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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.18 no.1 São Paulo jan./abr. 2021

http://dx.doi.org/10.32467/issn.19982-1492v18nesp.p388-406 

ARTIGO

 

Grupo comunitário de saúde mental: relações estabelecidas por participantes regulares de longo prazo

 

Mental health community group: relationships established by long-term regular participants

 

Grupo comunitario de salud mental: relaciones establecidas por los participantes regulares de largo plazo

 

 

Nathália Fernandes Minaré; Carmen Lúcia Cardoso

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, SP, Brasil

 

 


RESUMO

O Grupo Comunitário de Saúde Mental (GCSM) é um dispositivo de promoção da saúde mental cuja proposta de cuidado se fundamenta na atenção às experiências cotidianas. O objetivo deste artigo é compreender as relações estabelecidas por participantes regulares de longo prazo com o GCSM, ou seja, pessoas que participam há no mínimo dois anos do GCSM, de forma voluntária e ativa. Trata-se de um recorte de uma pesquisa qualitativa, realizada através de entrevista aberta e observação participante, com uso do método de análise temática. Foram entrevistados sete participantes, ex-usuários de serviços de saúde mental. A análise aponta vinculação dos participantes ao Grupo, compreendida segundo três principais temas: relações afetivas (sentimentos de valorização, gratidão e apreço pelo Grupo); relações comunitárias (relações pautadas pela empatia e movimento de solidariedade); e relações de pertencimento (processo gradual de vinculação ao Grupo, percepção de lugar de pertença). O estudo das relações estabelecidas com o GCSM contribuiu para melhor compreensão do protagonismo de pessoas em sofrimento mental, além de auxiliar a problematizar o conceito de adesão às intervenções de dispositivos de saúde mental.

Palavras-chave: Saúde Mental; Grupo Comunitário de Saúde Mental; Promoção de saúde; Vínculo; Relações.


ABSTRACT

The Mental Health Community Group (MHCG) is a mental health promotion strategy whose care proposal is based on attention to daily experiences. The purpose of this paper is to understand the relationships established by long-term regular participants with MHCG, which means people who have been participating in the MHCG for at least two years, voluntarily and actively. This is a qualitative research, conducted through open interviews and participant observation, using the thematic analysis method. Seven participants were interviewed, who were users of mental health services. The analysis points to the participants' bond with the Group, which can be understood by three main themes: affective relationships (feelings of gratitude and appreciation for the Group); community relationships (relations based on empathy and solidarity); and belonging relationships (gradual Group connection process, perception of place of belonging). The study of the relations established with the MHCG contributed to a better understanding of the protagonism of people in mental distress, besides helping to problematize the concept of adherence to interventions of mental health strategies.

Keywords: Mental health; Mental Health Community Group; Health promotion; Bond; Relationships.


RESUMEN

El Grupo Comunitario de Salud Mental (GCSM) es un dispositivo de promoción de la salud mental cuya propuesta se basa en la atención de las experiencias cotidianas. El objetivo de este artículo es comprender las relaciones establecidas por los participantes regulares a largo plazo con el GCSM, es decir, las personas que han estado participando en el GCSM durante al menos dos años, de forma voluntaria y activa. Se trata de un recorte de una investigación cualitativa, realizada mediante entrevistas abiertas y observación participante, utilizando el método de análisis temático. Fueron entrevistados siete participantes, ex usuarios del servicio de salud mental. El análisis apunta al vinculo de los participantes al Grupo, comprendido por tres temas principales: relaciones afectivas (sentimientos de valorización, gratitud y aprecio por el Grupo); relaciones comunitarias (basadas en empatia y solidaridad); y relaciones de pertenencia (proceso gradual de vinculación al grupo, percepción del lugar de pertenencia). El estudio de las relaciones establecidas con el GCSM contribuyó a una mejor comprensión del protagonismo de personas con sufrimiento mental, además de ayudar a problematizar el concepto de adhesión a las intervenciones de salud mental.

Palabras Clave: Salud mental; Grupo Comunitario de Salud Mental; Promoción de la salud; Vinculo, Relaciones.


 

 

Introdução

Pensar os cuidados em saúde mental no atual contexto brasileiro demanda compreensão do movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira, de sua repercussão na assistência psicossocial e nas estratégias de cuidado. Amarante e Nunes (2018) descrevem a Reforma Psiquiátrica como um movimento social complexo, que não se reduz à reforma de serviços de saúde mental e suas tecnologias de cuidado, mas sim que visa a um amplo processo de reflexão acerca da assistência em saúde mental e do lugar social da loucura em nossa cultura.

A partir disso, a Lei nº 10.216/2001 (Brasil, 2001) reconheceu o movimento reformista iniciado no Brasil na década de setenta, visando à reestruturação do modelo manicomial, o que representa um complexo processo de transformações sociais no campo da saúde mental permeado por alguns momentos de avanços e outros de retrocessos (Amarante & Nunes, 2018). Dentre as principais propostas nas políticas públicas de saúde mental advindas da reforma estão: reduzir os leitos psiquiátricos e a hospitalização; priorizar modelos substitutivos de atendimento em saúde mental (como Centros de Atenção Psicossocial e os Hospitais-Dia); fortalecer atendimentos integrais, comunitários, interdisciplinares e descentralizados, além de promover reinserção e reabilitação psicossocial (Brasil, 2001).

Em relação às medidas assistenciais substitutivas em saúde mental e de promoção de saúde, as práticas grupais se revelam instrumentos potenciais para o cuidado integral em saúde mental no âmbito comunitário, pois possibilita o reconhecimento da multiplicidade e da sociabilidade de usuários, familiares e profissionais de saúde (Nogueira, Munari, Fortuna & Santos, 2016). Além disso, os trabalhos grupais favorecem a construção coletiva de conhecimento, identificação, estabelecimento de vínculos, comunicação, troca de experiências e reflexão sobre as realidades vivenciadas e compartilhadas (Zimerman, 2007). Este trabalho aborda especificamente uma estratégia comunitária grupal denominada Grupo Comunitário de Saúde Mental (GCSM).

O GCSM é um grupo de promoção de saúde mental que se desenvolveu no contexto do Hospital-Dia (HD), integrado a um hospital geral no interior do estado de São Paulo. Teve início em 1997 e ocorre, semanalmente, como uma proposta singular, gratuita, aberta à comunidade e heterogênea, cujo enfoque é o cuidado em saúde mental através de atenção, reflexão e compartilhamento de experiências cotidianas (Ishara & Cardoso, 2013).

O GCSM tem uma hora e meia de duração e ocorre em sessão única, ou seja, não pressupõe continuidade para as próximas semanas. Em sua estrutura, a sessão grupal está dividida em três principais etapas: após o acolhimento dos participantes e a apresentação da tarefa grupal, inicia-se o Sarau, cuja proposta é o compartilhamento de produções artísticas ou culturais que sejam significativas para os participantes; promovendo a expressão da pessoa e de sua subjetividade a partir da arte e da cultura. A segunda etapa envolve o compartilhamento de experiências pessoais cotidianas, o que permite valorização das vivências, visando favorecer processos de elaboração, amadurecimento da pessoa humana, apropriação das experiências e aprendizados. Por fim, o terceiro momento é a Etapa Reflexiva, que consiste na elaboração do trabalho grupal e possibilita que os participantes relatem sobre a repercussão daquela sessão grupal em si mesmos, favorecendo a troca de experiências e identificações (Ishara & Cardoso, 2013).

O GCSM foi originalmente inspirado na proposta dos grupos operativos de Enrique Pichon-Rivière (1907-1977), e seu desenvolvimento tem ocorrido por meio de observações sistemáticas, discussões clínicas e investigações científicas, possibilitando ampliação e refinamento de seus objetivos e reformulações metodológicas. Assim, estabeleceu-se um diálogo com a fenomenologia de Edmund Husserl (1859-1938) e Edith Stein (1891-1942). A partir de tal abordagem teórica, os construtos acerca da dimensão do encontro humano, da empatia e da dimensão comunitária se mostram profícuos para a proposta de cuidado em saúde mental do GCSM (Ishara & Cardoso, 2013).

A dimensão do encontro humano remete à concepção do relacionamento interpessoal como fator constitutivo da pessoa. A ideia de empatia abarca o entendimento de que o humano possui em sua estrutura atos empáticos que permitem reconhecer o outro como sujeito e não objeto. Na compreensão de Stein, isso vai além de se colocar no lugar do outro, mas se refere, principalmente, a um ato que possibilita o reconhecimento e a apreensão do outro como meu semelhante. Por fim, a dimensão comunitária implica características predominantes de solidariedade e responsabilização recíproca, assim como cuidados e afetos entre os membros de uma comunidade (Ishara & Cardoso, 2013). Coelho Júnior e Mahfoud (2006) compreendem, a partir de Stein, que uma vivência comunitária implica "um reconhecimento de uma experiência de 'nós', uma experiência de pertença" (p. 17).

Tais questões também dialogam com o que alguns estudiosos da psicanálise discutem quanto à saúde mental e constituição das relações humanas. Nessa linha, Mizrahi (2017) e Safra (2004, 2005, 2006) abordam, a partir da teoria de Donald Winnicott (1896-1971), a relevância das relações humanas para a experiência subjetiva, compreendendo a possibilidade de ser recebido, acolhido e reconhecido por um outro como essencial ao desenvolvimento saudável do self. Além disso, segundo Mizrahi (2017), a experiência de pertencer ao ambiente relacional está associada, na teoria winnicottiana, à constituição da própria subjetividade, uma vez que o autor entende a possibilidade de existência psíquica como dependente de um contexto que permita ao indivíduo "sentir-se parte".

Nessa perspectiva, Mizrahi (2017) discute o desamparo e a fragilidade de vínculos e relações como um aspecto marcante da contemporaneidade, sejam essas relações de trabalho, de assistência, de comunidade, ou de família. Nesse contexto, as pessoas têm experienciado sentimentos recorrentes de não pertencimento e solidão, que segundo a autora, podem se desdobrar em adoecimento mental de maior ou menor gravidade. Em consonância, Safra (2004) aborda o ser humano como um ser essencialmente comunitário de modo que quando há situações que fraturem ou impeçam a dimensão comunitária, há adoecimento do ser humano.

O GCSM pode ser entendido como uma ação em saúde mental que propõe o retorno à dimensão comunitária, compreendida como essencial para saúde, integridade e constituição humana (Ishara & Cardoso, 2013). Ao longo do desenvolvimento do GCSM e dos constantes estudos realizados sobre o mesmo, tem sido possível observar a participação continuada de usuários e ex-usuários de serviços de saúde mental que têm mostrado engajamento para com este trabalho grupal. Tais participantes frequentam o mesmo, de modo voluntário, de forma ativa, ou seja, trazendo contribuições frequentes ao Grupo, por período superior a dois anos, apresentando certa regularidade em sua presença. Por isso, optou-se por denominá-los neste estudo como "participantes regulares de longo prazo".

No contexto da assistência psicossocial humanizada é válido retomar estudos acerca das estratégias comunitárias; assim como refletir sobre o trabalho do GCSM, que atua no campo da promoção de saúde e tem por características em sua estrutura ser aberto, de sessão única, de modo que qualquer pessoa possa participar quantas vezes desejar. A partir disso, emerge a possibilidade de estudo acerca da percepção dos "participantes regulares de longo prazo" sobre a relação com o GCSM, a fim de compreender como a mesma repercute em seu cuidado com a saúde mental.

Portanto, o objetivo deste artigo é compreender as relações estabelecidas por participantes regulares de longo prazo com o GCSM.

 

Método

Este trabalho é um recorte de uma pesquisa amparada na abordagem qualitativa que, segundo Minayo (2014), possibilita compreender a complexidade das relações sociais a partir da perspectiva dos atores sociais envolvidos. Por se tratar de uma pesquisa com seres humanos, o estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE nº 88102418.1.0000.5407), e todos os procedimentos éticos foram seguidos, dentre eles a elaboração e assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, a preservação da identidade dos participantes e a adoção de nomes fictícios.

Contexto do estudo

O contexto deste estudo é o GCSM que ocorre em um Hospital-Dia (HD), unidade de assistência em saúde mental no nível terciário, que se responsabiliza pelo regime intermediário entre a internação hospitalar e o atendimento ambulatorial, atendendo casos psiquiátricos graves e em crise, por meio de internação parcial durante cinco dias na semana (Brasil, 1992). Há atendimentos individuais e em grupos para usuários e familiares, reuniões comunitárias, atividades físicas e recreativas, com equipe multiprofissional. O tratamento nessa instituição visa valorizar os vínculos e o convívio dos pacientes com familiares, profissionais e com a comunidade, como forma de cuidado.

O GCSM ocorre semanalmente no HD, com duração de uma hora e meia, abarcando cerca de 30 a 40 participantes, dentre os quais usuários e ex-usuários do HD, seus familiares, profissionais de saúde, residentes, estudantes, e pessoas da comunidade. Este Grupo tem sido coordenado por seu fundador desde o nascimento deste programa.

Constituição e análise do corpus

Foram utilizados dois instrumentos: entrevista aberta e observação participante. A entrevista aberta se mostra uma ferramenta interativa que possibilita ao entrevistado a liberdade de relatar sobre si, expor ideias sobre a temática proposta e atribuir significados às mesmas, não apresentando roteiro estruturado, e sim perguntas disparadoras (Minayo, 2014). A entrevista teve por questão norteadora: "Conte-me sobre sua participação no grupo". Já a observação participante possibilita "ao observador mergulhar em outros sentidos do contar-se, ultrapassando os limites da fala" (Santos, Araújo e Bellato, 2016, p. 7). A observação participante foi realizada pela primeira autora deste estudo por três anos, o que resultou na elaboração de um diário de campo com registros de detalhes do fenômeno estudado, além de favorecer o vínculo da pesquisadora com os participantes do estudo.

Os dados foram analisados por meio do método de análise temática proposto por Braun e Clarke (2006), o qual possibilita identificação, análise e apresentação de padrões temáticos presentes no material através da organização e descrição do conjunto de dados. Para a discussão dos resultados, foi realizada interlocução com autores cujos estudos e teorias têm auxiliado o embasamento metodológico do GCSM (amparados pela fenomenologia de Edith Stein), além de autores da área de saúde mental e trabalhos grupais (amparados sobretudo pela psicanálise winnicottiana).

Caracterização dos participantes

Foram convidados a participar da pesquisa pessoas que integram o GCSM, de acordo com os critérios de inclusão: (a) ter acima de 18 anos; (b) ter participado do GCSM por no mínimo dois anos; (c) ter apresentado participação regular, ou seja, voluntária, ativa e com regularidade; e (d) ser ex-usuário de serviços de saúde mental. Foram entrevistados sete participantes, que foram considerados participantes regulares de longo prazo no GCSM. Os participantes apresentam idade média de 44 anos e tempo de participação médio no GCSM de 7,3 anos.

 

Resultados e Discussão

A partir da análise realizada destacam-se três principais temas quanto às relações desenvolvidas pelos participantes regulares de longo prazo com o GCSM: relações afetivas; relações comunitárias; e relações de pertencimento. Essas serão discutidas a seguir de modo inter-relacionado, pois apresentam uma interdependência, constituindo uma a outra.

Primeiramente, os entrevistados relatam um percurso de participação no GCSM permeado por diversos momentos, reflexões, experiências e sentimentos. Todos contam sobre um desafio inicial em relação à participação, decorrente de dificuldades de compreensão do Grupo, de suas características e propostas, além de dificuldades em lidar com o convite realizado pela tarefa grupal de postura de abertura para a troca e compartilhamento de experiências. Isso pode ser ilustrado pelo seguinte relato:

Eu não gostava muito de vir aqui (no GCSM) (...) e tem pessoas com dificuldades e eu não tava tão acostumado com esse tipo de público que era daqui (...) Eu vinha aqui, eu não entendia muito bem, então eu ficava um pouco mais quieto, assim, né. Aí como, com o tempo eu fui entendendo e fui trazendo a, é, as minhas experiências, o que me fazia bem também (...) eu aprendi que quanto mais eu convivo com as pessoas eu vou aprendendo com as pessoas, eu vou, eu vou trocando ideias (Carlos)

O participante refere distanciamento do GCSM e das pessoas que o compunham no início do contato, o que lhe instigava a permanecer "mais quieto", mais reservado em seu espaço de observador, evitando manifestar-se. Contudo, "com o tempo", o entrevistado relata maior entendimento da proposta, a qual foi se tornando mais familiar, possibilitando-lhe compartilhar suas experiências e perceber que isso lhe "fazia bem", indicando o potencial terapêutico do compartilhamento das próprias experiências para este participante, que passa a referir certo bem-estar subjetivo.

Os demais relatos a seguir trazem outras percepções dos participantes acerca de modos de se relacionar com o GCSM:

Eles te acolhem. É isso o Grupo Comunitário, acolhedor (...) uma comunidade, uma família (...) É esse gesto deles, de quando a gente chega e a primeira coisa quando chega é 'ó, você veio, que bom te ver aqui, fico feliz, de te ver'. E quando você abraça alguém e fala 'ô, gostei desse abraço, tava precisando', 'o seu sorriso hoje tava mais bonito que terça-feira passada'. Você escuta isso também, viu (Lúcia).

Eu sinto muito apreço pelo Grupo. Porque o Grupo sente muito apreço por mim (...) quando eu trago a minha experiência e vejo que todo mundo aproveitou a experiência, todo mundo sentiu que a experiência foi boa pra eles, isso me deixa tão bem, isso me deixa tão realizado, me deixa tão de bem comigo mesmo, é como se eu tivesse feito uma troca (Luiz).

Tais falas se referem a sutilezas presentes no cotidiano do GCSM. É possível entender que há um ambiente humano que preza pelo acolhimento, algo que não é desempenhado apenas pela equipe profissional, mas também pelos demais participantes, que interagem de modo afetivo a partir de um "gesto". Safra (2004, 2005, 2006), sob o viés winnicottiano, discute a ideia de gesto, que se refere a um movimento espontâneo em busca de um outro, de uma presença humana. Pode-se pensar que, a partir dessa possibilidade de gesto humano associada à recepção do outro e manifestação de afetos percebida no contexto do GCSM, a participante Lúcia significa o Grupo como uma família, o que sugere estabelecimento de vínculos de ordem afetiva, comunitária e de pertença com os demais participantes e com o próprio GCSM.

Além disso, no trecho da fala de Luiz, pode-se perceber uma relação afetiva mútua, uma vez que se sentir importante e querido pelo conjunto grupal está associado ao apreço que o entrevistado sente pelo mesmo, de modo a também considerar o Grupo relevante e essencial para suas vivências cotidianas. A partir disso, o entrevistado pode realizar trocas de experiências que são valorizadas por ele, pois se percebe como alguém que ajuda aos demais. Assim, é possível refletir que tal constatação se associa a uma percepção de realização pessoal e bem-estar subjetivo, uma vez que o entrevistado sente contribuir com algo que lhe é próprio, tendo em vista que suas experiências dizem muito sobre si mesmo, e podem ser aproveitadas pelo Grupo como um todo. Tal percepção é semelhante à de Carlos, quando ele reflete acerca do aprendizado gradual que o Grupo proporcionou quanto ao convívio com as pessoas e o estabelecimento de relações que possibilitaram trocas.

Tais movimentos afetivos com o GCSM relatados pelos participantes podem ser compreendidos a partir da ideia de desenvolvimento da intimidade elaborada por Boraks (2002) a partir de Winnicott. A autora discorre sobre o processo de enraizamento do íntimo, ou seja, a constituição da intimidade, que expressa uma capacidade de estabelecer relações com o outro, sem perder o contato com o mais íntimo de si (o self). Nesse processo, o self inicia vaga interioridade que aos poucos ganha contornos mais definidos. Disso decorre o estabelecimento de uma unicidade, que se mostra a base para a possibilidade de desenvolvimento da intimidade. Essa, por sua vez, pressupõe a capacidade de se relacionar com um outro, assim como a possibilidade de dualidade.

Essa transição para o desenvolvimento de relações com um outro depende do ritmo pessoal de cada sujeito, tendo em vista que o estabelecimento do íntimo está vinculado a um percurso entre o subjetivo e o objetivo, "uma espécie de progressão da capacidade de ter experiências pessoais" (Boraks, 2002, p. 887). A autora discute que a interioridade deriva das habilidades de contatar, sustentar e elaborar experiências afetivas; dessa forma, tal sentimento de interioridade e intimidade podem sustentar o sentimento de integridade nas experiências pessoais. Portanto, disso advém a possibilidade de experimentar afeto e realizar trocas nos relacionamentos (Boraks, 2002).

No contexto dos participantes regulares de longo prazo do GCSM, pode-se pensar em como as interações propiciadas pelos encontros favoreceram esse processo de enraizamento do íntimo ao longo da frequência no Grupo, assim como da possibilidade de fortalecimento da capacidade de manter relações com o outro e de ter experiências pessoais. O engajamento desses participantes no trabalho grupal durante anos de participação regular pode contribuir para o percurso que Boraks (2002) denomina como transformação do íntimo em intimidade compartilhada.

Além disso, as trocas e o compartilhamento das experiências propiciam as relações comunitárias percebidas nos relatos dos participantes, ilustrada pelo trecho a seguir:

Me dava vontade no GCSM de mostrar pras pessoas como que é bom falar dos seus sentimentos, das suas dificuldades (...) quando eu era paciente, eu também me sentia responsável (...) eu gosto de ouvir as história das pessoas (...) E como a gente fica numa comunidade a gente pode ouvi-las, e às vezes pode até ajudá-las (...) isso pra mim é, me enriquece (Carlos).

Carlos diz se sentir responsável pelos demais participantes do GCSM, por ajudá-los a realizar o percurso que ele mesmo vivenciou: perceber que é de ajuda para a promoção de saúde mental "falar dos seus sentimentos, das suas dificuldades" no contexto grupal, que se trata de um ambiente acolhedor segundo os entrevistados. Pode-se refletir que a possibilidade de "ouvir as histórias das pessoas" de modo genuíno e com desejo de "ajudá-las", apresentam algumas características das relações tipicamente comunitárias, compreendidas fenomenologicamente a partir da empatia com o outro, o sentimento de solidariedade e a possibilidade de partilha (Silva & Cardoso, 2016).

Compreender tais relações comunitárias no contexto da saúde mental se faz relevante por ampliar o entendimento da complexidade do ser humano e de suas dimensões. Nesse sentido, a partir das reflexões de Stein, Fuentes (2016) aponta que para se compreender em profundidade uma pessoa é preciso entendê-la como um "nós", pois a existência do indivíduo se dá no mundo, ou seja, imersa em uma comunidade, de modo que isso constitui a própria estrutura do ser humano. Assim, as relações dos participantes com um grupo que se propõe comunitário favorecem e auxiliam a compreensão das vivências comunitárias: vivências que vão além da dimensão individual, visto que o ser humano é, essencialmente, ser em relação.

Em perspectiva semelhante, Basso, Souza, Araújo e Cândido (2019) discutem o papel dos vínculos estabelecidos para o processo de transformação dos participantes no contexto grupal. Os autores relatam um caso clínico no qual há desejo de um participante de pertencer ao grupo terapêutico, podendo existir e ser notado nesse contexto, embora no início isso ocorra com bastante dificuldade. Os autores descrevem, ainda, a possibilidade desse participante existir como si mesmo, decorrente de um processo de evolução do vínculo com os demais participantes do grupo, no qual houve percepção da relação como constitutiva de si mesmo, daquilo que é próprio a cada pessoa.

Nesse sentido, os trechos a seguir ilustram as relações de pertencimento dos participantes regulares de longo prazo com o GCSM:

No começo eu queria ser, eu queria fazer parte do Grupo (...) agora eu estou sendo, eu tô fazendo parte de pessoas que eu não me sentia bem (...) Eu fui aprendendo a encontrar o sentido do Grupo Comunitário, ver como que é importante eu fazer parte e ser do Grupo (Carlos).

Acho que eu contribuo (com o GCSM) quando eu tô ali, quando eu respeito, sabe, as pessoas (...) quando eu faço as minhas experiências fora do Grupo, eu tô ali, sabe, eu pertenço ao Grupo quando eu sou uma pessoa que ressignifica todos os momentos (...) Você pode falar "nossa, gente, isso aí no Grupo não sei quem fez a mesma coisa que eu tô fazendo hoje". Inconscientemente você sabe que isso faz parte da sua vida, já, sabe? (Clara)

Carlos retoma seu processo de engajamento na participação regular ao refletir sobre como não se sentia confortável junto aos demais participantes do Grupo ao começar a frequentá-lo, mas já ansiava por estabelecer um vínculo. Após algum tempo, houve o processo de apropriação da proposta do GCSM, compreensão de suas características e atribuição de sentidos ao mesmo, os quais ele descreve como "aprender a encontrar o sentido do Grupo". Isso repercute, assim, em "fazer parte e ser do Grupo", ou seja, viver uma relação de pertença e estar consciente dela.

Para Araújo (2013), há uma compreensão do viver a pertença conscientemente quando o sujeito está inserido em uma comunidade, recebe dela uma formação e desempenha determinadas funções. Além disso, a autora destaca que a consciência do pertencer se inicia na responsabilidade para com a comunidade, à medida que o sujeito é convocado a participar de sua construção. No trecho da entrevista citado anteriormente, Carlos se mostra consciente de tal formação experienciada no GCSM, assim como da responsabilidade que assumiu para com o Grupo e seus integrantes. Portanto, "ser do Grupo" pode ser compreendido como um acontecimento que demandou tanto tempo quanto esforço e posicionamento ativo do entrevistado, mediante o engajamento na participação regular. Assim, a experiência com o próprio GCSM é necessária para a compreensão do mesmo e para o desenvolvimento da relação de pertencimento. Isso sugere que a participação regular de longo prazo e as relações de pertença se retroalimentam, pois uma favorece a outra.

De modo semelhante, o depoimento de Clara apresenta sua compreensão acerca de seus modos de contribuir com o GCSM através do engajamento na proposta, do respeito aos demais participantes e da possibilidade de "fazer experiências fora do Grupo", ou seja, levar a proposta de atenção às experiências cotidianas para além do contexto grupal, para seu próprio cotidiano. A partir disso, Clara se reconhece como pertencente ao GCSM, percebendo que o mesmo "faz parte da sua vida". Pode-se entender, a partir da fala da participante, que a possibilidade de ressignificar experiências vividas remete às repercussões do trabalho grupal em seu cotidiano.

Tais tipos de relações com o GCSM apresentados pelos participantes regulares de longo prazo permitem compreender que foi estabelecida forte adesão à proposta do trabalho grupal, no sentido de apropriação do mesmo. Nessa perspectiva, pode-se ampliar as reflexões quanto ao conceito de adesão no contexto da saúde mental. Jordão e Pergentino (2018) caracterizam o conceito de adesão, dentro da perspectiva psicossocial humanizada, como a relação que um usuário de serviço de saúde mental tem com o percurso de tratamento que visa reestabelecer uma condição saudável. Nesse sentido, apontam que aderir a um tratamento envolve mais do que capacidade de entender as prescrições do mesmo e segui-las.

Um dos aspectos que favorecem a adesão às propostas de cuidado discutido pelos autores é a humanização dos serviços e da assistência prestada, uma vez que isso envolve auxiliar os usuários a compreender seus direitos e desenvolver condições de cumprir seus deveres, de modo não impositivo. Assim, o conceito de adesão nesse paradigma implica um sujeito que "exerce sua autonomia em concordância com o profissional de saúde" (Jordão & Pergentino, 2018, p. 76), o que favorece o exercício do protagonismo do usuário no contexto da saúde mental.

No GCSM, pode-se refletir sobre o estabelecimento de vínculos e relação de pertencimento de ex-usuários do serviço de saúde mental com o dispositivo de cuidado grupal. Nesse sentido, entende-se que o GCSM propõe um cuidado humanizado, que respeita a autonomia de seus integrantes, na mesma linha das reflexões apontadas por Jordão e Pergentino (2018). Contudo, é válido ressaltar que as relações de pertença dos entrevistados ao Grupo dependem de vários fatores, dentre os quais ressalta-se o tempo de participação; engajamento pessoal; compreensão da proposta; e atribuição de sentido à mesma; além de considerar que a proposta do Grupo e as intervenções nele realizadas também auxiliam no estabelecimento dos vínculos.

Portanto, pensar a adesão dos participantes regulares de longo prazo ao GCSM através do desenvolvimento de vínculos e relações afetivas, comunitárias e de pertencimento se mostra tarefa complexa e singular, mas que pode ser de ajuda a demais intervenções grupais no contexto da saúde mental.

 

Considerações Finais

O presente estudo buscou compreender as relações desenvolvidas por participantes regulares de longo prazo com o dispositivo de cuidado denominado Grupo Comunitário de Saúde Mental. Foi possível observar o estabelecimento de relações afetivas, comunitárias e de pertencimento dos participantes com o Grupo, sendo que as mesmas se mostram interdependentes, favorecendo uma a outra. Para o desenvolvimento de tais relações, destaca-se tanto o engajamento dos próprios participantes na proposta grupal, como as características e intervenções do GCSM, que tem por objetivo auxiliar na construção de vínculos entre os participantes. A possibilidade de ex-usuários de serviços de saúde mental apresentarem forte vinculação com um grupo de promoção de saúde mental aberto a todas as pessoas, heterogêneo e que apresenta como foco a atenção e compartilhamento de experiências de vida, mostra-se algo potente para o cuidado integral na assistência psicossocial humanizada.

Dentre as limitações do estudo, destaca-se que o mesmo foi realizado em um contexto específico de cuidado em saúde mental, abarcando depoimentos de ex-usuários de serviços de saúde mental que apresentam participação singular na intervenção grupal estudada, de modo que não propõe resultados generalizados. No entanto, considera-se que este estudo traz avanços para a discussão acerca do conceito de adesão à proposta de dispositivos grupais; do protagonismo de pessoas em sofrimento mental; e das características e possibilidades de estabelecimento de vínculos, relações afetivas, comunitárias e de pertencimento no contexto da saúde mental. A partir disso, novos estudos que englobem demais participantes do GCSM, como, por exemplo, usuários dos serviços de saúde mental, seus familiares, equipe profissional e membros da comunidade geral, podem contribuir com a ampliação e enriquecimento de tais reflexões.

 

Nota de agradecimento

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

 

Referências

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Nathália Fernandes Minaré: Psicóloga. Mestranda pelo Programa de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP).
E-mail: nathaliaminare@usp.br
Carmen Lúcia Cardoso:Psicóloga. Doutora em Psicologia. Professora Associada do Departamento de Psicologia e docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP).
E-mail: carmen@ffclrp.usp.br

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