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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.18 no.1 São Paulo jan./abr. 2021

http://dx.doi.org/10.32467/issn.19982-1492v18nesp.p92-105 

ARTIGO

 

A voz do autismo: a linguagem da dor

 

The voice of autism: the language of pain

 

La voz del autismo: el lenguaje del dolor

 

 

Aline Kowara; Isabel Cristina Carniel

Universidade Paulista (UNIP-RP), Ribeirão Preto, SP, Brasil

 

 


RESUMO

O Acompanhamento Terapêutico tem seu início na América Latina, sob a influência da psicologia social de Pichon-Rivière e no âmbito da Reforma Psiquiátrica, representando uma atividade clínica com vistas à ressocialização de pessoas ligadas ou não aos serviços de saúde mental. O objetivo deste trabalho é relatar uma experiência de estágio na área de Acompanhamento Terapêutico com um jovem adulto diagnosticado com autismo grau leve, que apresenta elevada persecutoriedade, compulsão por acumulação e isolamento social exacerbado. Algumas das intervenções realizadas contaram com a presença dos pais do paciente que, através de seus vínculos estreitos, puderam ser identificados como participantes tanto do processo de adoecimento, quanto da superação das dificuldades apresentadas. Articulando a teoria do vínculo, proposta por Pichon-Rivière à noção de ser-com o outro da fenomenologia existencial, os encontros procuraram propiciar ao paciente uma escuta atenta, uma compreensão de seu sofrimento psíquico e as limitações a ele atrelados e um acolhimento de seu modo de ser sem julgamentos, mas sempre buscando levá-lo a questionar suas cristalizações e possibilidades de superação. Ao final dos atendimentos, o paciente apresentou um pensamento mais organizado e integrado, onde a experiência da angústia pôde ser vivida como abertura para novas possibilidades de ser-no-mundo-com-os-outros.

Palavras-chave: Acompanhamento Terapêutico; Vínculo; Autismo.


ABSTRACT

Therapeutic Accompaniment began in Latin America, under the influence of Pichon-Rivière's social psychology and within the Psychiatric Reform, representing a clinical activity with the intention of resocialize people who could be linked or not to mental health services. The aim of this work is to report an internship experience in the area of Therapeutic Accompaniment with a young adult diagnosed with mild autism, who has high persecutor, compulsion for accumulation and exacerbated social isolation. Some of the interventions were carried out in the presence of the patient's parents who, through their close bonds, could be identified as participating in both, the illness process and the overcoming of the presented difficulties. Articulating the bonding theory proposed by Pichon-Rivière to the notion of being-with-other of existential phenomenology, the meetings intended to provide an attentive listening to the patient, an understanding of his psychic suffering as well as the limitations attached to it, and a welcome of his own way of being without judgments, but always trying to make him inquire his crystallizations and possibilities of overcoming them. At the end of the sessions, the patient presented a more organized and integrated thought, where the experience of anguish could be lived as an opening to new possibilities of being-in-the-world and being-with-others.

Key-words: Therapeutic accompaniment; Bond; Autism.


RESUMEN

El acompañamiento terapéutico se inicia en América Latina, bajo la influencia de la Psicología Social de Pichon-Rivière y en el ámbito de la Reforma Psiquiátrica, representando una actividad clínica dirigida a la resocialización de personas vinculadas o no a los servicios de salud mental. El objetivo de este trabajo es relatar una experiencia de pasantía en el área de Acompañamiento Terapéutico con un joven adulto diagnosticado con autismo leve, que presenta alta persecutoriedad, compulsión por la acumulación y un aislamiento social exacerbado. Algunas de las intervenciones realizadas incluyeron la presencia de los padres del paciente, quienes a través de sus estrechos vínculos pudieron ser identificados como participantes tanto en el proceso de la enfermedad como en la superación de las dificultades presentadas. Articulando la teoría del vínculo propuesta por Pichon-Rivière a la noción de ser-con-el-otro de la fenomenología existencial, los encuentros buscaron brindarle al paciente un oído atento, una comprensión de su sufrimiento psíquico y sus limitaciones, y una acogida de su forma de ser sin prejuicios, pero siempre tratando de llevarlo a cuestionar sus cristalizaciones y posibilidades de superación. Al final de las consultas, el paciente presentó un pensamiento más organizado e integrado, donde la experiencia de la angustia pudo ser vivida como apertura para nuevas posibilidades de ser-en-el-mundo-con-los-otros.

Palabras clave: Acompañamiento terapéutico; Vínculo; Autismo.


 

 

Acompanhamento terapêutico na saúde mental

O Acompanhamento Terapêutico tem seu início na América Latina, sob a influência da psicologia social de Pichon-Rivière e no âmbito da Reforma Psiquiátrica, representando uma atividade clínica com vistas à ressocialização de pessoas ligadas ou não aos serviços de saúde mental. A prática pode se dar em saídas pela cidade, em domicílio e até mesmo em instituições, sempre buscando auxiliar o sujeito na reintegração, tanto a social quanto a de seu self, levando em consideração suas limitações e seu contexto histórico (Pittiá; Furegato, 2009).

Por volta dos anos setenta, inspirado no modelo argentino, no âmbito da saúde mental, o AT ganha destaque por se constituir como um dispositivo importante na reinserção social de pacientes institucionalizados por longos tratamentos, sobretudo, advindos de internações psiquiátricas por períodos prolongados (Cunha, A.C.; Pio, D. A. M.; Raccioni, T. M., 2017).

A partir de 2011, com a Portaria Ministerial nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011, que instituiu a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), o AT confirma sua relevância no atendimento de pessoas diagnosticadas com transtornos mentais graves, uma vez que oferece uma ampla possibilidade de inserção nos diferentes serviços instituídos pela referida portaria (Cunha, A.C.; Pio, D. A. M.; Raccioni, T. M., 2017).

Corroborando seu contexto de origem, atualmente ainda, a maior demanda pelo trabalho do AT é de pacientes psicóticos, mas o dispositivo se abre como possibilidade a pessoas portadoras de deficiências, síndromes e distúrbios do desenvolvimento, podendo se realizar em diferentes espaços e contextos, levando-se em conta o motivo de pedido do acompanhamento, o diagnóstico do paciente e sua situação dentro do quadro familiar (Ayub, 1996).

Além de admitir inúmeras possibilidades de experiências clínicas em diferentes contextos de intervenção, o AT admite a utilização de diversos referenciais teóricos, não estando sua prática atrelada a uma profissão ou saber em específico.

Ao longo da história do AT na América Latina, a literatura aponta a diversidade dos referenciais adotados, iniciando com a psicologia social de Enrique Pichon-Rivière, que inspira o trabalho de Mauer & Resnizky (1987), no livro: Acompanhantes terapêuticos e pacientes psicóticos. No Brasil, Barreto (1998), orienta-se pelo referencial winnicottiano, valendo-se de uma metáfora da relação entre Don Quixote e Sancho Pança, personagens criados no século XVII por Miguel de Cervantes (2008). No livro Os anjos de Zabine, Bilbao (2007) discorre sobre as possibilidades do AT no referencial fenomenológico-existencial.

O Acompanhamento Terapêutico sobre o qual discorrerá este trabalho pautou-se, principalmente, na perspectiva fenomenológico-existencial, sendo também influenciado pela psicologia social de Enrique Pichon-Rivière e a psicanálise winnicottiana.

Um dos pilares da perspectiva fenomenológica-existencial é redução fenomenológica de Husserl, que consiste na suspensão de todos os preconceitos, valores, teorias e crenças pré-existentes para se ter acesso ao fenômeno - a existência. O método husserliano rompe com a orientação positivista da ciência - a qual a psicologia havia se submetido para ser reconhecida como ciência -, e partilha do princípio de que a experiência é a fonte de todo o conhecimento. O homem deixa de ser visto como objeto e passa a ser visto como existência, com suas próprias crenças e valores, que são influenciados pelo contexto sócio-histórico no qual está inserido. Logo, a Fenomenologia não tem a pretensão de explicar, mas contextualizar. (Evangelista, 2016).

Com Heidegger e sua obra mais importante, Ser e Tempo (1927), que trata do sentido do ser, até então ignorado pela metafísica tradicional, a visão de homem é ampliada para ser-no-mundo. Vale ressaltar aqui que o sentido jamais se dá como sentido pré-concebido, uma vez que não é propriedade das coisas, mas existenciário do Dasein, também denomidado ser-aí, cujo aí não é um lugar, mas uma abertura para os outros, para as coisas e para si mesmo (Evangelista, 2016).

Ser-com-o-outro é, então, um compartilhamento de abertura. Na relação terapêutica, especificamente, o terapeuta faz-se clareira na qual o fenômeno (o paciente) se desvela. Esta abordagem propõe, portanto, uma compreensão do paciente no aí terapêutico, que nada mais é do que esse espaço de compartilhamento entre terapeuta e paciente, onde se faz possível para o paciente uma primeira ação: a ação de pensar, que pode inaugurar a possibilidade de outras ações fora do aí terapêutico (Jardim, 2015).

Portanto, não tem a Fenomenologia-existencial a pretensão de propor estratégias para que o paciente lide com suas dificuldades, mas abre-lhe a possibilidade de se colocar diante delas e escolher como lidar com o que se lhe apresenta, vez que sua existência é também liberdade. (Jardim, 2015)

Deste modo, a postura do terapeuta não é de substituição dominadora sobre a responsabilidade de ser do paciente, pois esta seria uma atitude de onipotência que subestimaria a capacidade do paciente de fazer escolhas. Ao contrário, a postura do terapeuta é a que Heidegger denominou por solicitude libertadora.

(...) nessa escuta, o terapeuta não toma para si a responsabilidade perante o existir do paciente, não age no lugar do paciente, mas, ao contrário, sustenta uma postura de, no encontro, deixar-se o paciente tal como ele é e devolver, assim, ao outro a responsabilidade perante a si mesmo. (Jardim, 2015).

 

Caracterização do acompanhado

João (nome fictício), um jovem adulto de 20 anos, diagnosticado aos 14 com autismo grau leve foi acompanhado durante um semestre por uma estagiária do curso de Psicologia de uma universidade particular do interior do Estado de São Paulo. Os encontros eram semanais e, ao todo, foi realizado um total de 13 atendimentos em domicílio, além do acompanhamento a uma das consultas psiquiátricas no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), onde o paciente fazia seguimento com uma equipe de saúde mental.

Apesar da demanda por um tratamento multidisciplinar, João se submetia apenas ao atendimento ambulatorial não-intensivo ofertado pelo CAPS, comparecendo às consultas psiquiátricas a cada 3 ou 4 meses, ainda assim, com muita resistência. Com exceção a estas idas espaçadas ao CAPS, ele não conseguia sair de casa desde que terminara o Ensino Médio, havia quase dois anos. Assim, o Acompanhamento Terapêutico foi considerado o tratamento mais indicado pela equipe do CAPS.

 

Possibilidades do método fenomenológico na prática do AT

Uma das etapas do método fenomenológico proposto por Husserl e adotado na prática clínica é a suspensão dos a prioris à observação do fenômeno a ser compreendido (Sapienza, 2004). Em sua Conversa sobre terapia, a autora orienta que é preciso simplicidade nas intervenções, com suspenção das teorias, julgamentos, valores etc. E acrescenta as dificuldades que tal simplicidade implica, pois, não se trata de um não saber, mas de um saber que, preservado, se coloca à disposição de quem está sendo cuidado.

Nesta perspectiva, questionam-se as teorias metapsicológicas que partem de pressupostos teóricos para explicar e categorizar a existência. O logos categorizador, marca de nosso horizonte histórico, tem um caráter universalizante, ao passo que a existência humana destoa da universalização. O logos categorizador impõe um afastamento para conhecer o fenômeno, sendo que a compreensão da existência só possível no estar-com (Pompeia & Sapienza, 2010). Assim, sob um viés fenomenológico-existencial preconizado pelo estágio, houve, por parte da estagiária, uma suspensão do conhecimento teórico acerca do autismo para conhecer João em sua essência.

O que se evidenciou, do início ao fim do processo, foi a necessidade de falar de João. Ele falava muito e de diversas formas. Falava, escrevia cartas e as lia para a estagiária, expressava-se através dos gestos corporais, falava mesmo através do silêncio e dos poucos olhares que trocava com a estagiária. Já ao final do primeiro encontro, olhou-a nos olhos. Nos que se sucederam, esperava impacientemente a acompanhante terapêutica (at) chegar para poder falar, dividir suas aflições.

João apresentava uma forte compulsão por acumulação, a qual teve início durante o período em que cursava o Ensino Médio. Ao sair da escola, João passava horas a andar pela cidade à procura de caçambas, voltando para casa repleto de sucatas, as quais guardava em um cômodo na parte externa da casa, ao qual não permitia ninguém entrar; e o qual nem se podia mais abrir a porta, de tão abarrotado de coisas. Para se ter ideia, João havia acumulado mais de 100 cabos de vassoura, e falava com orgulho sobre a "conquista" de tal "patrimônio".

Sofria, ainda, de uma intensa persecutoriedade, que tivera início ainda na infância e se intensificara no decorrer dos anos, agravando ainda mais o isolamento social que João vivenciava, uma vez que desconfiava de tudo e todos. Por um tempo desconfiou que a at fosse uma espiã de sua psiquiatra. O período escolar era sempre relembrado com muita revolta, remetendo sempre a histórias de bullying e 'perseguição', tanto por parte de professores, quanto por parte de outras crianças. Desta época, um acontecimento envolvendo uma criança negra causou-lhe uma repulsa generalizada a pessoas desta cor. Em certa ocasião, inclusive, pouco antes de iniciarmos o Acompanhamento Terapêutico, João saiu de casa para agredir um rapaz negro que julgou estar bisbilhotando pela janela. Desde então, os pais não o deixavam sozinho. Havia sempre um deles em casa com o filho, geralmente a mãe, já que o pai trabalha durante o período da tarde. Por passar mais tempo com a mãe, era com ela que João sustentava mais atritos. Algumas vezes discussões violentas entre os dois foram testemunhadas pela estagiária.

João é filho único. Na relação com os pais, apresentava sentimentos ambivalentes, principalmente com relação ao pai, pelo qual demonstrava grande apreço, mas se revoltava quando o mesmo optava por atividades que não o priorizavam, como, por exemplo, conversar com os vizinhos, principalmente porque acreditava que estes estavam sempre tramando contra ele e sua família.

Tanto por uma entrevista que a estagiária realizou somente com o pai, quanto nos atendimentos, tornava-se evidente a identificação que João tinha com o pai, pois o mesmo também sofria, ainda que em menor grau, de apego a objetos e de certa persecutoriedade, a qual havia, inclusive, lhe implicado na perda de um emprego. Por sua vez, o pai acreditava que o que estava acontecendo com o filho era "apenas uma fase" que iria passar e que suas limitações sociais derivavam, principalmente, do fato de não ter amigos. No entanto, demonstrava grandes esforços para proteger o filho da "maldade" do mundo, pois considerava o filho um ser "puro" e queria manter esta pureza.

Nos contatos realizados com a mãe, notava-se um esgotamento e uma impaciência que fora crescendo no decorrer do semestre, talvez também em função da mobilização que o acompanhamento terapêutico estava a causar no grupo familiar como um todo. Em uma das discussões testemunhadas entre João e a mãe, esta pronunciou que queria rever o diagnóstico de autismo do filho, acusando-o de utilizar-se de seu diagnóstico para agir como bem entendesse. Frente a isso, João reclamava que os pais não o compreendiam. Durante os encontros, a mãe revelou que também já sofrera episódios de fobia em sair de casa, mas que no seu caso, conseguira controlar com medicamentos e exercendo um autocontrole, por saber que deveria estar bem para cuidar do filho.

Ampliando a questão familiar, chamava a atenção os relatos sobre familiares próximos que, assim como João, vivenciavam restrições existenciais: ambos os avôs apresentavam forte tendência à acumulação; um tio era depressivo, também sofrendo de fobia social e pouco saindo de casa. Os pais consideravam-nos e consideravam-se más influências para João. Este também atrubuía seu jeito de ser a esta "herança maldita", em suas palavras.

Com o tempo, foi ficando cada vez mais evidente, que os vínculos que se estreitavam naquela família faziam parte do processo de adoecimento de João.

Sobre a importância da família nas manifestações psicopatológicas, muitos autores têm discorrido. É possível pensar na ênfase dada as relações familiares pelos antipsiquiatras ingleses (Bosseur, 1976). Como um dos maiores expoentes deste movimento, Laing (1973), ao tratar da problemática de pessoas diagnosticadas como esquizofrênicas, contextualiza o sofrimento destas pessoas no âmbito da família nuclear e chegam a considerar a possibilidade de vínculos com mães esquizofrenizantes, devido ao seu modo de cuidar, tutelando em demasia e restringindo a liberdade dos filhos.

Melman (2002 apud Simões, 2005) aponta que, para Pichon-Rivière. o paciente é proveniente de um grupo familiar doente, atuando como porta-voz da patologia de toda a família. Acrescenta ainda que, para muitos terapeutas familiares, apesar de os membros da família conjecturarem em auxiliar o familiar a superar seu sofrimento psíquico, muitas vezes, agem de modo a manterem a situação tal como está, ainda que insatisfatória.

Mais recentemente, Carniel & Figueiredo (2018), seguindo a proposta de Pichon-Rivière, confirmam a importância de uma compreensão do grupo familiar do qual emerge o paciente, como denunciando uma patologia do grupo.

Safra (2005), vai além e, ao discorrer sobre o conceito de Sobórnst que vai buscar na filosofia russa, assinala que o ser é comunidade. Sendo o ser comunidade, João é também aqueles que lhe são mais próximos e caros: sua família.

A noção de indivíduo leva freqüentemente a uma compreensão do ser humano como ontologicamente isolado dos demais. Sobórnost assinala que cada ser humano é a singularização da vida de muitos. Compreender o ser humano como a singularização da vida de muitos implica em dizer que cada ser humano é a singularização da vida de seus ancestrais e é o pressentimento daqueles que virão (Safra, 2005).

Safra (2005) acrescenta ainda

Na clínica, ao acompanharmos um analisando estamos, ao mesmo tempo, ontologicamente, frente a uma família, a várias gerações, à comunidade, à humanidade. (...) Às vezes somos posicionados como figura do passado, outras como representantes do futuro. O trabalho clínico demanda o reconhecimento desses diferentes níveis de experiência, pois a intervenção precisa ser realizada em diferentes momentos do processo segundo o lugar onde o analista foi colocado. Intervimos explicitando quem fala naquele momento da sessão: o analisando? Seus ancestrais? Seus descendentes? O ser humano está sempre na área do paradoxo (Safra, 2005).

Assim, em uma tentativa de aproximar o pensamento de Pichon-Riviére ao conceito de Sobórnst explorado por Safra, há a possibilidade de que João fale por seus familiares adoecidos, sendo a concretude de um mal-estar familiar, uma vez que o acontecer humano é um fenômeno transgeracional.

Estes mesmos vínculos que faziam parte do adoecimento de João, eram, no entanto, também imprescindíveis no tratamento. Desta forma, foram percebidos, analisados e trabalhados, dentro que era possível, de forma que pudessem se tornar mais saudáveis.

Duas intervenções realizadas pela at são melhor explanadas para explicitar como foram trabalhados estes vínculos. Uma delas aconteceu após uma das discussões entre João e a mãe, porque esta havia se recusado a pegar um objeto que ele avistara na lixeira do vizinho. João passou boa parte do encontro falando mal da mãe. Ao questionar se sua percepção não se dava pelo fato de passar mais tempo com ela do que com o pai, João argumentou, que a mãe o tratava mal desde que trabalhava como secretária. A at indagou, então, porque ela havia parado de trabalhar. Ao responder que a mãe havia parado de trabalhar para cuidar dele, falou em intensidade mais baixa. Pareceu reflexivo, ficando em silêncio por alguns minutos. Depois disto, durante o encontro, não se referiu mais à mãe e não a ofendeu.

Como o foco do processo terapêutico passou a ser o vínculo familiar, também se fazia necessário um trabalho envolvendo os pais. O exercício da reflexão levava João a aproximar-se de um pensamento mais organizado e integrado e, consequentemente fazia-o se deparar com angústias existenciais. Como constado por Barretto (2005), à medida que se dá um aumento no nível de organização e de integração, a tendência é de se defrontar com várias questões que geram angústia, a qual, segundo Heidegger, é a responsável por nos arrancar da familiaridade do cotidiano (Evangelista, 2016).

Dentre as angústias manifestadas por João, encontrava-se o paradoxo da relação conturbada com os pais e o medo de perdê-los. João percebera que a raiva que expressava em palavras e atos violentos era por não saber expressar o desamparo que sentia perante os pais e perante a sociedade. Ele mesmo reconhecia que sua compulsão por acumulação se relacionava à escassez nas relações que vivenciava. Por mais de uma vez afirmara que era mais fácil lidar com as coisas do que com as pessoas.

Reconhecendo sua limitação para expressar seus sentimentos, pediu à at para ser sua portavoz. Assim, na intervenção com os pais, ela comunicou a sensação de abandono que João vivenciava, principalmente com relação ao pai: João reclamava que o pai preferia ficar na rua conversando com os vizinhos ou assistir TV do que conversar com ele. O pai pareceu sem jeito e tentou se defender, alegando passar a maior parte do tempo em casa, mas que às vezes se sentia entediado e saía escondido para que o filho não o visse. Foi, então, baseado em confissões do próprio paciente, pontuado o quanto João se sentia traído diante de tal atitude, pois, como ele justificava "autistas odeiam mentira". João parecia aliviado por conseguir expressar o que sentia, ainda que através da AT. O que se derivou deste alívio foi uma segurança para conseguir pedir, ele mesmo, para que o pai lhe avisasse quando fosse se ausentar.

Não obstante parecerem intervenções tão simples, estas facilitaram a convivência familiar e contribuíram para iniciar uma reconstrução de vínculos mais saudáveis. Estas intervenções, no entanto, não seriam possíveis se, concomitantemente, não houvesse a construção do vínculo terapeuta-paciente. João fora apontado pela equipe do CAPS como um "caso desafiador". Alguns dos outros estagiários tiveram medo de assumir a responsabilidade pelo caso. Mas outro vínculo de confiança que já estava estabelecido, o de terapeuta-estagiária e supervisora, possibilitou o início e a continuidade do Acompanhamento a João.

Nos primeiros atendimentos, ele pedia que a estagiária se sentasse em uma poltrona, enquanto ele se sentava no sofá, na posição mais distante possível dela e mantinha um pedaço de madeira ao seu lado. Isto causou preocupações à supervisora, que deu à estagiária a liberdade de deixar o caso se sentisse que sua integridade física pudesse ser ameaçada. No entanto, a possibilidade de desistir de João não fora cogitada. Muitos foram os que já haviam desistido dele.

Como apontado por Bilbao (2007), "a 'cura' para um mal-estar psicológico devia se dar em uma relação de ajuda e, para isso, deveria existir um vínculo". Este vínculo foi construído de tal forma que, nos últimos encontros, João se sentava no lugar mais próximo à estagiária, e no decorrer da sessão ficava ainda mais relaxado deitando-se no sofá como se estivesse em um divã. O vínculo que fora estabelecido culminara em um nível de confiança que permitia que uma pessoa com tão alto nível de persecutoriedade conseguisse se deitar de costas para outra.

Diante deste fato, acredita-se que o Acompanhamento Terapêutico tenha proporcionado a João o 'holding' que lhe era necessário, estabelecendo uma relação de confiança e propiciando uma maior integração de seu self.

No acompanhamento, em muitos momentos do percurso com um paciente, essa função (holding) exerce um papel marcante. São momentos em que simplesmente estamos ali, juntos do nosso acompanhado -caminhando ou parados - compartilhando, às vezes, uma dor ou a conclusão de alguma tarefa; talvez, o momento que a antecede, ou quando nos aproximamos do final do encontro. Situaçãos em que percebemos que não há o que fazer ou dizer; e, o fato de estarmos ali, nossa presença, já significa bastante para nosso acompanhado (BARRETO, 2005).

Essa integração, no entanto, permitindo uma melhor organização de seu pensamento, levava João, cada vez mais, a se deparar com angústias existenciais das quais a AT não conseguia - e nem tinha a pretensão - de tirá-lo. Safra (2005), aponta para a necessidade de se respeitar os mistérios do existir.

A queda plena no indizível, no oculto, na solidão, no escuro, leva o individuo às agonias impensáveis, ao sofrimento sem morte, ao fora absoluto que o torna andarilho sem sombra. Por outro lado, o deslizamento para o dito, para o desvelamento, para o mundo, para o claro, leva-o ao encarceramento na imanência e à morte da coisa. É a agonia do totalmente pensado (Safra, 2005).

De maneira geral, o processo de Acompanhamento Terapêutico, procurou propiciar a João uma escuta atenta, uma compreensão de seu sofrimento psíquico e das limitações a ele atreladas, e um acolhimento de seu modo de ser sem julgamentos; mas sempre buscando levá-lo a questionar suas cristalizações. Assim, o pensamento mais organizado e integrado que João apresentou ao final do processo, possibilitado pelo processo terapêutico, levaram-no a uma experiência de angústia, que pôde ser vivida como abertura para novas possibilidades de ser-no-mundo-com-os-outros.

 

Referências

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Aline Kowara, psicóloga: Universidade Paulista (UNIP-RP)
E-mail: aline.kowara@gmail.com
Isabel Cristina Carniel: Psicóloga, docente da Universidade Paulista (UNIP-RP).

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