicos en la perspectiva psicoanalítica de un Grupo Interactivo con las Agentes. La elaboración teórica del caso sugiere que las vivencias intolerables y los sentimientos personales impensables y reprimidos generados por las experiencias personales y del trabajo que no se podían expresar y elaborar surgieron de modo inconsciente como actuaciones, dificultando las relaciones laborales y el propio cuidado inherente al quehacer de las Agentes. A su vez, el Grupo Interactivo contribuyó para que las Agentes comprendan y expresen sus actuaciones y den un nuevo significado a las vivencias traumáticas. Se concluye que el soporte en salud mental posibilitado por el Grupo Interactivo generó el desarrollo de las Agentes, con potencial para el cuidado humanizado.

Palabras clave: grupos en las políticas públicas; grupos interactivos; desarrollo humano; agentes comunitarias de salud; atención primaria en salud.


 

 

INTRODUÇÃO

No Brasil, o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) foi criado no final da década de 1980, implantado oficialmente pelo Ministério da Saúde em 1991 (Brasil, 2020). Inicialmente se caracterizou como uma ação localizada em áreas do Nordeste, Distrito Federal e São Paulo, buscando alternativas que contribuíssem com a melhoria das condições de saúde das comunidades, sendo ampliada posteriormente para todo o país. Essa nova categoria de trabalhadores era constituída por pessoas da própria comunidade, atuando em suas localidades, e buscando atender principalmente a parcela da população que, por diversos motivos, não procurava o serviço público de saúde, ou era, até então, negligenciada por esses serviços (Rosa, Bonfanti, Carvalho, 2012).

A Organização das Nações Unidas (ONU) elegeu 1994 como o ano da família. Nesse mesmo ano, o Ministério da Saúde (MS) lançou o Programa de Saúde da Família (PSF) a fim de orientar e reorganizar a Atenção Básica (AB), substituindo o modelo tradicional de assistência primária baseada em profissionais médicos especialistas focais, estabelecendo o acesso universal e contínuo a serviços de saúde de qualidade, e reafirmando os princípios básicos do SUS: universalização, descentralização, integralidade e participação comunitária, por meio da vinculação com os usuários. A equipe básica do PSF assumiu uma composição multiprofissional, e o trabalho do Agente Comunitário de Saúde (ACS) consistia em realizar o diagnóstico situacional da população local, sob supervisão do enfermeiro (Morosini, Fonseca, 2018). O reconhecimento da profissão de ACS ocorreu somente em 2002, por meio da Lei 10.507, de 10 de julho de 2002.

O PSF tornou-se o modelo prioritário da AB no Brasil, sendo posteriormente reconhecido como Estratégia de Saúde da Família (ESF), a qual visa impactar positivamente a situação de saúde das pessoas e coletividades, em busca de contribuir com a resolutividade no Sistema Único de Saúde (Brasil, 2017). A caracterização do trabalho do agente comunitário passou a ser definida por meio da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) de 2006, e suas edições posteriores de 2011 e 2017 (Morosini, Fonseca, 2018).

Em 2008, o MS criou o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), com objetivo de apoiar a consolidação da AB. Atualmente denominado Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (Nasf-AB), prevê arranjos multiprofissionais atuando de forma integrada com as equipes de Saúde da Família (eSF) e as equipes de Atenção Básica (eAB). Esta atuação integrada permite realizar discussões de casos clínicos, atendimento compartilhado entre profissionais, tanto na Unidade de Saúde como nas visitas domiciliares, e possibilita a construção conjunta de projetos terapêuticos de forma a ampliar e qualificar as intervenções no território e na saúde de grupos populacionais (Maffissoni et al., 2018). Contudo, ainda são poucas as produções teóricas acerca do processo de trabalho do Nasf-AB, avaliando suas ações e impactos sobre o cuidado e a saúde (Vendruscolo et al., 2020).

A profissão de agente comunitário de saúde difere das demais profissões das equipes multidisciplinares pelo pré-requisito de residir na comunidade, o que torna o vínculo entre as ACS e os usuários do SUS, potente e resolutivo (Chengue, Franco, 2018; Oliveira, 2019; Pinto et al., 2017; Souza, 2019; Santos, Hope, Krug, 2018). O trabalho do ACS se alicerça em dois pilares, um técnico e outro sócio-político (Silva, Damaso, 2002), visando garantir o acesso da população aos serviços de saúde, constituindo o elo entre as políticas públicas de saúde e a comunidade (Andrade et al., 2018; Bezerra, Feitosa, 2018; Vidal, Motta, Batista, 2015). O saber cultural e popular do agente comunitário em uma equipe é tão importante quanto o saber técnico e científico na produção de saúde (Lancetti, 2008; Pinto et al., 2017; Samudio et al., 2017). Sendo assim, o estudo envolvendo essa categoria profissional tem despertado o interesse do mundo científico (Samudio et al., 2017).

As Agentes Comunitárias de Saúde também são fundamentais para a consolidação da Política Nacional de Humanização (PNH) no contexto da Atenção Básica, tendo em vista que essas são envolvidas em ações de prevenção, promoção e recuperação da saúde no território, estando próximas dos usuários e conhecendo suas necessidades. A PNH visa redimensionar práticas de atenção e gestão com vistas ao cuidado humanizado, o que pressupõe responsabilidade compartilhada, vínculos solidários, valorização de usuários, trabalhadores e gestores (Brasil, 2010). Nesse contexto a relação é compreendida como uma tecnologia de cuidado. No entanto, essa forma de cuidado preconizada pela PNH impõe exigências emocionais importantes para essas trabalhadoras, que muitas vezes são desafiadas a fazer isso sem suporte e/ou capacitação para tanto (Cremonese, Motta, Traesel, 2013).

Estudos mostram que os agentes comunitários sentem-se responsáveis pela sua comunidade e quando percebem que seu trabalho não tem a efetividade que gostariam, podem ficar frustrados, o que gera sofrimento mental (Alonso, Béguin, Duarte, 2018; Krug et al., 2017; Oliveira, Nery, 2019; Pinheiro et al., 2019). A posição social diferenciada dos demais trabalhadores da equipe de saúde leva o agente comunitário a se apropriar de um papel de líder perante sua comunidade, pertencente a uma equipe de saúde. Portanto, toma para si a responsabilidade de resolver os problemas de saúde da população mesmo sem ter formação específica nesse campo, gerando sentimento de impotência. Os múltiplos sentimentos em relação a comunidade aliados à pressão da equipe de saúde e também à auto cobrança geram sofrimento mental. O sofrimento mental relacionado ao trabalho necessita de discussões e de ações (Alonso, Beguin, Duarte, 2018; Chengue, Franco, 2018; Oliveira, Nery 2019; Samudio et al., 2017; Souza, 2019; Oliveira, Nery, 2019; Pinheiro et al., 2019; Santos, Hope, Krug, 2018; Souza, Oliveira, 2019) como espaços que promovam a reflexão da subjetividade e das relações humanas, a fim de não gerar adoecimento (Bezerra, Feitosa, 2018; Pinheiro et al., 2019).

No contexto estudado, como esses sofrimentos relacionados às atividades exercidas pelas ACS não tinham espaço para serem verbalizados, acolhidos e ressignificados, eles apareciam, muitas vezes, na forma de atuação. A atuação para a abordagem psicanalítica é uma forma de expressão, sem pensar, de vivências intoleráveis e de sentimentos pessoais impensáveis que ficam reprimidos, recalcados no inconsciente (Zimerman, 1999). Tal forma de funcionamento é uma tentativa da mente evitar fazer contato consciente com tais vivências e sentimentos devido ao medo de que tais conteúdos, ao serem experimentados na consciência, sejam insuportáveis, e venham a provocar uma desagregação da pessoa a ponto de enlouquecê-la.

A percepção de que os agentes comunitários necessitavam de um espaço de promoção de saúde mental, bem como de suporte para a prática do cuidado humanizado, levou uma das farmacêuticas do Nasf-AB de Chapecó, Santa Catarina, a propor a realização de um Grupo Interativo com esses profissionais em uma eSF. O Grupo Interativo se trata de uma abordagem teórico metodológica para o trabalho grupal em diferentes contextos e baseia-se em um tripé teórico constituído pelos grupos operativos, o pensamento complexo e teoria psicanalítica (Freitas, Metelski, 2020). Em 2012, é criado no município de Chapecó, Santa Catarina, o Grupo de Desenvolvimento Humano (GDH), uma ação que visa capacitar os profissionais de diferentes setores da rede de assistência pública do município a coordenar Grupos Interativos. Ao longo dos anos, o GDH vem sendo expandindo para diversos serviços público, incluindo além da Secretaria de Saúde, a Secretaria de Assistência Social, e a Secretaria de Educação (Felipi, Dal Magro, 2020). Entre outras questões, o GDH estimula, em suas práticas através dos Grupos Interativos, a escuta qualificada dos profissionais para ofertar o acolhimento da história de vida dos participantes do grupo.

Diante desta contextualização, o presente artigo tem por objetivo compreender as contribuições de um Grupo Interativo para o suporte à saúde mental das ACS, com vistas ao cuidado humanizado.

 

METODOLOGIA

Este estudo se trata de um estudo de caso clínico na perspectiva psicanalítica, tal como descrito por Franke e Silva (2012), em que é narrada uma situação clínica que expõe uma elaboração teórica. A situação clínica em questão é o processo terapêutico possibilitado no Grupo Interativo com as ACS de um Centro de Saúde da família (CSF) do município de Chapecó, Santa Catarina. O município em questão possui aproximadamente 220.367 habitantes, e é conhecido como a Capital do Oeste Catarinense por servir de referência para mais de 200 municípios. O município tem 54 eSF distribuídas em 26 CSF e 5 equipes do Nasf-AB, modalidade 1 (Chapecó, 2019).

O caso clínico envolveu os encontros do Grupo Interativo, que ocorriam semanalmente por uma hora na sala de reuniões do CSF, durante os meses de julho a novembro de 2018, totalizando 14 encontros. Participaram desse grupo todas as sete agentes comunitária de saúde de uma eSF. O Grupo Interativo foi coordenado pela farmacêutica do Nasf-AB da área de abrangência, sob supervisão do médico psiquiatra responsável técnico pela coordenação das atividades dos Grupos de Desenvolvimento Humano na prefeitura Municipal. As supervisões se davam com base nos relatos dialogados dos encontros grupais, que eram enviados ao supervisor e devolvidos à coordenadora com análises teórico-reflexiva do fenômeno grupal descrito, e identificando elementos definidores do processo grupal, tanto explícito quanto implícito, processo descrito por Freitas, Metelski, Bertollo e Brunello (2020). De acordo com Franke e Silva (2012) a supervisão do caso é um espaço de interlocução entre o terapeuta (aqui também denominado coordenador) e o supervisor, em que esse último "cumpre a função de alteridade na construção do caso clínico" (p. 47) ajudando a compreender os "enigmas" que compõem o caso.

Uma das atribuições do Nasf-AB é o matriciamento das agentes comunitárias (Maffissoni et al, 2018; Moroni, Fonseca, 2018; Vendruscolo et al., 2020). Cabe ao farmacêutico atuante na AB promover a capacitação das agentes para a promoção do uso no uso racional de medicamentos (Guimarães et al., 2017). Sendo assim, a proposta de desenvolver um grupo interativo surgiu a partir de uma ação de matriciamento sobre medicamentos, mais especificamente enquanto se discutia o tema planejamento familiar, momento em que observou-se a necessidade de fazer uma roda de conversa sobre empoderamento feminino, e a partir das falas das agentes comunitárias, a farmacêutica propôs a realização de um Grupo Interativo o qual foi aceito. Inicialmente foram realizadas combinações para estabelecer um setting grupal seguro, ou seja, um conjunto de combinações, acordos, que são norteadores do funcionamento do grupo, e que todos se comprometem a respeitar.

No início de cada encontro, as agentes eram convidadas a falar, se quisessem e sobre o que quisessem. Eram estimuladas a trazerem angústias, conflitos ou sofrimentos tanto do tempo presente quanto do passado. O tempo decorrente do início do encontro até o surgimento do problema a ser debatido, o qual denominamos de emergente grupal, é definido como pré-tarefa. Após o porta-voz do grupo anunciar o emergente grupal, o grupo entra num estado de trabalho, ou seja, entra na tarefa. Para Pichon-Rivière (2005) o grupo ao entrar num estado de tarefa já está apto a construção de um projeto comum para elaborar um projeto de mudanças. Ele articula tal conceituação com a ideia de aprendizagem grupal para operar este projeto. No Grupo Interativo, nós realizamos uma distinção entre aprendizagem intra grupal e extra grupal. Definimos a aprendizagem intra grupal como o conhecimento adquirido pelo grupo no transcorrer da tarefa de tornar os conteúdos grupais implícitos em explícitos. E a aprendizagem extra grupal o conhecimento adquirido pelas pessoas do grupo advindos de suas práticas extra grupais. Portanto, denominamos a esta etapa do grupo, na qual ele está operando com a aprendizagem intra grupal advinda da tarefa de transformar o implícito em explícito de "Pós tarefa". Nesta etapa buscamos refletir com o grupo sobre esta aprendizagem adquirida, tanto cognitiva quanto emocional, e darmos algum tipo de encaminhamento para ela.

A transformação do ato clínico em teoria se deu após a conclusão do Grupo Interativo com o grupo de ACS, e da obtenção do consentimento dessas. A (re)construção do caso se deu recuperando a história do grupo e sua evolução no decorrer do tempo, ao que foram acrescentadas novas reflexões. O presente estudo integra um macroprojeto de pesquisa denominado "Grupos de Desenvolvimento Humano como Tecnologia social para atenção a saúde mental do SUS e proteção social especial do SUAS", financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Santa Catarina (FAPESC) e coordenado pela Universidade Comunitária da Região de Chapecó, e desenvolvida em parceria com a Universidade do Estado de Santa Catarina, Secretaria de Saúde, e Secretaria de Assistência Social de Chapecó. Todos os participantes da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unochapecó sob parecer consubstanciado número 2.841.053, e CAEE número 59798016.4.0000.0116.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

(1) Compreendendo as configurações das atuações: reflexos no trabalho

a) Inveja

De acordo com Mendonça (2012) para a psicanálise atuação (acting in), indica "um comportamento marcado por um ato impulsivo e inconsciente que surge com o intuito de substituir uma angústia que não consegue ser expressa pela verbalização. Assim, a resolução do conflito não permeada pela reflexão e pela elaboração" (p. 40).

No transcorrer dos encontros com o grupo de ACS foi possível identificar as atuações das participantes que sinalizaram indícios de processos de sofrimento profundo. Foi acordado coletivamente um setting grupal seguro, contudo houve muita dificuldade para que as agentes conseguissem cumpri-lo. As primeiras atuações observadas foram os frequentes atrasos para entrarem na sala. Também havia saídas frequentes e dificuldades para permanecerem conversando sobre o problema anunciado pelo porta voz, o emergente grupal.

Fomos evidenciando que tais atitudes, denominadas de resistências, tinham a ver com transferências de afetos para a figura da coordenadora (Zimerman, 1999). Entendendo a transferência como imagens internas que se misturam a imagens de pessoas externas para depois poderem ser discriminadas. Um exemplo desta situação ocorreu em um momento onde aguardávamos o horário da sessão grupal e uma participante falou:

Que linda a tua bota! [toca na bota da coordenadora] Eu queria usar botas assim mas não consigo porque tenho as canelas muito grossas... Que inveja! Inveja boa tá! (ACS 7)

Percebe-se neste comentário que, por meio de uma brincadeira, a agente estava projetando na figura da coordenadora, imagens inconscientes de outras pessoas de seu passado distante. Como forma de acolhimento ao comentário da participante a coordenadora falou:

Eu também tenho sentimentos "ruins ", como inveja, por exemplo. Vocês outras também não sentem coisas parecidas?

Sentimentos e ideias ambivalentes podem estar presentes nas relações familiares, com usuários e colegas, e se tornarem obstáculos para o cuidado em saúde. Esta postura de horizontalização da coordenadora com o grupo (Freitas, Metelski, 2020) foi um facilitador para incrementar nesse, uma atitude de aceitação dos aspectos positivos e negativos inerentes ao ser humano, e com isto integrar na consciência pensamentos ou atitudes até então recalcadas no inconsciente, por serem julgadas negativas, erradas, as quais eram geradoras de sofrimento.

O alcance e a tolerância de ambivalência implicam um considerável grau de crescimento saudável e referem-se à emergência no indivíduo da capacidade de assumir a responsabilidade por todos os sentimentos e ideias que pertencem ao estar vivo. A saúde está intimamente ligada ao grau de integração que torna a ocorrência dessa capacidade possível. A ambivalência, portanto, está na base para o relacionamento com a alteridade, inaugurando a ética do cuidado. (COSTA, RIBEIRO, 2016, p. 125)

Podemos notar que houve uma aceitação sobre o "poder sentir inveja". Tal sentimento pôde ser aceito pela consciência. Com isto, os sentimentos negativos de raiva, sensação de humilhação e vontade de atacar e destruir o objeto idealizado invejado, de forma incipiente, começaram a ser superados, passaram a ser falados e trabalhados pelos pensamentos.

b) Briga de Titãs

No início dos encontros as pessoas, ao assumirem uma postura regressiva, passavam a relatar e se queixar de situações conflituosas e traumáticas vividas nas suas infâncias. Após o acolhimento de tais sentimentos recalcados passaram a falar sobre o seu mundo de relação do presente. Foi aí que começaram a surgir ataques transferenciais às figuras de chefia. Percebíamos que havia um misto de características pessoais das figuras do mundo externo com figuras internas idealizadas. Ao refletirmos e trabalharmos com tais atitudes as agentes comunitárias foram adquirindo o insight de que tais pessoas do tempo presente estavam associadas, tinham correlação com pessoas do seu mundo de relação no passado, especialmente figuras parentais.

Foi então, no oitavo encontro, que surgiu o tema do conflito pelo "poder", relatado por uma agente que participou de uma reunião de capacitação da rede de saúde onde participaram, entre outras pessoas, médicos(as) e enfermeiros(as). Nas palavras dela, as agentes comunitárias se sentiram diminuídas, não se sentiam no direito de participar das discussões que estavam acontecendo entre médicos (as) e enfermeiros(as). Dizia ela que era uma "briga de titãs". O relato da agente vai ao encontro do que estudos como de Alonso, Beguin e Duarte (2018) apontam sobre as ACS sentirem-se como o elo mais fraco em relação aos demais profissionais da ESF, pois identificam uma hierarquia de saberes na equipe multiprofissional e alegam possuir um papel desigual no planejamento e na tomada de decisões.

Ao relatar sentimentos de inferioridade em relação aos demais profissionais de saúde, as agentes começaram a recordar, reviver e trabalhar com o tema "briga narcísica". Ou seja, conteúdos, posições muito violentas que são provenientes da parte narcísica da personalidade (Freud, 1956). Tal posição se caracteriza por onipotência, arrogância e intransigência. A parte narcísica da personalidade não aceita não ter a razão e o poder sobre fatos ou pessoas.

No transcorrer deste processo uma das ACS, porta voz do grupo, conseguiu reviver o abandono por parte da figura parental e conseguiu acessar o ódio recalcado da figura materna. Ou seja, sua parte narcísica recalcada, guardava ressentimentos, ódios destas figuras parentais que, segundo esta parte, não poderiam ter cometidos falhas graves, porém, "falhas humanas". Assim, recordar e elaborar esses conteúdos das histórias pessoais, compreendo como eles se reeditam no presente, possibilita ampliar as formas de lidar com o real do trabalho. Nos encontros seguintes a relação das agentes com a coordenadora do grupo passou a ser mais amistosa, e no extra grupo a relação das mesmas com a coordenadora do CSF e médicos(as) deixou de ser persecutória. Percebia-se isso no clima de brincadeira que se estabeleceu das agentes com estes profissionais.

(2) Compreendendo as raízes das atuações: o contexto familiar

c) Criptas

As situações conflituosas e traumáticas foram relatadas por meio de episódios de negligência e violências sofridas por elas na infância e adolescência. A partir de então, passaram a relacionar situações conflitivas mal resolvidas do passado com seu modo de vida atual. Algumas agentes foram relacionando a vivência da infância a episódios de violências a que se submeteram na vida adulta e que ainda se submetem hoje, principalmente em relação ao cônjuge e aos filhos. Aos poucos foram surgindo relatos de vivências familiares e pessoais traumáticas que estavam sendo transmitidas de geração a geração de forma silenciosa e bruta, sem qualquer processamento ou transformação (Kaes, 1996).

Percebi que me mato trabalhando para dar coisas para os meus filhos, coisas que eu não tive na infância. E eles não valorizam o meu esforço, ficam me cobrando cada vez mais coisas, celular mais caro, tênis da moda. Na verdade percebi aqui no grupo que eu queria suprir uma carência minha e acabei estragando meus filhos. (ACS 4)

Após a expressão destas vivências pessoais recalcadas, poder chorar suas carências e relembrar que seus pais transgeracionalmente também passaram por isto, mas agora pode mudar a sua postura para com o filho.

d) Pensamentos e tentativas de suicídio

Conforme falamos anteriormente, no início dos encontros as pessoas do grupo, dentro de um processo regressivo, reviviam seus sofrimentos do passado. À medida que o grupo ia evoluindo passavam a fazer reflexões e correlacionar tais vivências com o seu modo vivendis do presente, como no caso da agente comunitária que havia tentado suicídio. Aos poucos foi conseguindo falar sobre sua história de vida marcada por violências e abandonos. À medida que ia conseguindo falar sobre as suas carências afetivas, suas frustrações vividas ao longo da vida, percebíamos que sua pulsão de vida, pulsão de auto conservação (Freud, 1956) ia se sobressaindo em relação a pulsão de morte. Haja visto que a partir do quarto encontro cessaram seus pensamentos e tentativas de suicídio à medida que começou a falar sobre sua história de vida. No encontro 10° esta agente conseguiu ter insight sobre um dos seus comportamentos de risco - transar sem camisinha como forma de auto agredir-se, e, inconscientemente, expor-se a risco de morte.

A tentativa de suicídio da ACS 3 ocorreu poucos dias antes de início do grupo interativo. As colegas que até então sentiam-se impotentes diante do ato da colega passaram a ouvir sua história de vida e correlacionar a atuação com conflitos não resolvidos no passado e que estavam sendo reeditados no presente. Tiveram o insight de que o suicídio não resolveria o problema, como podemos observar em uma das falas:

Ela precisa é enfrentar, resolver, "matar" os problemas que ela carregava na vida. (ACS 7)

e) Escolhas doentias de parceiros como tábua de salvação

No início dos encontros as pessoas do grupo traziam os conflitos dos seus pais sem fazerem associações com histórias conjugais que estavam vivendo no presente. Aos poucos foram fazendo reflexões sobre o que tinha a ver suas histórias do presente com situações vividas no passado. Foi então que no nono encontro, ao voltarem a falar da infância sofrida, ao relembrarem as brigas dos seus pais, conseguiram relacionar o ambiente familiar com seus maridos e os comportamentos dos seus pais. Aos poucos foram explicitando os seus sentimentos de identificação, oras com o agressor e oras com a vítima (Zimerman, 1999), e assim foram conseguindo superar culpas inconscientes decorrentes de tais processos identificatórios. Refletiram que as escolhas doentias de seus parceiros era uma busca por espécie de "tábua de salvação", uma tentativa de fugirem daquele ambiente ruim onde viviam.

Em determinado momento, enquanto as duas irmãs que viveram tais situações descritas acima discutiam, uma apresentou a seguinte fala:

Meu marido me maltratava muito, me batia, me controlava. Eu descontava toda a minha raiva na comida. Tanto é que depois que consegui sair desse relacionamento eu emagreci 30 quilos ... agora ainda tenho medo de me envolver com alguém... mas acho que esse meu medo é de não ter me sentido amada na infância, de ter sido abandonada pelo meu pai. (ACS 3)

No transcorrer dos próximos encontros o tema da "tábua de salvação" retornou. No encontro 14° quando retomaram este assunto e a coordenadora do grupo trouxe os seguintes questionamentos:

Mas quais são as mulheres que se "casam com estes homens"? A mulher que foi investida de afetos, que se sentiu amada quando criança, se permite servir como "rolha" para o vazio do outro? Ou ela vai procurar alguém para amar e se sentir amada? Portanto, o que estas mães (pais) tem a ver com estas histórias trágicas? Precisam falar sobre isto para aliviarem suas culpas, suas paranóias.

Com isto a coordenadora procurava ajudar o grupo a "construir pensamentos" para poderem lidar, elaborar, resolver conflitos parentais incorporados e reeditados. Portanto, aquela experiência de abandono pelo pai que ficou simbolizado na mente como "maus tratos", e que era atuada com o marido que lhe "mal tratava", deixou de ser inconsciente. Agora se tornava um pensamento consciente. Portanto, passível de ser falado, ressignificado e com isto mudar o curso da história.

f) Feminicídio: O Assassinato Transgeracional

Mais da metade das agentes comunitárias relatavam uma infância marcada por vulnerabilidades no contexto intra e extra familiar. Uma pessoa do grupo, ao lembrar de sua infância, das surras que levava de sua mãe, passava a assumir um semblante melancólico. Ressentia-se muito da mãe não ter sido mais afetuosa com ela, não ter explicado mais as coisas e ter usado de tanta violência. Ou seja, conforme Winnicott (1983, p. 44) houve uma falha primordial no "holding materno, na provisão ambiental total". De outra maneira, esta pessoa sofreu importantes vivências de desamparo. Estas frustrações "exageradas e inadequadas tendem a ser desestruturantes" (Zimerman, 1999, p. 108). Tal afirmativa pode ser percebida no comentário desta agente que em determinada situação concluiu sua fala dizendo:

[...] talvez assim eu não teria me envolvido tanto em confusão, [não] tivesse tido tantos relacionamentos abusivos. (ACS 2)

Enquanto revivia tal passado conflituoso com sua mãe passou a ter uma relação transferencial de ataque contra a pessoa da coordenadora. Como a coordenadora comportava tais ataques e não devolvia tais sentimentos negativos, esta pessoa passou a falar e reviver a perda da filha que foi assassinada pelo marido:

Eu não consigo entender como o meu genro matou a minha filha. Ele era um cara super calmo, fazia tudo por ela. Na verdade, tudo o que a minha filha mandava ele fazer, ele fazia. Achava que ele não era capaz de fazer mal nem para uma mosca... Ele só fez a carteira de motorista porque ela disse pra ele fazer... Ela trabalhava de noite e dormia de dia. Como ele não estava trabalhando e nem estudando, dormia de dia com ela e ficava acordado a noite, limpava a casa e fazia as coisas dele nesse horário... (ACS 2)

Perguntava-se onde tinha errado com a filha, por que a filha não havia pedido ajuda, como não tinha previsto que o companheiro da filha pudesse cometer tal ato. Esta mãe, tomada por um sentimento de onipotência natural dos pais, segundo o qual eles conseguem proteger os filhos do inevitável (Salvi, Franco e Melo, 2020) acabou ficando aprisionada numa culpa superegóica, ou seja, uma culpa torturante, auto acusadora de não ter protegido a sua filha da tragédia. Tal culpa superegóica tem suas raízes em frustrações exageradas com a figura materna as quais tendem a gerar um ódio intenso e culposo na filha (Zimerman, 1999). Estes sentimentos culposos inconscientes foram transferidos para a sua relação com a população de seu território, passou a assumir uma postura onipotente, de ser a salvadora desta população, e sentir-se responsável pela saúde dos usuários. Quando as pessoas negligenciavam suas orientações e por conta disso apresentavam agravamentos de seus quadros de doença, ela sentia-se culpada pela não melhora dos pacientes.

À medida que foi se permitindo experimentar sentimentos negativos destinados a figura materna como ressentimentos, revolta e ódio, sem sentir-se culpada, foi conseguindo entender que era apenas a mãe da sua filha e que, assim como as demais pessoas do grupo, não tinha o controle sobre a vida e morte de um filho, foi aliviando os seus sentimentos de culpa. Com isto, pode assumir uma postura de individualidade na relação com a população da sua área, conseguindo identificar que cada um precisava desempenhar o seu papel no processo de saúde doença, e que o profissional da saúde deveria fazer a sua parte e o paciente também precisava se corresponsabilizar com sua saúde. Caso contrário, a culpa pelos agravamentos de seu quadro pertenceria a si próprio.

A partir daí o ambiente de trabalho deixou de ser assustador e gerador de tensionamento para a referida agente comunitária. Tal fato contribuiu com o seu bem estar pessoal e também ajudou a mesma a relaxar e ajudar as colegas a superarem auto cobranças pessoais indevidas.

(3) Ligações entre as relações de trabalho e o mundo interno da pessoa: o espaço entre o "mar e o rochedo"

Conforme falas anteriormente citadas, as agentes comunitárias carregam em seu mundo interno, histórias pessoais de conflitos ou vivências traumáticas não resolvidas, e ao acompanharem os usuários em suas micro áreas, em determinados momentos, esses funcionam como uma espécie de espelho que refletem e atualizam vivências pessoais das ACS.

Além disso, autores citam a vulnerabilidade social presente nas comunidades como um risco ocupacional que gera condições insalubres de trabalho, desencadeando sofrimento mental nos ACS (Alonso, Béguin, Duarte, 2018; Oliveira, Nery, 2019; Santos, Hoppe, Krug, 2018). Soma-se o fato dessa classe trabalhadora ser formada majoritariamente por mulheres, e sendo o trabalho feminino socialmente desvalorizado (Krug et al., 2017) e relacionado ao cuidado, é explorado como uma relação de amizade, e não como uma relação profissional (Santos, Hoppe, Krug, 2018).

Para exercerem um papel de cuidadoras, oferecer amparo aos pacientes por elas acompanhados, precisam de um aporte técnico advindo das suas funções e também de uma mãe internalizada que um dia exerceu para suas crianças internas uma função de amparo, de holding (Winnicott, 1983). Muitas vezes esta função, este espaço interno de proteção ficou tomado de vazio. Percebe-se isto naquelas situações em que as agentes ouvem e não sabem lidar com os sentimentos diante do sofrimento dos pacientes:

Às vezes os pacientes falam coisas difíceis, falam de abusos que sofreram e começam a chorar e eu não sei o que fazer, o que falar. Essas coisas ficam martelando na minha cabeça depois. (ACS 5)

A agente percebe-se estar falando de um determinado paciente que sofreu "abuso físico". Ela possivelmente não se apercebera conscientemente que os conteúdos mobilizados em seu mundo interno: "[...] coisas ficam martelando na minha cabeça depois", façam parte de suas vivências pessoais. Não consegue fazer ligação e trabalhar, superar possíveis "abusos psíquicos" que ela sofreu e que foram acionados através da fala do paciente que ela atendeu. Tais conteúdos em não sendo trabalhados, processados ficam saturando a mente e potencialmente provocando posturas evitativas de lidar com aspectos subjetivos, sofrimentos psíquicos dos pacientes e/ou somatizações pessoais (Mello Filho, 1992).

Outra agente comunitária relatou os sentimentos negativos que levava consigo para casa. Dizia aperceber-se tensa e sem querer precisava descarregar:

Eu chego em casa e não quero mais saber de nada. Minha filha às vezes traz um problema de escola e eu não suporto ouvir. Eu sou grossa com ela. Com meu marido também. Eu não aguento mais ele reclamando das coisas. (ACS 2)

Aqui se evidencia uma expressão de saturação para ouvir as demandas dos outros. Fica implícito que a agente está dizendo que ela também "quer ser ouvida". Que ela está saturada com seu papel de continência para os sofrimentos alheios. E aí ela atua o seu cansaço sendo "grossa com a filha e com o marido".

No transcorrer dos encontros foi sendo evidenciado as raízes destas atuações de uma forma mais clara. Uma das agentes comunitárias, mesmo percebendo demandas do trabalho, não tinha iniciativa de tomar alguma atitude de enfrentamento. À medida que ela começou a trazer sua história de vida, marcada por superproteção, a qual desprotege de forma semelhante a desproteção, o grupo conseguiu evidenciar que a preguiça não era preguiça de fato, mas sim uma forma de repetir o que havia vivenciado na infância. Na verdade, ela ficava paralisada diante das demandas de trabalho porque mobilizavam a insegurança que a referida agente carregava em decorrência da "desprotetora superproteção" da figura materna. Entendendo a história dessa agente, as demais puderam demonstrar empatia pela colega. Em outro momento, essa mesma agente que foi atacada pelas demais, demonstrando identificação transferencial com a coordenadora do grupo, fala:

Eu achava que você não tinha problemas, que era uma bonequinha, agora vejo que você é gente como a gente! (ACS 1)

No contexto grupal, essa fala demonstra um processo de mudança quanto ao seu lado inseguro de enfrentar e solucionar problemas. Nesse sentido, a coordenadora do grupo passava a representar um novo modelo que foi incorporado pela referida agente. Situações idênticas foram acontecendo com demais pessoas do grupo. Isto era percebido nas falas das mesmas quando elas diziam que estavam se sentindo mais acolhidas umas pelas outras. À medida que iam compartilhando as experiências de vida, as faltas, os traumas, a fome e o desamparo vivenciado, o grupo foi se entrosando cada vez mais. Deste compartilhamento de vivências pessoais íntimas, foi gerando um sentimento de pertencimento ao grupo cada vez mais forte e consequentemente as relações de trabalho foram melhorando.

(4) O grupo interativo enquanto espaço acolhedor para expressar, elaborar e superar as atuações

Na sequência quando elas apontam as situações adversas, tanto em casa como no trabalho, onde cada participante pôde se abrir e dividir seus anseios e dificuldades, elas parecem estar se referindo a ideia de constituição de um setting grupal aonde procuramos reproduzir um ambiente familiar para que os sentimentos sejam compartilhados, buscando promover interação, resolução de conflitos e estabelecimento de novos vínculos e identificações.

No último encontro do grupo com as agentes comunitárias foram discutidos os avanços que cada participante alcançou. Após esse encontro as agentes redigiram um relato para a coordenadora, cujo recorte apresentamos a seguir:

Participamos de um Grupo de Desenvolvimento onde o foco era trabalharmos em cima de nossas dificuldades e diferenças, com o propósito de melhorarmos nossa percepção e a forma que agimos diante de situações adversas do cotidiano. Tanto em casa como no trabalho. Onde cada participante pode se abrir e dividir seus anseios e dificuldades. Achamos que o grupo foi produtivo de maneiras diferentes para cada participante. Mas o ponto principal foi a melhora no trabalho e até na vida pessoal, pois aprendemos a lidar melhor com frustrações, de maneira a não nos afetarmos tanto em casa como no trabalho com problemas irrelevantes. Houve um acolhimento maior entre as colegas e até barreiras foram quebradas.

A partir do relato das agentes comunitárias, percebe-se que há uma sintonia com o propósito central das ações do GDH através de seus Grupos Interativos, ou seja, criar um espaço para que as pessoas possam trazer seus problemas inerentes ao ato de viver a vida, seus conflitos, e em grupo

apontar algum tipo de saída e superação para os referidos problemas. Elas parecem estar confirmando a ideia proposta pelo grupo interativo de ajudar as pessoas a aprenderem a solucionar problemas evitando que os mesmos evoluam para adoecimentos ou agravamentos de sintomas/doenças, e assim adquiram autofortalecimento de suas personalidades e auto promovam saúde através do exercício de enfrentar e solucionar problemas inerentes ao processo do existir humano.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Grupo Interativo promovido com as Agentes Comunitária de Saúde se constituiu como um espaço terapêutico protegido, propício para o acolhimento dos sofrimentos psíquicos vivenciados por essas trabalhadoras. Nesse processo, foi possível identificar as atuações e compreender suas raízes nos conteúdos traumáticos de suas histórias de vida, auxiliando para elaboração e superação dos mesmos.

O espaço grupal se constituiu num gerador potencial de desenvolvimento de todas as participantes, possibilitando autoconhecimento e, ampliação da capacidade psíquica, com contribuições também para aquele coletivo de trabalho. A partir dessa experiência, espera-se que essas trabalhadoras tão importantes no contexto da Atenção Básica, tornem-se mais capazes de lidarem com as problemáticas advindas do ambiente de trabalho, bem como a ajudar usuários e colegas a lidarem com situações conflitivas na busca da solução de problemas inerentes ao existir humano.

Por fim, destaca-se a necessidade de que ações de suporte para a saúde mental das Agentes Comunitárias de Saúde, como a promovida por meio do Grupos Interativo analisado, sejam permanentes. Esse suporte deve abranger também os demais integrantes das equipes de saúde, dadas as exigências do cuidado humanizado, como propõe a Política Nacional de Humanização, o que implica também em humanização do trabalho.

 

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