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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.18 no.1 São Paulo jan./abr. 2021

http://dx.doi.org/10.32467/issn.19982-1492v18nesp.p309-324 

ARTIGO

 

Uma mãe desamparada, uma criança que pede socorro e a "rede" que tece cuidados

 

A helpless mother, a child who calls for help, and the "network" that cares

 

Una madre desamparada, un niño que pide socorro y la "red" que teje cuidados

 

 

Maria José Rodrigues da Cruz

Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares (NESME), São Paulo, SP, Brasil

 

 


RESUMO

Esse artigo aborda a complexidade que é construir linha de trabalho entre equipamentos públicos de territorios diferentes, onde situações de desamparos predominam. Descreve o que foi possível alinhar entre os equipamentos e profissionais de diferentes formações para dar o suporte básico a uma dupla de mãe e filha para seguirem em frente. O Atendimento da dupla realizou-se em Unidade Básica de Saúde por solicitação da Pediatra da criança, que aos quatro anos apresenta recusa em se alimentar e em aceitar os cuidados básicos que a mãe propicia, confrontando-a, o que aumenta as desorganizações psíquicas e incertezas da mãe diante dos próprios fantasmas. A história pregressa desta, são de perdas significativas precocemente, em 2004 é diagnosticada como esquizofrênica, engravida em 2013, o pai da criança a rejeita. Nada exige deste, cria sua filha fazendo todos os tipos de sacrifícios. Constata-se deterioração dos vínculos familiares, e, em tempos de vínculos incertos, a vulnerabilidade parece rondar como um fantasma aqueles cujo desamparo os condenou. Utilizamos o aporte teórico será da Psicanálise Clássica e dos que se dedicam ao estudo da Psicanálise das Configurações Vinculares.

Palavras-chaves: Desamparo; Desorganização Psíquica; Vínculos incertos; Trauma; Rede de cuidados.


ABSTRACT

This article addresses the complexity of building a line of work between public facilities in different territories, where situations of helplessness predominate. It describes what it was possible to align between equipment and professionals from different backgrounds to provide the basic support for a mother and daughter to move on. Their care took place in the Basic Health Unit at the request of the child's pediatrician. At four years of age, the child refused to eat and accept the basic care that the mother provided, confronting her. That increased the mother's psychic disorganization and uncertainties while facing her own demons. The mother's history shows significant losses at early age. In 2004, she was diagnosed as schizophrenic, then she got pregnant in 2013 and the child's father rejected it. No one demanded anything from him, and the mother raised her daughter making all kinds of sacrifices. Family bonds were deteriorating and, in times of uncertain bonds, vulnerability seemed to prowl around those whose helplessness had condemned them. The theoretical contribution used is from Classical Psychoanalysis and those dedicated to the study of Psychoanalysis of Bonding Configurations.

Keywords: Helplessness; Psychic disorganization; Uncertain links; Trauma; Caring network.


RESUMEN

Este articulo aborda la complejidad que es construir una línea de trabajo entre los diversos equipos públicos de territorios diferentes, donde situaciones de desamparados predominan. Describe aquello que fue posible alinear entre los equipos de profesionales de diferentes formaciones para dar un soporte básico a una dupla de madre e hija para seguir adelante. La atención a la dupla se realizado en una Unidad Básica de Salud a pedido del Pediatra del niño, que a los cuatro años presenta un rechazo a se alimentar y aceptar los cuidados básicos que la madre le provee, confrontándola, lo que aumenta la desorganización psíquica e incertezas de la madre frente a sus propios fantasmas. La historia anterior de la misma estaba teñida de perdidas significativas precoces, en 2004 es diagnosticada de esquizofrénica, en 2013 ella queda encinta y el padre rechaza el embarazo. Ella nada le exige y cría su hija haciendo una serie de sacrificios. Se constata un deterioro dos vínculos familiares, e, em tempos de incertezas nos vínculos, la vulnerabilidad parece rondar como un fantasma aquellos cuya desamparo los condeno. Utilizamos la contribución teórica del Psicoanálisis Clásico y los que se dedican al Psicoanálisis de las configuraciones vinculares.

Palabras clave: Desamparo; Desorden Psíquico; Vínculos Inciertos; Trauma; Red de Cuidado.


 

 

Uma mãe desamparada, uma criança que pede socorro e a "rede" que tece cuidados.
"Não é possível ver ou palpar a vivência alheia"
Waldemar José Fernandes

 

Introdução

A palavra Hilflosigkeit (utilizada por Freud para se referir ao desamparo), traduz-se como; incapacidade de se sair bem de uma situação difícil, abandono, impotência e estado de desamparo, aquele que está sem ajuda desarmado. Para Freud o desamparo decorria de um dado essencialmente objetivo; a impotência do recém-nascido humano ser incapaz de empreender uma ação coordenada e eficaz. O que o coloca em total estado de dependência de um outro para satisfazer suas necessidades básicas, é impotente para realizar a ação específica adequada e pôr fim à tensão interna. (Laplanche e Pontalis,1988, p.156/157). É um estado próximo ao desespero e resultante do trauma fundante (o nascimento), como Otto Rank afirmou.

Freud, define dois tipos de desamparo: o primeiro é o desamparo motor ou físico, associado ao trauma do nascimento, indicando um perigo real e ligado a fatores externos; o segundo é o desamparo psíquico, indicando um perigo instintual ou interno. Freud afirma haver característica comum aos perigos internos, que é se ligarem à angústia de perda ou separação, o que provoca aumento progressivo da tensão, a ponto de o sujeito se ver incapaz de dominar as excitações, sendo submergidos por elas, o que define o estado gerador do sentimento de desamparo. (Laplanche e Pontalis, 1988, 156/157).

Eloisa (nome fictício), quatro anos é encaminhada pela Pediatra que a atende há alguns meses em sua UBS (Unidade Básica de Saúde) de referência. A Pediatra refere que; "o comportamento da mãe é estranho, chama a atenção por ser muito insegura, com dificuldades para conseguir realizar atividades simples do cotidiano, como, dar banho na criança, trocá-la, alimentá-la e impor alguns limites. Relata que ao exame a criança mostrou-se muito nervosa e chorosa, como se tivesse medo, atitude fora do habitual na consulta. Refere ainda, que a mãe disse que a criança fala o todo tempo de uma tal 'Maria', que fez algo para ela e que tem medo dela. Solicita avaliação e conduta". Sic. Dra. L.A.R.C.

No primeiro contato com a dupla a Psicóloga vivência sensações de angústias frente ao 'desespero' explícito da mãe e do olhar impactante de uma menina franzina que aparenta menos idade, o que remete a um pedido de socorro. Mas para quem? Teria a Pediatra vivenciado sensações similares e intuído que 'algo' na dupla denunciava questões além de simples 'birras' de criança?

 

Quem está cuidando de quem?

A dupla foi atendida horas depois de terem chegado a UBS em consulta encaixe, devido a erro ocorrido no agendamento da consulta pelo setor responsável por este serviço. A mãe aborda a profissional de forma aflitiva e confusa, a criança crava seus olhos impactantes na profissional. Sra. E (43 anos) com razão, mostra-se irritada, diz ter saído cedo de casa, pois não gosta de chegar atrasada, mora em bairro distante na periferia, refere ter pegado ônibus errado, se perdeu, sofreu muito para chegar a esse lugar, viveu medos terríveis para esperar todo esse tempo! Carrega uma mochila grande para seu tamanho, ela também, é uma pessoa franzina, esta cena transmite a impressão de um enorme peso. Já acomodadas na pequena sala, a profissional valida suas reclamações, pede desculpas, esclarece o ocorrido, diz também não concordar com esses erros. Agradece-a por ter esperado tanto tempo, e, coloca-se à disposição para ouvi-la e ajudá-la no que for possível. Sra. E, num tom pouco amistoso, inquire a profissional;

Sra. E: E agora o que faço? Não tenho condições de voltar aqui, a Pediatra exigiu que ela passe na Psicóloga. Porque me mandaram para esse lugar tão longe, depois de dois anos de espera? Eloisa não me obedece, não fica sentada no banco do ônibus, pula sem parar, quer descer e, isso me enlouquece. Sic. Estaria a Pediatra desconfiando dela? Pensando que ela era louca?

Psicóloga: Por que pensa que a Pediatra desconfia de você?

Sra. E: Os comportamentos estranhos de Eloisa só pioram a meu ver, não gosta de minha comida e recusa-se a comê-la, está muito abaixo do peso, (o que é visível), vive doente, a hora do banho é um terror faz um escândalo; me empurra, arranha, chuta, cerra os lábios e treme (demonstra através de gestos e expressões faciais) de um modo assustador, corre de um lado para outro ensaboada, isso me deixa apavorada 'louca' da vida, sinto medo de machucá-la de que ela caía bata a cabeça, se afogue e até que morra. Nesses momentos, ela fala de uma 'tal Maria', que a assusta, diz para ela não tomar banho, não pentear os cabelos, não comer, e, que sente medo dela. Se algo acontecer a Eloisa, prossegue Sra. E, tenho certeza que as pessoas me culparão.

Aponta para os cabelos da filha, ressalta como estes estão sujos e despenteados. E se interroga, que tipo de mãe achariam que ela era?

Com cuidado, a profissional repete a pergunta para ela.

Psicóloga: Que tipo de mão você acha que é? É direta ao responder.

Sra. E: Me sinto insegura, medrosa, abandonada e nervosa, desesperada, não sei mais o que fazer, Eloisa está me deixando louca.

Algo visível, treme excessivamente, gesticula de forma exagerada, o que chama a atenção. Acrescenta que, infelizmente, elas não têm com quem contar, são sozinhas no mundo. O tom dos relatos, provoca diferentes sensações na profissional, Sra. E desperta desconfianças sobre seu estado mental; compaixão frente ao seu sofrimento e, também o desejo de ajudá-las. A profissional preocupa-se principalmente com a criança, que fora acomodada em uma cadeira próxima à da profissional, sentada em posição de lótus ela olha de forma curiosa para a mãe e para a profissional, transmite a sensação de querer entender o que acontece. Apreensiva, com os relatos sem filtro da mãe, a profissional quando percebe, cuida da criança através de trocas espontâneas estabelecidas entre as duas que estavam muito próximas; trocas de olhares; de sorrisos; de caretas, o que parece incomodar a mãe. Eloisa ri um riso espontâneo. A mãe visivelmente irritada, insiste para que ela não atrapalhe. Naquele momento, as duas, profissional e criança ignoram as broncas de Sra. E, as brincadeiras, persistem.

Psicóloga: Conhece alguma Maria?

Sra. E: Sim, tem uma Maria que mora no mesmo quintal, desconfio que seja dela que Eloisa fala, foi casada com meu tio materno que era uma pessoa boa, infelizmente ele morreu, não a considero minha parente, embora ela se ache no direito de se intrometer em nossa vida. Diz em tom bravo.

Maria, é descrita como sua perseguidora, ainda assim, Sra. E refere que ela foi a única que a ajudou um pouco quando Eloisa nasceu. Agora pouco se veem e nem se falam. Ela não confia em ninguém, não deixa a filha com ninguém. A profissional intrigada, pergunta se a criança não está machucada? Sra. E, diz que ela não a machucou, só se foi na creche, diz isto visivelmente irritada. A profissional sugere verificarem juntas, Sra. E, concorda. Em tom de brincadeira. A profissional dirige-se a Eloisa. Pergunta.

Psicóloga: Será que tem algum dó dói aí? Eloisa diz não saber com as mãozinhas.

Psicóloga: Podemos olhar?

Eloisa desce da cadeira se aproxima da profissional. Mãe e profissional, constatam não haver qualquer machucado visível. Eloisa não volta a sentar-se permanece ao lado da profissional, continua as 'brincadeiras' faciais, e acrescenta toques no braço, mãos e pernas da profissional que corresponde. A mãe em tom bravo ordena que ela se sente, a filha ignora, encara a profissional com seu olhar 'expressivo'. A profissional lembra a Sra. E, que a consulta é da criança, logo, este foi o jeito que ela encontrou de participar, é preciso aceitar. Sra. E, em meio a suspiros profundos aparentando aborrecimento diz em tom dramático, que sua vida não é nada fácil. Um pedido para ser cuidada também?

Psicóloga: Gostaria de falar sobre isto, estou aqui para ouvi-la?

Sra. E, relata sua história de vida (cabe frisar que os relatos foram verbalizados de forma confusa, desorganizada, sendo necessário organizá-los, para esta finalidade). Conta ser filha única, perdeu a mãe quando tinha nove meses atropelada por uma lotação a caminho do hospital, o marido havia sofrido grave acidente de trabalho, uma cunhada que a acompanhava não conseguiu detê-la. A avó materna, a criou, foi uma boa mãe, pensa que foi superprotegida, isto não foi bom. Seu pai sobreviveu ao acidente com algumas sequelas, lembra-se pouco dele, conviveram pouco, também, morreu atropelado ao atravessar uma avenida perigosa alcoolizado quando ela estava com vinte anos. A mãe/avó faleceu cinco anos depois vítima de AVC(s), desde então, sente-se sozinha e perdida. Dos parentes maternos restou uma tia e primos, eles não gostam dela nem de sua filha, sua tia foi contra sua gravidez, disse que ela não teria condições de cuidar de uma criança, parece até que jogou praga nela! Diz, demostrando raiva. Refere ter ouvido das pessoas que depois de ter um filho nunca mais seria sozinha, o que não é verdade, Eloisa não gosta dela, não é sua amiga. O pai da filha a abandonou assim que soube da gravidez, nunca cobrou nada dele, assumiu a gravidez sozinha. Para os parentes maternos ela é 'a louca da família', por tratar-se com Psiquiatra há anos. Diz no encerramento da consulta.

Convencer Sra. E a voltar para outras consultas para melhor compreensão do caso e hipótese diagnóstica, não foi tarefa fácil. Reclamou de tudo, principalmente dos comportamentos de risco da filha que a deixa 'louca'. Propôs-se algumas consultas somente para ela, mesmo esclarecendo as razões para tal proposta, ela só aceitou sob protestos, pois, para ela, a paciente é Eloisa e não ela.

Nas consultas seguintes, apresentou relatório da Psiquiatra solicitado pela profissional, que se surpreendeu com a rapidez que Sra. E o conseguiu. A Psiquiatra informa tratá-la desde 2004, o diagnóstico é Esquizofrenia Residual (CID-10-F.20.5), descreve que além do quadro sintomático característico da patologia atual tem sido recorrente durante o tratamento; oscilações comportamentais, persecutoriedade, dificuldades de estabelecimento de vínculos de confiança, predominância de pensamentos negativos, agravamento do sintomas psicótico durante a gravidez e no pós parto, dificuldades para cuidar da criança, de si mesma e para dar conta das atividades diárias, Sra. E faz uso de medicação controlada, (Haloperidol 2,5/dia, Sertralina 50mgr/dia). Apesar de ter trazido o relatório aberto, Sra. E, insiste em dizer não saber do que se trata. Diz nunca ter sido esclarecida.

Os primeiros encontros com Sra. E revelam a dimensão do nível de abandono vivido por elas, do complexo funcionamento psíquico desta, confirmados pela Psiquiatra. A sensações vividas pela profissional de que Sra. E tinha algum comprometimento é um fato constatado. Na obra Freudiana, desamparo e trauma estão intrinsicamente ligados, tendo em vista que é a partir da vivência traumática fundante (o nascimento) que surge a primeira vivência de desamparo no indivíduo. O termo trauma deriva do grego e designa uma ferida, uma perfuração, uma ameaça radical, um perigo que põe em risco a sobrevivência. É definido como "Acontecimento da vida do sujeito que se define pela sua intensidade, pela incapacidade que se encontra de reagir a ele de forma adequada, com prevalência de efeitos patogênicos duradouros e desorganizações psíquica" (Laplanche e Pontalis,1988, p. 678/679).

Sra. E viveu perdas significativas precocemente, ainda que a mãe/avó tenha sido uma boa mãe, algo falhou. Winnicott (2000, p.305), nos lembra que na infância a psicose é algo comum, mas passa despercebida devido ao modo como os sintomas ocultam-se entre as dificuldades normais inerentes a criação dos filhos. Talvez, essa tenha sido uma preocupação da Pediatra de Eloisa. Winnicott (2000, p.306/308), ele afirma também, que "a saúde mental, é o produto de um cuidado incessante que possibilita a continuidade do crescimento emocional (...) e que, os estados esquizoides e a esquizofrenia, são constituídos nas etapas muito iniciais quando o bebê está sendo apresentado gradualmente à realidade externa. Diferente de Freud para Winnicott (2000, p.257/258), nem todo nascimento é traumático, ele afirma que é preciso avaliar cada experiência de nascimento, considerar a capacidade da mãe devotar-se ao recém-nascido, e do casal de assumir responsabilidade conjuntas, o grupo social e o ambiente tem para ele importância fundamental no auxílio ao desenvolvimento sadio do bebê. A história de vida da dupla, aponta para condições de abandonos atuais, e pregressos que sugerem fracassos desses aspectos. Supõe-se que os traumas vividos precocemente, numa fase em que o bebê ainda não é capaz de se cuidar e se defender e os cuidados do meio fracassam, as vivências de agonias primitivas, remete ao que Winnicott define como 'ameaça de aniquilamento'. Sra. E, transmite a sensação de que a vida está sempre a atropelá-la, a ameaçá-la, a fala é acelerada, a respiração é ofegante, as gesticulações são exageradas e nervosas, as palavras são pronunciadas de modo aflitivo, incompreensíveis, sendo necessário constantes elucidações para melhor compreensão. Macedo, (2014), afirma que:

O trauma psíquico se refere a uma situação complexa, envolvendo o mundo interno e externo, que ativa a fantasia que decorre da dificuldade do indivíduo para lidar com a situação, induzindo a uma falha na barreira de proteção. O fato dele não conseguir integrá-lo, no momento da vivência, em um contexto significativo, indica que a textura psíquica foi rompida. Assim, o trauma psíquico é uma resposta inesperada que provocou afetos pavorosos de medo, susto, angústia, vergonha ou dor psíquica de forma tal que o sistema nervoso teve dificuldade para resolver por meio do pensamento associativo ou por uma reação motora. Essa vivência remete ao desamparo". (pp. 186-187).

Pelos relatos de Sra. E os vínculos familiares/parentais restantes parecem esgarçados, algo se rompera. Ela mesma, afirma não terem com quem contar, são sozinhas no mundo. O pavor expresso por Sra. E de que algo aconteça a filha (único vínculo que parece ser importante para ela) marcaram os atendimentos. Fernandes, em Grupos e Configurações Vinculares, descreve no capítulo 3, o complexo conceito de 'vínculo', de diferentes teóricos estudiosos da Psicanálise das Configurações Vinculares, ao qual remeto o leitor para maiores esclarecimentos. Atenho-me aqui, ao conceito de 'duplo vínculo' citado pelo autor:

Nesta reflexão sobre o vínculo, é interessante também estudar um conceito inicialmente utilizado em relação à esquizofrenia o conceito de duplo vínculo. (...). O termo duplo vínculo designa uma forma de opressão que invade e entrava a vida psíquica do sujeito ou do par envolvido [...]. (Fernandes, Svartman, Fernandes, 2003, p 45-46)

Fernandes (p.46 e 48), propõe ainda, que é através da comunicação que se pode estudar as vinculações e apreender o colorido de amor, de ódio, de busca de reconhecimento privilegiado etc. Que caracterizam cada vínculo. No caso em questão, pôde-se observar através da comunicação confusa de Sra. E, que ela se comunica muito mais no modo analógico que caracteriza a comunicação não verbal, gestos, olhares, tonalidade da voz etc., que são comunicações mais ligadas aos períodos arcaicos da evolução do homem. Fernandes considera importante as descobertas de Gregory Bateson, antropólogo e pelos pesquisadores da Comunicação Interacional da escola de Palo Alto, que destacou aspectos importantes constituintes do duplo vínculo:

Uma ordem paradoxal e uma desqualificação. Gregory Bateson (1972) acredita que a esquizofrenia é o resultado de uma interação familiar em que ocorre padrões sequenciais característicos que levam a experiências vivenciais em que o impasse, a ambivalência e a confusão mental são consequentes a mensagens contraditórias, impossíveis de serem obedecidas. (Fernandes, Svartman, Fernandes, 2003, p 45-46)

Pressupõe-se que o complexo modo de funcionamento psíquico de Sra. E, com predomínio de pensamentos persecutorios e negativos entre outros sintomas psicóticos característicos da patologia, de fato, dificultam estabelecer vínculos confiáveis. Infelizmente, não houve tempo para esclarecimento sobre a história pregressa da criança, gestação, parto e o desenvolvimento, uma vez que, Sra. E permaneceu pouco tempo no tratamento (será que por medo de se vincular com a profissional?), nesse período parecia presa aos próprios conflitos fantasmáticos. Quando das tentativas de falar sobre o desenvolvimento da filha em suas consultas individuais, Sra. E opta por narrar as próprias angústias, sendo a maioria de cunho persecutório, o que foi respeitado pela evidência da importância para ela. As preocupações com o desenvolvimento psíquico emocional de Eloisa, foi consenso entre os profissionais envolvidos com o caso. Entendeu-se que Eloisa pedia socorro para as duas.

 

A 'rede pública' e as tentativas para tecer cuidados

A palavra 'rede' na língua portuguesa carrega diferentes significados, entre eles o de sustentar, amortecer, acolher, amparar algum objeto e/ou pessoa. Na saúde pública, esta palavra é utilizada usualmente sem atentar para a intricada 'rede' que compõe o SUS (Sistema Único de Saúde), sistema de saúde pública vigente no país, criado pela Constituição Federal de 1988 e regulamentado pela lei nº 8.080/90, onde está descrito minuciosamente as diretrizes, os níveis de complexidade e de funcionamento de cada equipamento público que compõem a rede de saúde. No entanto, na prática diária dos equipamentos, sabe-se que essas regras de funcionamento são quase impossíveis de serem cumpridas dada a realidade; insuficiência de profissionais técnicos, brutais diferenças socio culturais, econômicas que predominam no país, superpopulação nas periferias, entre outros fatores que não cabe citar aqui. Inevitavelmente esses fatores geram demandas por serviços muito aquém do que o sistema suporta e está previsto na lei. O que não foi diferente nesse caso, como visto no início, a dupla foi agendada em bairro distante de sua moradia por falta de profissionais da especialidade em sua referência, depois de dois anos em fila de espera.

Após constatação pela Psicóloga da vulnerabilidade da dupla, da complexidade do caso, do precário funcionamento psíquico de Sra. E, da distância entre os territórios como dificultador real para as equipes se comunicarem e conciliarem as agendas sobrecarregadas, tentou-se construir um Projeto terapêutico possível e conjunto entre os equipamentos como estratégias de cuidado para a dupla. Inseriu-se a Assistente Social (AS) da referência de Sra. E, no processo, ela mostrou-se cooperativa e preocupada com a dupla. Realiza visita domiciliar e confirma as difíceis condições que a dupla vive; péssimas condições de moradia, desorganização, sujidade, total desconforto, renda insuficiente (um pouco mais de meio salário-mínimo), risco eminente de acidentes para a criança devido à falta de segurança, o que gera isolamento desta mantendo-a 'prisioneira' nos dois cômodos de um segundo andar. Informa que a ida de Eloisa a creche se deu por via judicial. A Coordenadora Pedagógica da creche de Eloisa também inserida no processo, mostra-se solidária ao tratamento psicológico preocupada com o jeito 'estranho' da mãe, porém, reforça a importância da frequência a creche único lugar de socialização da criança. Descreve que Eloisa apresenta desenvolvimento adequado para a idade, é uma criança dócil, com rápida adaptação, socializa com as outras crianças e, é muito querida por todos.

Essas informações amenizam as preocupações dos profissionais com a criança e, ajudam a direcionar o foco dos cuidados possíveis em Sra. E. Lazslo, preconiza a sofrida missão da saúde pública em atender demandas psicossociais atuais:

Outra questão extremamente relevante, embora encoberto na maioria dos estudos epidemiológicos e no planejamento público, é que as razões que levam a população a buscar ajuda médica não são derivadas de doenças ou afecções de seus corpos, mas são males existenciais, doença da alma, ou como se diz hoje, razões psicossociais." (Ávila, Lazslo. A, 2016, p. 120).

Certamente, é necessário considerar as questões psicossociais da dupla, a precariedade constatada pela AS, provavelmente contribui para o agravamento da situação. A equipe que conduziu o Projeto, resumiu-se a AS e Psicóloga, posteriormente a Pediatra, tentam pensar estratégias de cuidado que possam inserir Sra. E, nos serviços oferecidos em seu território, o que foi desafiador e frustrante. A AS oferece a Sra. E a inserção no SASF (Serviço de Apoio a Saúde da Família) onde ela receberia apoio, orientação da equipe das ACTs (Agente Comunitário de Saúde), poderia frequentar os grupos de mulheres com diversas finalidades, inclusive de socialização. Ela recusa de forma categórica alega não ter tempo, nem dar conta de mais compromissos, pois não consegue sequer realizar suas atividades rotineiras, cuidar de Eloisa, limpar e organizar a casa, fazer comida, levá-la às consultas, a escola etc. Reafirma estar vindo na Psicóloga apenas para que a filha seja atendida próximo a sua residência, insiste no encaminhamento, já que a Pediatra mandou. Como não há vaga, propõe-se dar continuidade ao atendimento até que surja a oportunidade de encaminhá-las. Aceita contrariada, deixa claro, que somente pela filha.

Na Psicologia, propôs-se diferentes modalidades de atendimento para melhor compreensão do caso; Sra. E sozinha, a dupla a cada quinze dias, Eloisa sozinha, com objetivo de ofertar lugar de cuidado para ambas, principalmente a Sra. E para tentar resgatar e ou ajudar a construir algum vínculo parental, criar uma 'rede' de apoio para elas, para compreender o funcionamento individual de cada uma, etc. Sra. E, esforça-se para cumprir com o combinado, mas, as limitações próprias de sua patologia (principalmente os delírios persecutórios) dificulta e empaca o processo de tratamento, confunde os dias dos atendimentos ora combinado. Traz Eloisa em sua consulta, comparece sozinha no dia da dupla e assim sucessivamente. As vivências persecutórias predominam. A situação piora com ocorrências reais que reativam traumas primitivos. No final de 2018, o pai de Eloisa morre atropelado em outro Estado, as desorganizações psíquicas de Sra. E agravam-se com aumento significativo de produções delirantes. Esta situação força o afastamento momentâneo da criança para protegê-la dos pensamentos mortíferos de Sra. E, prioriza-se cuidar dela. Elas não mantinham contato com ele há anos, ainda assim, Sra. E 'fantasia' que a filha sofrerá muito com essa perda, que precisa comunicar isto para a criança de um jeito que ela não sofra. Projeta em Eloisa as dores que não pode viver ou 're-viver'.

Outro episódio, foi a passagem de Eloisa da creche para o EMEI (Escola Municipal de Ensino Infantil), dois meses depois. Sra. E vive isto como ameaça a filha, 'delira', que algo terrível vai acontecer na nova escola, que Eloisa não está preparada para sair da creche. A profissional vivencia contratransferencialmente angústias indescritíveis. Winnicott (2000, p.277), atenta, que os pacientes 'insanos' representam sempre uma pesada carga emocional para os que dele cuidam. Ele também diz que o paciente reconhece no Analista, (eu acrescentaria, e em outros profissionais), somente o que ele mesmo é capaz de sentir (Winnicott, 2000, p.278).

As vivências contratransferenciais dos diferentes profissionais envolvidos no processo com a dupla, entendendo-se como contratransferência; o conjunto de emoções e ações dos profissionais em resposta aos mecanismos projetivos transferenciais da dupla sobre eles, discutidos em reunião de equipe, quando do encerramento do caso atendendo a solicitação de Sra. E, foram de paralisia, de impotência, de fracasso coletivo frente a dupla. Levisky, aponta que; "A construção de um vínculo passa pela representação do mundo incialmente através do corpo, depois pelo reconhecimento da existência de um outro e, finalmente, pela capacidade de comunicação com um outro. A qualidade vincular está ligada as experiências emocionais vividas na história de vida de cada pessoa". (Levisky, 2003, p.218). De fato, a equipe vivenciou as ressonâncias das vivências de fracassos repetitivos de Sra. E, bem como impotência diante das cobranças exigidas pela instituição 'mãe' exigente (que cobra trabalho breve e resolutivo frente aos excessos de demanda de pacientes por atendimento em fila de espera) pela sociedade (que acha que o paciente psiquiátrico tem que ser consertado) pela família da paciente para quem ela se tornou um peso. A Psicóloga, pôde reconhecer através da supervisão do caso que não poderia salvar a dupla de seus sofrimentos e mazelas, e como Sra. E, as angústias pareciam excessivas para ela também. Essas compreensões ajudaram-na a sair da paralisia, respeitar os limites de Sra. E, conversar com a equipe, e juntos entenderem, que fizeram o que foi possível para ajudá-las nessa trajetória.

Na psicologia, a partir desses esclarecimentos reconheceu-se pequenos avanços de Sra. E: ela pôde ser ouvida, falar e olhar a difícil história de vida e seu mundo caótico, decidir espontaneamente como contar sua história, passou a escrever em um caderno suas angústias e fantasias para não esquecer de relatá-los nas consultas, (a maioria delírios de cunho persecutórios), pôde ser percebida por sua UBS de referência como alguém que precisava de cuidado diferenciado tornou-se visível (deixou de ser um número na fila de espera), decidiu interromper o atendimento, talvez pela primeira vez pôde abandonar para não ser abandonada. Apesar das dificuldades de Sra. E para estabelecer vínculos de confiança, vinculou-se a seu modo com a Psicóloga. Sra. E, no entanto, apresentou claras dificuldades para aceitar ajuda, para se apropriar das melhoras obtidas, mostra-se irritadíssima e expressa muita raiva quando é pontuado para ela qualquer dado de melhora. Provavelmente, devido ao predomínio de pensamentos ruminantes e negativos que a invade, sem que possa controlar. É um estado próximo ao desespero. "Tudo é ruim, nada dá certo, todos querem seu mau, perde todas as pessoas que gosta, nada melhora em sua vida, não tem com quem contar." Sic. A história de vida de Sra. E, é de abandonos, perdas, desamparo. Por mais que tenhamos tentado alimentá-la, Sra. E, como Eloisa, parece que nesse momento, recusa o 'alimento' que ela não escolheu, aceita apenas os alimentos que de alguma forma lhe é palatável e pode digerir.

 

Referências

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Maria José Rodrigues da Cruz: Psicóloga, Título de Especialista em Psicologia Clínica. Especialização em Psicossomática Psicanalítica pelo Instituto Sedes Sapientiae, Formação em Coordenação e Manejo de Grupos, pelo Nesme Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares. Membro do Projeto de Pesquisa e Atendimento em Psicossomática Psicanalítica, e, do Departamento de Psicossomática Psicanalítica. Membro do Nesme.
E-mail: majo.psi@gmail.com

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