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Vínculo

Print version ISSN 1806-2490

Vínculo vol.18 no.1 São Paulo Jan./Apr. 2021

http://dx.doi.org/10.32467/issn.19982-1492v18nesp.p64-72 

10.32467/issn.19982-1492v18nesp.p64-72 ARTIGO

 

Acompanhamento terapêutico: um espaço para viabilizar a saúde mental e o olhar do terapeuta na efetivação dessa nova estratégia

 

Therapeutic accompaniment: a space to enable the mental health and the therapist's gaze in the implementation of this new strategy

 

Acompanamiento terapéutico: un espacio para habilitar la salud mental y la mirada del terapeuta en la implementación de esta nueva estrategia

 

 

Miriam Campos Fantine; Isabel Cristina Carniel

Universidade Paulista (UNIP-RP), Ribeirão Preto, SP, Brasil

 

 


RESUMO

O propósito do presente artigo é apresentar uma reflexão sobre a proposta do acompanhamento terapêutico (AT) como um espaço favorecedor para a saúde mental, enfocando, principalmente, as possibilidades a partir do olhar do terapeuta no contato com o paciente e a ambiência familiar, ambos comportando particularidades significativas. Por meio de encontros semanais realizados em lugares distintos, constatamos que a precariedade de recursos psicológicos e sociais pode ser o modus operantis, não apenas do paciente.

Palavras-chave: Acompanhamento Terapêutico; Psicanálise; Saúde Mental; Vínculo.


ABSTRACT

The aim of this article is to present a reflection on the proposal of therapeutic accompaniment (TA) as a favorable space for mental health, focusing mainly on the possibilities from the therapist's perspective on contact with the patient and family environment, both involving significant particularities. Through weekly meetings held in different places, we find that the precariousness of psychological and social resources can be the modus operantis, not just the patient.

Keywords: therapeutic accompaniment; psychoanalysis; mental health; bond.


RESUMEN

El objetivo de este artículo es presentar una reflexión sobre la propuesta del acompañamiento terapéutico (AT) como un espacio favorable para la salud mental, enfocándose principalmente en las posibilidades desde la perspectiva del terapeuta sobre el contacto con el paciente y el entorno familiar, ambos involucrando Particularidades significativas. A través de reuniones semanales celebradas en diferentes lugares, encontramos que la precariedad de los recursos psicológicos y sociales puede ser el modus operantis, no solo el paciente.

Palabras clave: Acompañamiento terapéutico; psicoanálisis; salud mental; vínculo.


 

 

Introdução

O acompanhamento terapêutico (AT) pode ser descrito como um procedimento clínico que compõe o conjunto de práticas da clínica ampliada. Como uma das orientações da Política Nacional de Humanização do Sistema Único de Saúde, a clínica ampliada se caracteriza por um conjunto de procedimentos voltados para o usuário dos serviços de saúde mental, bem como ao suporte e cuidado à sua família e comunidade na qual se inserem (Brasil, 2019).

As práticas da clínica ampliada, portanto, são orientações seguidas por profissionais da saúde no sentido de humanizar os serviços prestados à comunidade, promovendo a autonomia dos usuários e envolvendo toda a equipe num trabalho interdisciplinar.

No âmbito da Reforma Psiquiátrica, o AT surgiu nos anos 70 como um recurso necessário ao trabalho de ressocialização de pessoas que estiveram institucionalizadas por longos períodos e, deste modo, desenvolveram dificuldades para realizar tarefas corriqueiras e atividades junto à comunidade.

Na América Latina a prática do AT teve seu início sob a denominação de "amigo qualificado", pretendendo ser um modo de atender às demandas de ressocialização de pessoas consideradas cronificadas em seus diagnósticos de transtornos mentais.

Atualmente, o AT tem sido um recurso utilizado no tratamento de pacientes diagnosticados como psicóticos, sendo, entretanto, cada vez mais indicado para pacientes com outros diagnósticos.

É bastante comum o acompanhante ir ao encontro do paciente. Em casa e daí fazerem o que se convencionou chamar de uma saída. Outras vezes o paciente vai ao encontro do acompanhante em algum lugar público ou ainda aguarda o acompanhante na saída do hospital-dia, da escola ou, menos frequentemente, do próprio trabalho (Carvalho, 2004, p. 23).

O AT se configura como uma possibilidade a mais no rol das intervenções que compõem o cuidado aos chamados "doentes mentais". E, embora não se constitua como uma profissão regulamentada, tratase de uma prática para a qual confluem múltiplos saberes, não só aqueles disciplinares, mas também, os advindos do cotidiano do acompanhado e do acompanhante (Neto, 1995).

Ainda que a prática do AT não seja originária e nem exclusiva da psicologia, está cada vez mais frequente profissionais desta categoria oferecerem essa modalidade clínica que vai além do espaço convencional. Em artigo publicado pela revista do Conselho Federal de Psicologia: Acompanhamento Terapêutico: Concepções e Possibilidades em Serviços de Saúde Mental, as autoras confirmam a prática do AT como um importante recurso, sobretudo, quando a ênfase é na reinserção social e resgate da autonomia dos pacientes.

 

O AT, a indicação terapêutica e o usuário

Neste artigo a descrição feita do AT será de perspectiva psicanalítica e fenomenológica. Se, inicialmente, especificamente na Argentina, o AT foi preconizado a partir do referencial teórico-prático da psicologia social de Pichon-Rivière, nos dias atuais, encontramos práticas de acompanhamento terapêutico em diversas abordagens, como, por exemplo, na perspectiva psicanalítica e fenomenológico-existencial. Abordaremos a questão a partir do olhar da terapeuta estagiária, para além da individualidade e, deste modo, a configuração familiar também será considerada.

A indicação para o acompanhamento terapêutico do paciente aqui referido foi da equipe multiprofissional de um CAPS - Centro de Atenção Psicossocial do interior do Estado de São Paulo. O projeto terapêutico proposto por este serviço de saúde mental para o caso do usuário em questão, era composto por procedimentos dos diferentes profissionais da equipe, compondo um atendimento diário. Por incluir atendimentos em domicílio, na modalidade de AT aqui exposta as atividades aconteceram com encontros semanais na própria instituição, no domicílio do paciente e lugares públicos. Ao todo foram realizados oito encontros.

O usuário, aqui chamado de Aurélio, é um homem de 38 anos com a hipótese diagnóstica de esquizofrenia paranoide e retardo mental moderado. Têm o aspecto físico franzino, restrita mobilidade física e motora, não formula frases, tem dificuldades para falar e se expressar.

 

Configuração Familiar

A família como núcleo importante na compreensão dos transtornos mentais vem sendo estudada por diferentes autores há muito tempo. Nos textos produzidos pela antipsiquiatria inglesa, alguns autores consideravam a família como produtoras de sofrimento e devendo ser acompanhadas, juntamente com os pacientes em tratamento (Bosseur, 1976).

Pichon-Rivière, ao atender pacientes de uma enfermaria de urgência psiquiátrica, em Rosário, na Argentina, compreendeu logo a importância de trabalhar na perspectiva grupal com os internos e com a colaboração do grupo familiar, de onde o paciente emergia como "bode expiatório", manifestando anseios e/ou temores que iam além de sua individualidade (Pichon-Rivière, in Carniel e Figueiredo, 2018).

Após algumas tentativas de estreitar o vínculo com o acompanhado, através de intervenções realizadas no CAPS, a autora deste trabalho, na época estagiária de psicologia, realizou o acompanhamento do paciente no domicílio deste.

Moram na casa além do Aurélio, a mãe Maria (nome fictício), uma garota de doze anos, tio, tia e primos. A garota segundo o relato de Maria, foi por ela adotada por ter sido vítima de estupro, porém, não aprofundou no relato.

Maria é uma mulher velha de cabelos brancos e maltratados, pele enrugada, na boca lhe faltam muitos dentes, tem dificuldade para andar, manca da perna direita e, para se movimentar, usa uma bengala. Seu tom de voz é agressivo e autoritário. Segundo informações colhidas no CAPS e através de Aurélio, Maria é etilista crônica. Ao falar dos companheiros que teve, fala de homens rústicos, agressivos, ameaçadores e hostis. Relata sobre relacionamentos abusivos, violentos, com pouca ou nenhuma possibilidade de comunicação.

A ambiência psicológica presenciada é cenário de violência, agressividade e autoritarismo, quase sempre relacionado ao alcoolismo da mãe, algumas dessas situações presenciadas pela terapeuta estagiária.

 

A estrutura física da casa

A casa fica em um bairro tradicional próximo ao centro da cidade. Na frente da casa, na calçada tem instalado um carrinho de água de coco. Na única entrada da casa pela frente tem muita coisa acumulada, espalhada e bagunçada o que torna o acesso difícil. A porta que, na disposição física, deveria ser o acesso principal tem um degrau enorme, da altura de uma pessoa adulta, eles entram e saem por ali usando ora bancos de plástico, ora uma escada de alumínio de três degraus.

No interior da casa, móveis e objetos estavam igualmente desorganizados. Além disso, havia dois cachorros, um deles estava preso com coleira ao pé de uma mesa no quintal e o outro estava solto.

A estrutura física é tão caótica quanto a estrutura psicológica. A clivagem psíquica, a psicose da qual o Aurélio é acometido parece refletir o fenômeno manifesto em toda a trama familiar. Naquele momento, a configuração vincular apresentou-se patológica e sintomática; escassa e precária de recursos psicológicos e sociais; repleta de padrões inadequados de interação entre eles. Certamente uma condição que remete a um estado de instabilidade, fragilidade e grande vulnerabilidade associado à condição de desamparo, anseios e temores.

 

Penúltimo encontro

Visando o resgate de autonomia do acompanhado, faz parte da proposta do AT o usuário manifestar interesse ou sugerir as atividades que, sempre que possível, são atendidas. No entanto, devido às dificuldades já mencionadas relacionadas à comunicação, a estagiária terapeuta tinha por hábito sugerir o que fazer e onde ir; porém certo dia, ao final de um encontro, espontaneamente foi perguntado ao paciente "onde você gostaria que eu fosse com você da próxima vez?". Para a surpresa da estagiária, ele prontamente respondeu "na igreja". Combinaram o dia e o horário que iriam se encontrar.

Ao chegar no horário combinado, a estagiária presenciou o Aurélio a aguardando no portão de sua casa; bem vestido, com o cabelo molhado partido e penteado para o lado; com a aparência de quem tinha se preparado para aquele encontro. Foi quando a garota, Sofia (nome fictício) que mora com a família, se aproximou e, olhando para a estagiária, revelou: "o tio Aurélio falou que vai casar com você".

Após um certo alvoroço e confusão com a não chegada do táxi que levaria até à igreja, a situação foi contornada e partiram num outro carro que foi providenciado de urgência. Era uma manhã de domingo e o culto aconteceu numa igreja evangélica. Estavam presentes além do Aurélio e a estagiária, a mãe, uma tia, a Sofia e um amigo da família. Ao término do culto a mãe faz um convite a estagiária: "Vamos almoçar lá em casa". A estagiária não aceitou, agradecendo gentilmente o convite. Demasiadamente resumido, esse foi o conteúdo do penúltimo encontro.

Numa perspectiva psicanalítica, a escuta e o vínculo foram privilegiados, nesse sentido, atribuindo o valor simbólico à fala de Sofia; em condições saudáveis a união de casados envolve confiança, credibilidade e segurança no vínculo estabelecido. Portanto, considerando as emoções e sentimentos partilhados na relação estagiária-paciente foi possível conjecturar que a experiência compartilhada foi satisfatória.

A família observada naquele momento, escassa de recursos materiais e psicológicos, ao final do encontro faz um convite para almoçar. Também no contexto de todo o atendimento, pode-se presumir que o almoço poderia representar a possibilidade de estreitar um vínculo já criado entre estagiária-família. Como no livro Anjos de Zabine, a estagiária impactada e comovida com esse encontro, em especial, refletiu:

A partir daquele momento, passei a pensar que, talvez, nenhuma psicologia pudesse fazer jus à diversidade humana e ter esse nível de compreensão profundo enquanto se fundasse meramente em premissas categorizantes para compreender o outro (Bilbao, 2007, p. 22).

Silenciosamente, secretamente, as elucubrações livres da estagiária, foi mais longe.

 

O super herói

O Aurélio tem um super herói. Que é tratado por ele como um amigo íntimo. Ele o trata pelo nome pessoal do personagem, Kal-El. O personagem é o Superman ou Super-Homem, um super herói fictício de história em quadrinhos. Segundo a ficção Kal-El nasceu no planeta mitológico de Krypton. Foi mandado à Terra por seu pai Jor-El, um cientista, momentos antes do planeta explodir. O foguete aterrissou na Terra na cidade de Smallville onde o jovem Kal-El foi descoberto pelo casal de fazendeiros Jonathan e Martha Kent. Conforme foi crescendo, descobriu que possuía habilidades diferentes dos humanos. Os poderes do personagem: super força, habilidade para saltar, super velocidade e invulnerabilidade. O Aurélio se identifica com esse personagem. E, ao observá-lo no "contato" com esse seu amigo, parece real a amizade entre eles. Em conversa o Aurélio contou que assiste a determinada versão do filme, todos os dias, sem exceção.

Para o Vocabulário da Psicanálise, de Laplanche e Pontalis (1998, p. 242):

A identificação é um processo psicológico pelo qual um indivíduo assimila um aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e se transforma, total ou parcialmente, segundo o modelo dessa pessoa. A personalidade constitui-se e diferencia-se a partir de uma série de identificações Laplanche e Pontalis (1998, p. 242).

No contato com o paciente o paradoxo chama a atenção. Os limites do Aurélio parecem ser o oposto dos poderes do personagem. Ao Aurélio falta mobilidade física e motora, o personagem tem super força, super velocidade e habilidade para saltar. O Aurélio está e vive num contexto de notória vulnerabilidade, o personagem é invulnerável. Será a confessa identificação com tal personagem o singelo movimento análogo à noção de tropismo1?

 

Considerações Finais

A perspectiva do acompanhamento terapêutico como um espaço para viabilizar a saúde mental tem, como evidenciado na experiência relatada, um significativo alcance. O tempo de trabalho com o paciente mencionado foi pré-estabelecido e determinado por se tratar de um estágio curricular. Porém, este fato não interferiu na disposição interna da estagiária para se vincular e acompanhar o paciente naquele momento. Conforme anteriormente mencionado, a prática do AT é um dos procedimentos utilizados na clínica e, assim como os demais, a duração do percurso é relativa. A experiência nesse caso, no entanto, comprovou que o ideal seria ter tido mais tempo.

O contato interpessoal exigia esforço de ambas as partes. As dificuldades e os impedimentos do paciente, contudo, eram proporcionais ao seu interesse em estar nos encontros e nas atividades propostas. Havia disposição, ânimo e movimento a cada encontro. Tênues traçados, delicados e sutis alinhavos permearam os encontros sempre marcados por uma tonalidade afetiva (Pompeia & Sapienza, 2016, p. 162), que tornou possível a experiência.

 

Nota

1 Biol. fenômeno segundo o qual o desenvolvimento de um vegetal e/ ou uma parte de um organismo vivo, célula, por exemplo, é atraído (tropismo positivo) ou repelido (tropismo negativo) numa direção dada, sob a influência de um estímulo exterior (luz, calor, gravidade etc.

 

Referências

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Miriam Campos Fantine: Psicóloga, Universidade Paulista (UNIP-RP).
E-mail: mcfantine@gmail.com
Isabel Cristina Carniel: Psicóloga, docente da Universidade Paulista (UNIP-RP).

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