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Vínculo

Print version ISSN 1806-2490

Vínculo vol.18 no.2 São Paulo May/Aug. 2021

http://dx.doi.org/10.32467/issn.19982-1492v18nesp.p544-564 

ARTIGO

 

Grupo de mulheres: um lugar de escuta clínica para mulheres em um centro de atenção psicossocial

 

Women's group: a place of clinical listening in a psychosocial care center

 

Grupo de mujeres: un lugar de escucha clinica en un centro de atención psicosocial

 

 

Cintia Regina de Oliveira MacedoI; Vaniele Silva SouzaII

IPsicóloga, CAPS II. Especializanda: Impactos da Violência na Saúde (Fiocruz). Email: cintia.rom83@gmail.com
IIPsicóloga e especialista em saúde mental e equipe multiprofissional pela Universidade Paulista UNIP.

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo compartilhar a experiência de um Grupo Psicoterapêutico de Mulheres, trabalho de psicoterapia grupal realizado em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Ao relatar a história do grupo de mulheres, pretendemos abordar as seguintes temáticas: os desafios da clínica na rede de atenção psicossocial e como o grupo de mulheres enfrentou os fracassos e se tornou um espaço de elaboração de luto, fortalecimento de singularidades, bem como de abertura para novas possibilidades de vida; desta forma, reafirmando o potencial dos grupos terapêuticos para sustentação da clínica nos dispositivos públicos de saúde. Percebemos que o potencial terapêutico do grupo de mulheres consiste em proporcionar um lugar de contar e recontar suas histórias. Neste espaço, elas podem compartilhar identificações e integrar-se nas diferenças. Permite-se falar de suas perdas, dores, estigmas e da relação com o fracasso. O processo psicoterapêutico favorece processos de elaboração e ressignificação, tornando possível vislumbrar e, inclusive, construir um recomeço. Pretende-se que esta reflexão vá ao encontro de outros terapeutas de grupo, em outros serviços de saúde, tecendo assim uma rede de reflexões e conhecimento sobre a clínica e a temática de grupos e instituições.

Palavras-chave: grupo terapêutico; mulher; Centro de Atenção Psicossocial.


ABSTRACT

This article aims to share the experience of a Psychotherapeutic Group for Women, a group psychotherapy work carried out in a Psychosocial Care Center (CAPS). In reporting the history of the group of women, we intend to address the following themes: the challenges of the clinic in the psychosocial care network and how the group of women faced the failures and became a space for the elaboration of mourning, strengthening of singularities, as well as openness to new life possibilities; thus, reaffirming the potential of the therapeutic groups to support the clinic in public health devices. We realized that the therapeutic potential of the group of women is to provide a place to tell and retell their stories. In this space, they can share identifications and integrate themselves into differences. It allows you to talk about your losses, pains, stigmas and the relationship with failure. The psychotherapeutic process favors processes of elaboration and reframing, making it possible to see and even build a new beginning. It is intended that this reflection will meet other group therapists, in other health services, thus weaving a network of reflections and knowledge about the clinic and the theme of groups and institutions.

Keywords: therapeutic group; women; CAPS.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo compartir nuestra experiencia con el Grupo de Mujeres, que es un trabajo de psicoterapia grupal realizado en un Centro de Atención Psicosocial. Al informar su historia, pretendemos abordar los desafíos de la clínica en la Red de Atención Psicosocial y cómo tal grupo se enfrentó a los fracasos para convertirse en un espacio para la elaboración del dolor, el fortalecimiento de las singularidades y la apertura a nuevas posibilidades de vida, reafirmando el potencial de los grupos terapéuticos para apoyar la clínica en dispositivos de salud pública. Encontramos que el potencial terapéutico del Grupo de Mujeres es proporcionar un lugar para contar y volver a contar historias. En este espacio, sus participantes pueden compartir identificaciones y agregar diferencias. En él, ellas se permiten hablar sobre sus pérdidas, dolores y estigmas y sobre su relación con el fracaso. El proceso psicoterapéutico favorece la elaboración y la reformulación, lo que permite vislumbrar e incluso construir un nuevo comienzo. Pretendemos que esta reflexión resuene entre otros terapeutas grupales, en otros servicios de salud, tejiendo así una red de reflexiones y conocimientos sobre la clínica y el tema de grupos e instituciones.

Palabras clave: grupo terapéutico; mujer; Centro de Atención Psicosocial.


 

 

Introdução

Este artigo tem como tema de investigação o Grupo de Mulheres. Trata-se de um trabalho psicoterapêutico grupal realizado em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). A questão fundamental que norteou nossa pesquisa clínica foi: "Qual a função de um espaço de escuta clínica específico para mulheres em um centro de atenção psicossocial?".

A especificidade do Grupo de Mulheres encontra-se na identificação de suas participantes pela experiência de perda do ideal e de fracasso na capacidade de ressignificação. A história de vida dessas mulheres e o modo como a transferência foi sentida pela terapeuta tiveram como tônica a vivência da perda e do fracasso. Essa experiência transferencial tornou possível a elaboração deste relato como oportunidade de socializar a experiência vivida, possibilitando aprofundar a reflexão sobre questionamentos e afetos que atravessaram a terapeuta ao coordenar tal grupo. Por ser o caso o porta-voz do tema de pesquisa, ele é, ao mesmo tempo, um objeto investido libidinalmente pelo pesquisador, que, para formular a questão enigmática acerca do que o surpreendeu, precisa traçar um caminho de ligações (Magtaz & Berlinck, 2012).

Fernandes, 2O17, nos convoca a pensar no grupo como um barco que leva pacientes e terapeuta a uma viagem rumo ao conhecimento, o destino desta viagem é incerto e no caminho nos deparamos com uma série de imprevistos, o que gera sofrimento aos membros do grupo e desconforto ao terapeuta que terá que lidar com suas próprias vulnerabilidades.

As mulheres que integram o Grupo de Mulheres buscavam se reestruturar, mas sofriam constantes desestruturações. Elas relatavam, com frequência, que não conseguiam seguir em frente. O grupo caminhava de forma semelhante, com momentos de aparente estruturação, que não persistiam, seguidos pela crise, com a vivência da desintegração e da perda de sentido. O motivo de transformar essa experiência em investigação clínica decorre da necessidade de empenhar um esforço para analisar os significados do fracasso e as possibilidades de "seguir em frente".

O grupo passou por diversas dificuldades, como a resistência das participantes e a constante piora de seus sintomas depressivos, maníacos e psicóticos, impossibilitando a manutenção de sua unidade, enquanto grupo. Tal vivência nos colocou diante da experiência do fracasso, fazendo-nos questionar os motivos de manter aquele trabalho.

A segunda questão consiste no fato de que realizar um trabalho como esse em um CAPS nos levou a refletir sobre as possibilidades da clínica no âmbito da saúde pública. As histórias de vida das mulheres e o modo como elas puderam significar suas experiências ganharam no Grupo de Mulheres um espaço de compartilhamento, amenizando, pois, o isolamento característico do adoecimento psíquico. É comum, na prática clínica, que o terapeuta também vivencie suas dúvidas e angústias de modo solitário. Sendo assim, nossa pesquisa visa a oferecer contorno às indagações que se formulam nesse contexto e espera ir ao encontro de outros profissionais, em outros serviços de saúde, tecendo uma rede de reflexões e conhecimento.

 

O grupo de mulheres

O Grupo de Mulheres que analisamos neste artigo se desenvolveu em um CAPS, tendo feito parte do Programa de Atividades Terapêuticas oferecidas pelo serviço. Percebeu-se que, devido às dificuldades de tratamento eficiente para algumas mulheres, considerando a permanência de seus sintomas e o insucesso das propostas terapêuticas que lhes eram realizadas, era preciso de um grupo como esse, como alternativa de tratamento que pudesse contemplá-las.

O início da coordenação do grupo apresentou diversos desafios. Cabe mencionar que a terapeuta assumiu o grupo após o desligamento da psicóloga que até então o coordenava. Em vista disso, as mulheres comparavam a terapeuta com a profissional anterior, fazendo reclamações com outras pessoas da equipe, apresentando movimentos de hostilidade e pedindo para abandonar sua participação. Elas diziam que ouvir os problemas das outras lhes fazia muito mal. Alegavam adoecer, pois absorviam tudo sem conseguir elaborar. Em suas palavras, "participar do grupo fazia com que se sentissem muito pior".

Sobre essa dificuldade de manejo da interação grupal, Anzieu (1993) afirma que a situação de grupo é vivida como uma ameaça angustiante de perda da identidade do eu. Essa ameaça se deve às dificuldades de comunicação e coesão implicadas no trabalho em grupo. Alguns membros reagem a ela com uma redobrada proteção sobre si mesmos; outros se defendem pela afirmação obstinada ou reivindicante de seu eu. Esse processo inconsciente pode ser explicado a partir de uma perspectiva dinâmica. Conforme o autor,

A ilusão grupal responde a um desejo de segurança, de preservação da unidade egóica ameaçada, para tanto, ela substitui a identidade do indivíduo por uma identidade de grupo: à ameaça visando o narcisismo individual ela responde instaurando um narcisismo grupal. O grupo encontra, assim sua identidade, ao mesmo tempo em que os indivíduos nele se afirmam todos idênticos. (Anzieu, 1993, p. 82)

O conflito consiste em uma luta contra a angústia de fragmentação. No Grupo de Mulheres, era possível identificar a luta dos membros que o integravam, pelo modo como reagiam quando se reuniam. As mulheres se mostravam indispostas e sonolentas. Enquanto algumas dormiam ou cochilavam, outras falavam de modo desenfreado, aparentemente sem reflexão e com pouca capacidade de escuta. Se eram questionadas, na tentativa de despertá-las, elas começavam a faltar na semana seguinte ou apresentar hostilidade e pedidos de saída do grupo.

Com vistas a compreender com maior profundidade essa dificuldade de aceitação e integração vivida nesse momento da história do Grupo de Mulheres, parece apropriado retomar o conceito de transferência, analisando o processo transferencial no contexto grupal. Segundo Pichon-Rivière (2005), o processo de transferência pode ser entendido como a reprodução de sentimentos inconscientes vividos no passado e revividos na relação com o terapeuta. Essa repetição tem como função a resistência à mudança, a evitação de um reconhecimento doloroso e o controle das ansiedades básicas, como o medo da perda e o medo de ser atacado. A negação do tempo e do espaço vividos na transferência tem finalidade defensiva diante da situação de mudança. Diante da exigência de reestruturação dos vínculos e das formas adaptativas, surgem, então, os medos básicos, como o temor das perdas dos vínculos anteriores e o temor do ataque da nova situação.

Essa interpretação é pertinente se considerarmos o momento de transição pelo qual o grupo estava passando, a saber: o rompimento do vínculo com a terapeuta anterior e a entrada de uma desconhecida, exigindo de suas participantes um movimento de readaptação e reconstrução de vínculos. A reação apresentada pelas pacientes também demonstra o modo peculiar como elas lidam com as relações interpessoais e com as mudanças, evidenciando as questões centrais que foram, posteriormente, enfrentadas no interior do grupo. Conforme Pichon-Rivière (2005, p. 225). "Esse fracasso da aprendizagem determina a impossibilidade do sujeito de reconhecer-se como temporal, de localizar-se num aqui e agora em relação com um passado e com um projeto que inclui a própria morte. Como fracasso da aprendizagem da realidade, pode caracterizar-se em termos de fracasso da integração".

A estrutura do grupo permite e estimula o surgimento de fantasias inconscientes. A transferência não se limita à figura do terapeuta. O grupo expõe múltiplas transferências. As fantasias transferenciais emergem tanto em relação aos integrantes do grupo como em relação à tarefa e ao contexto em que se desenvolve a situação grupal (Pichon-Rivière, 2005).

A questão que se colocou, então, foi a de como manejar esse processo transferencial e como encontrar conciliação com a luta travada em defesa do eu. A princípio, o que foi possível fazer foi ouvir as queixas das mulheres do Grupo de Mulheres. E, ao ouvi-las, pôde-se perceber que o conteúdo de suas falas revelava o descontrole que tinham em relação ao próprio corpo e a seu comportamento. Seus relatos traziam reclamações sobre suas relações familiares, seus relacionamentos amorosos e seus sentimentos de solidão e abandono. Uma das falas mais marcante foi a de que "se sentiam como nada". Entre elas, a terapeuta também se sentia como nada: não sabia qual lugar ocupava naquela cena e via-se como inútil e impotente, pois, por também representar uma ameaça, era constantemente atacada e rejeitada. A terapeuta inclusive desejou desistir; não queria mais estar com aquelas mulheres.

Ao levantar o questionamento acerca do que unia as mulheres do Grupo de Mulheres e quais eram suas questões primordiais, foi possível compreender que aquele espaço grupal servia para firmar identificações, possibilitando uma condição de união e consequente fortalecimento. Unidas, elas podiam ser mais fortes. Esse, aliás, tornou-se o direcionamento do trabalho.

Anzieu (1993) compara o grupo a um envelope que une indivíduos. A natureza desse envelope consiste em uma rede que contém os pensamentos, as palavras e as ações que permitem ao grupo constituir um espaço interno (que garante a continuidade das trocas dentro do grupo) e uma temporalidade própria (que compreende um passado singular e um futuro onde se espera atingir suas metas). Considerando o lado interno, o envelope grupal permite o estabelecimento de um estado psíquico que o autor chama de si-mesmo de grupo. O grupo é si-mesmo. Este si-mesmo é imaginário e fundamenta a realidade imaginária do grupo. Nos termos do autor, "é o continente dentro do qual uma circulação fantasmática e identificatória vai se ativar entre as pessoas. É ele que torna o grupo vivo" (p. 18).

No momento supracitado, começou a surgir uma expectativa de que aquele conjunto de mulheres pudesse constituir o si-mesmo grupal, ou seja, um espaço de circulação de identificações e trocas. Talvez fosse possível despertar a vitalidade a partir da compreensão de que o que as identificava não era um diagnóstico, e sim suas histórias e angústias.

Pode-se dizer que o grupo se formou pelo que havia em comum entre as mulheres. Para elucidar esse aspecto, remontemos a Anzieu (1993), que aborda a questão. O grupo é a colocação em comum do quê? Para responder essa pergunta, o autor recorre a diversos estudiosos que afirmam, em suas teorias, que o grupo é a colocação em comum das representações, dos sentimentos, das vontades e das paixões - colocação em comum das percepções que cada um tem de si e dos outros. O autor, então, conclui que "o grupo é a colocação em comum das imagens e das angústias dos participantes" (p. 21).

As pacientes incluídas no Grupo de Mulheres colocavam em comum suas angústias e percepções relacionadas a seu adoecimento psíquico e aos diagnósticos que haviam recebido, além de suas problemáticas pertinentes à relação com filhos, maridos, trabalho e relacionamentos e suas expectativas e decepções relativas ao ideal de família. Seus discursos revelavam o peso e a rigidez dos papéis atribuídos à mulher na sociedade. Foram comuns os relatos de cobrança excessiva, de desvalorização e, até mesmo, de violência física e psicológica. Atreladas e submetidas a figuras masculinas, elas atribuíam ao homem os papéis de culpado e de salvador.

No processo psicoterapêutico grupal, estimula-se a ampliação de discursos como esses. Percebe-se, assim, que as questões com as quais os sujeitos se identificam podem ser ainda mais profundas. A identificação das participantes do Grupo de Mulheres se revelava no modo como elas lidavam com a experiência de perda. Observou-se que, diante da impossibilidade de elaborar a perda do objeto e dos ideais devido à incapacidade de ressignificar a traição, que não significava para elas somente infidelidade conjugal, mas traição dos ideais de vida amorosa e familiar, elas perderam a capacidade de confiar no outro e em si mesmas.

O trabalho psicoterapêutico busca a construção de identificações e identidades. Tal processo acontece na relação com o outro, na possibilidade de compartilhamento de vivências, de fortalecimento mútuo e de cuidado de uns com os outros, na construção de uma dinâmica de parceria, oferecendo e recebendo acolhimento e elaborando em conjunto suas principais questões. A identificação é um eficaz mecanismo terapêutico, pois é a relação afetiva mais prematura de uma pessoa com outra. Por meio da identificação, o eu se apropria parcialmente de outro eu. O indivíduo, ao longo de sua história de vida, se identifica sucessivamente com outros seres, formando camadas de personalidade que contém a história das relações que ele mantém com seus objetos (Grinberg, Langer & Rodrigué, 1976). A respeito da identificação Freud (1920-2010) afirma que se trata de uma forma de ligação por algo significativo em comum, quanto mais significativo esse em comum, mais bem-sucedida a identificação parcial, correspondendo então ao começo de uma nova ligação.

As mulheres do Grupo de Mulheres se assemelhavam quanto à identificação com seus diagnósticos, quanto ao momento de vida que as havia levado ao início do adoecimento, quanto aos sintomas e problemas clínicos que apresentavam, quanto às separações e crises conjugais que experimentavam, quanto ao excesso de obrigações com seu lar e com seus filhos, quanto à busca por independência e por relações de dependência emocional e financeira que empreendiam e quanto a suas dificuldades de posicionamento e suas defesas perante a situações opressoras e abusivas. Ao longo do desenvolvimento deste trabalho, pudemos observar que elas, aos poucos, adquiriam força para enfrentar as situações citadas, pois ampliavam a consciência de si mesmas buscando recuperar o protagonismo de suas vidas, com vistas ao aumento de sua autoestima e ao resgate de sua dignidade. Cabe considerar que o potencial terapêutico incidiu no ato de dar voz a essas mulheres e escutar o que elas tinham para expressar, como seus sintomas, a realidade que viviam e suas histórias, bem como os significados que elas lhes atribuíam. Surgia, assim, a possibilidade de criar um espaço de produção de significados.

As participantes do Grupo de Mulheres estavam inseridas em contextos psicossociais complexos. Eram realidades de difícil transformação, marcadas por estigmas, pobreza e desestruturação psíquica. As mudanças foram poucas e os retrocessos, recaídas e crises, frequentes. Neste ponto, parece importante relatar alguns acontecimentos que marcaram a trajetória do grupo. Os nomes utilizados a seguir são fictícios.

O primeiro deles foi o falecimento de Marinalva. Ela se queixava do comportamento do marido alcoolista e fazia planos de separação e mudança para o Nordeste do Brasil. Porém, Marinalva contava com a liberação de sua aposentadoria. Quando o benefício foi enfim concedido, ela relatou um estranho sentimento de angústia: "uma tristeza". Ela não sabia explicar como podia se sentir assim, se era algo tão desejado. Pouco tempo depois, ficou muito doente e faleceu sem realizar seu objetivo.

A saúde descuidada e precária de Joana gerava preocupação. Buscou-se compreender o sentido de sua relação com o próprio corpo. Seu quadro, no entanto, se agravou rapidamente, e ela faleceu justamente quando as mudanças em se modo de existir começaram a ser percebidas, como possível efeito terapêutico do processo grupal.

Pouco tempo depois, após um dos períodos de "sumiço" de Carina, recebemos a notícia de que ela estava em "surto psicótico", em observação em um pronto-atendimento psiquiátrico, e que ela havia acabado de receber a informação de que um de seus filhos, o de três anos, havia falecido. Após receber alta hospitalar, ela voltou a participar do grupo. Nessa ocasião, fez um desabafo extremamente sofrido sobre a perda do filho. Disse que não iria desistir, que iria manter o tratamento para ter condições de se dedicar ao cuidado do outro filho, mas ela acabou "sumindo" novamente.

Na mesma época, foi feito contato com Matilde, já que ela não comparecia ao grupo fazia algumas semanas. O marido atendeu ao telefonema e informou que era "tarde demais", pois ela já havia falecido. Aparentemente, suicidou-se. Matilde apresentava alterações de humor e irritabilidade, embora nunca tivesse demonstrado pensamentos suicidas.

 

A clínica no centro de atenção psicossocial

Para pensar a prática clínica, é fundamental analisar o contexto em que ela está inserida, ou seja, o Grupo de Mulheres. Este grupo psicoterapêutico ocorria em um CAPS, que se trata de um dispositivo específico para tratamento de pessoas acometidas por transtornos mentais graves, situado, portanto, no âmbito da saúde pública.

A criação dos CAPS foi parte de um intenso movimento social chamado de Reforma Psiquiátrica. Este movimento foi iniciado por trabalhadores de saúde mental que buscavam a melhoria da assistência no Brasil. Os CAPS surgiram com a função de substituir o modelo hospitalocêntrico pelo modelo psicossocial (Ministério da Saúde, 2004).

A experiência de trabalho no Sistema Único de Saúde (SUS), atuando em um CAPS, impõe o desafio de enfrentar na prática cotidiana dificuldades, como o excesso de demanda de trabalho, e realizar intervenções em situações psicossociais extremamente graves, em meio à precariedade de recursos materiais e integrando equipes reduzidas.

A questão fundamental é como a atuação clínica fica atravessada por esses fatores. É possível manter o olhar e a escuta clínica sem ser engolido pela gigantesca tarefa de garantir direitos? De acordo com Endo (2013, p. 71),

A expectativa de corresponder às diretrizes do SUS, a magnitude da tarefa de atender ao outro integralmente em suas necessidades lança o profissional do SUS num parapeito mais reduzido de possibilidades clínicas. Corre-se o risco de pender para uma ação desvairada de assistir ao outro, atuando na promoção de saúde integral, visando à garantia do sujeito de direitos de sua inserção social e familiar focalizando em iniciativas de geração de renda e trabalho, e abater-se completamente na sua tarefa de atender a demanda psíquica. (p. 71).

A partir deste ponto, analisaremos como o grupo de mulheres foi atravessado por essa problemática. Para tanto, apresentaremos alguns recortes clínicos.

Um dos casos mais emblemáticos foi o de Suzana. Ela apresentava um quadro de intensa desorganização psíquica. Queixava-se de pobreza e de violência doméstica. O espaço terapêutico era destinado ao acolhimento e à organização de suas demandas, portanto, as primeiras iniciativas "extra grupo", articuladas com a equipe multidisciplinar, só foram realizadas quando ela elaborou suas demandas principais e, assim, decidiu que pretendia se divorciar.

Após a separação, os relatos relacionados à pobreza e às dificuldades de cuidar e controlar o comportamento dos filhos se intensificou. As respostas do Grupo de Mulheres começaram a ter foco pedagógico, no sentido de orientar sobre como lidar com esses problemas. A escuta subjetiva estava prejudicada, pois não se conseguia ouvir o que estava por trás da demanda - não se conseguia ouvir o implícito. É possível dizer que a ênfase nas repetidas queixas acabou por encobrir o verdadeiro sofrimento, que se revelou em breves momentos em que Suzana pôde verbalizar que seu desânimo se assemelhava à irresponsabilidade, mas que, na verdade, ela não se sentia motivada a agir, já que tudo o que fez na vida deu errado e, por isso, não se sentia capaz de fazer nada de bom.

A tentativa de "resolver a vida dela" gerou movimento contrário ao esperado. Ao invés de reforçar o vínculo, fortalecendo-a, fez com que ela se afastasse. Ao focar nos problemas sociais, perdeu-se de vista o sujeito e não foi possível ouvir o emergente. Suzana evidenciou a impotência do grupo, pois era a mais próxima dessa verdade. Como não pôde ser ouvida, ela se desvinculou.

No caso de Jussara, a terapeuta percebeu-se convocada a acionar à equipe multidisciplinar para atuar diante das queixas de problemas financeiros, violência doméstica e graves problemas de saúde. O grupo questionava como os filhos podiam ser negligentes em relação às agressões sofridas pela mãe e à falta de tratamento adequado para seu grave estado de saúde. As iniciativas dos profissionais junto aos filhos foram inúteis. O auxílio para conseguir aposentadoria e o acompanhamento com um médico especialista foram eficientes. Quando esses problemas foram resolvidos, a paciente passou a colocar em palavras o que a fazia sofrer e adoecer: a pressão familiar e o sentimento de impotência, pois, sempre que tentava se posicionar, era chamada de louca. O espaço de escuta subjetiva foi favorecido e, assim, o vínculo se fortaleceu. Ela ganhou força, conseguindo perceber e impor seus limites. Isso significa que ela conseguiu se distanciar da identificação com o rótulo da doença mental, reconhecendo-se como protagonista de sua história.

Houve ainda o caso de Carina, em que o abandono talvez demonstre que ela para conseguir manter seu pertencimento ao grupo, precisava de um esforço multidisciplinar que cuidasse do seu contexto psicossocial, marcado por violência, pobreza e abuso de substâncias psicoativas. O que ficou foi a desagradável sensação de negligência, abandono e ausência de respostas efetivas.

Todos os casos apresentavam questões sociais que exigiam intervenções para além do espaço grupal. A complexidade, no entanto, reside no propósito de conseguir fazer com que essas ações sejam uma construção clínica, em que, a partir da escuta subjetiva, o sujeito possa se apropriar de seu sofrimento e se implicar na construção de seu projeto terapêutico.

O terapeuta precisa ponderar seu ímpeto salvador, aceitar as limitações inerentes a cada sujeito e a cada contexto e investir na construção do caso junto com os atores envolvidos. Cada um pode se apropriar do papel que desempenha, favorecendo, assim, intervenções que correspondam às escolhas e possibilidades do sujeito.

 

Grupo de mulheres: do fracasso ao encontro do sentido

A experiência de perda foi a marca do Grupo de Mulheres. Ao indagar a suas participantes o que as levou ao início do tratamento psiquiátrico, elas diziam: perdas, mortes, separações, sonhos desfeitos, entre outros sinônimos. O fracasso se expressava pela impossibilidade de seguir em frente, manifesta nas diversas tentativas de reestruturação seguidas por recaídas. Esse modo de reagir diante da perda demonstrava que o trabalho do luto não fora realizado, revelando o modo melancólico de ser de tais mulheres.

Em Luto e melancolia, Freud (1917[1915]/2010) busca esclarecer a natureza da melancolia relacionando-a com o que chamou de afeto normal do luto. Ambos ocorrem diante das mesmas condições ambientais. O luto, de modo geral, é a reação diante da perda. Embora o luto apresente um grave afastamento da atitude normal para com a vida, não cabe considera-lo patológico e interferir em seu curso seria prejudicial. Porém, algumas pessoas que possuem disposição patológica às mesmas condições que levam ao luto produzem melancolia. Tal esclarecimento é necessário e suficiente para compreender a estrutura psíquica das participantes do Grupo de Mulheres. Não nos deteremos nesse aprofundamento teórico, pois o foco é a vivência do grupo.

As mulheres do Grupo de Mulheres eram singulares. A união delas revelava uma diversidade de histórias comoventes. As coincidências, no entanto, revelavam a singularidade do grupo. Todas, sem exceção, relatavam que, ainda na infância, tiveram que assumir a responsabilidade pelo trabalho, dentro ou fora do ambiente doméstico. Jussara descrevia a dureza do trabalho rural: "a lida na roça". As brincadeiras e fantasias da infância eram interrompidas muito cedo. No contexto das relações familiares, elas descreveram falta de afeto, com mães que se mostravam controladoras e ambivalentes e pais ausentes emocionalmente e negligentes em relação ao cuidado - alguns sequer estiveram presentes fisicamente.

A escuta dessas biografias nos remete aos contos de fada, pois, diante das dificuldades, todas as participantes sonharam com um "príncipe encantado", que proporcionaria uma vida farta e cheia de amor, na qual enfim seriam reconhecidas como "Rainhas do Lar", ou com ao menos um marido, que lhes ofereceria alguma saída. Como narrou Jussara "ou continuava trabalhando na roça, ou virava puta ou arrumava um marido". Ela preferiu se casar.

Suzana, por sua vez, relatou que sempre foi acusada pelas irmãs de ser tratada com privilégios pela mãe. Tal tratamento de "princesa" se devia ao fato de que suas primeiras crises convulsivas haviam começado quando ela tinha apenas doze anos. O preço pago por isso foi o controle absoluto: ela tinha que ser exatamente como a mãe exigia. Essa relação com a mãe acarretou na impossibilidade de constituição de uma identidade própria. Com a subjetividade anulada, Suzana se tornou imatura para lidar com os obstáculos da vida. Casou-se, mas a vida de casada foi o oposto dos contos de fada, assemelhando-se mais à uma história de horror.

Após o "felizes para sempre", as mulheres que idealizaram o casamento passaram pela experiência da infidelidade conjugal, das cobranças excessivas, da falta de afeto e companheirismo, da miséria, das agressões físicas e psicológicas e do abandono e da perda da própria identidade. A título de ilustração, vale a pena retomar a fala de Marlene: "eu cuidava de tudo, cortina, roupa de cama, comida; só me esqueci de cuidar de mim. Perdi-me".

Marlene e Gabriela oscilavam entre períodos de estabilidade e aderência ao grupo e crises depressivas com comportamento autodestrutivo e alucinações auditivas. Suzana e Carina alternavam entre períodos de mania e depressão. Suzana apresentava uma estranha apatia. Carina fazia uso de substâncias psicoativas. Tanto Suzana quanto Carina se expunham e não se protegiam. Jussara se mostrava muito lúcida e aderida ao grupo, porém, quando as pressões familiares aumentavam, mostrava-se eufórica, irritadiça e bastante confusa, descrevendo situações do passado como se fossem atuais, não sendo capaz de discerni-las.

O Grupo de Mulheres nos mostrou que o fracasso do esquecimento pode gerar dores profundas. As mágoas e ressentimentos podem se acumular e se arrastar por anos, corroendo a "alma". Falar em perdão é difícil. Na ausência do perdão, aquelas mulheres se destruíam. Impotentes diante do sofrimento, elas buscavam se anestesiar fazendo uso excessivo de medicações, álcool e outras drogas; abandonavam o cuidado próprio, infligiam sofrimento ao próprio corpo e ultrapassavam o limite da realidade partilhável, produzindo ideações delirantes e alucinações. Presas aos traumas do passado, elas não conseguiam elaborar perspectivas de futuro; repetiam, pois, modos de se relacionar destrutivos. As mudanças foram poucas e a presença do fracasso era constante.

Diante do conteúdo exposto até este ponto, é importante relatar que o grupo passou por fases em que o trabalho, conforme havia sido idealizado, se desestruturou. As pacientes mostravam-se desmotivadas e distantes umas das outras; suas crises psíquicas e problemas sociais pioravam, fazendo com que se ausentassem. Já não era possível dizer o que o grupo havia se tornado e como iria se desenvolver, se é que ainda existia possibilidade de continuar se desenvolvendo.

No momento em que se percebeu a identificação entre as histórias das participantes, a proposta que fundamentou o trabalho terapêutico se tornou uma idealização. Porém, o ideal não existe na vida, somente nos contos de fadas; logo, a proposta só podia estar fadada ao fracasso.

Ecoam alguns questionamentos perturbadores ao relatar essa história: será que tratamos de uma experiência de fracasso terapêutico? Se a resposta for sim, o que foi que fracassou? E o que fazer com isso? Como recomeçar?

Buscando encontrar resposta para essas questões, deparamo-nos com o texto de Freud (1914/2010) Recordar, repetir e elaborar. Tal leitura nos possibilita entender que a compulsão à repetição está relacionada com a transferência e a resistência. A transferência mesma é somente uma parcela de repetição, e a repetição é transferência do passado esquecido. O autor alerta que devemos estar preparados para a entrega do paciente à compulsão de repetir, que tem como função substituir o impulso à recordação. Esse processo ocorre não somente no processo analítico, mas em todos os demais relacionamentos e atividades contemporâneas da vida. Em suas palavras, "quanto maior a resistência, tanto mais o recordar será substituído pelo atuar (repetir) " (p. 201).

Parece óbvio que o Grupo de Mulheres se tornou um lugar de repetição - daquilo que consideramos ser doloroso demais para ser recordado. Conforme já citamos, foram vivenciados diversos abandonos e dificuldades em manter a frequência, o que demonstra certa impossibilidade de construir novos vínculos - atuação que elas nomeavam como "não conseguir separar o que é delas e o que é das outras", fazendo-as sofrer ainda mais. Além dos movimentos de hostilidade em relação à terapeuta, o grupo se tornou também lugar de repetição das experiências de fracasso nas relações, sensações de persecutoriedade, inferioridade e eminente perda de identidade. De acordo com Freud (1914/2010), a resistência determina a sequência do que será repetido. Para ele, "é do arsenal do passado que o doente retira as armas com que se defende do prosseguimento da terapia, as quais temos de lhe arrancar peça por peça" (p. 202).

Assim como pudemos observar no modo como o grupo expressava suas resistências em suas atuações ao longo do processo, Freud (1914/2010) destaca que o paciente repete tudo o que, das fontes da repressão, já se impôs nas manifestações do seu ser: suas inibições e atitudes inviáveis, seus traços patológicos e de caráter. O paciente ainda repete todos os seus sintomas durante o tratamento. Essa concepção nos remete à evidente piora dos sintomas e das condições de vida das pacientes, como foi citado anteriormente, pois permitir a repetição no tratamento analítico significa conjurar uma fração da vida real e, por isso, não pode ser inofensivo e irrepreensível.

Conforme mencionamos, o desafio de manter a estabilidade psíquica e construir um projeto de vida foi dificultado pelo peso do estigma da doença mental, sempre tão limitante de possibilidades. Objetivando ampliar as perspectivas das participantes, o grupo também se propôs a ser um espaço de reflexão sobre o processo de adoecimento. Para Freud (1914/2010), o início do tratamento leva a uma mudança de atitude consciente em relação à doença. Geralmente os sujeitos se contentam em lamentar, desprezar e subestimar sua doença, bem como identificamos no discurso das pacientes, que, acostumadas a lidar com a doença como fato inquestionável, pareciam se angustiar com a possibilidade de se reposicionar diante de seus sintomas. O "ser doente" tornou-se justificativa para a repetição do sofrimento. "A própria doença não deve mais ser algo desprezível para ele, mas sim tornar-se um digno adversário, uma parcela do seu ser fundamentada em bons motivos, de que cabe extrair algo valioso para a vida futur". (Freud, 1914/2010, p. 203)

Começamos a vislumbrar a possibilidade de vida futura, de recomeço, um indício de esperança. Fracasso e esperança são sentimentos que atravessaram a terapeuta constantemente durante esse processo. Na presença do fantasma do fracasso, depositou-se na possibilidade de construir novamente o vínculo entre as mulheres a esperança de continuidade. E isso foi feito propondo questionamentos que fizeram com que elas voltassem o olhar umas para as outras. Gabriela disse sorridente: "Temos que ficar unidas, não é?"

Cabe ainda considerar a respeito do sentimento de fracasso, que atravessou o grupo e a própria terapeuta, que Freud (1914/2010) adverte que é necessário dar tempo ao paciente para que este se envolva na resistência agora conhecida, para que ele a elabore e a supere, prosseguindo o trabalho apesar de sua presença. Somente no auge dela, é possível, junto com o paciente, desvelar os impulsos que a alimentam. O terapeuta só pode esperar e deixar as coisas seguirem um caminho que não pode ser evitado e muito menos ser acelerado. De acordo com o autor, "atendo-se a essa compreensão, ele se poupará muitas vezes a ilusão de haver fracassado, quando na realidade segue a linha correta no tratamento" (p. 209).

Compreendemos que a possibilidade angariada no Grupo de Mulheres de elaborar o luto pelas perdas estava em permitir a repetição da relação com o objeto perdido, experimentando os afetos relacionados a ele nas relações reais. O palco para essa atuação foi o espaço grupal, pois também foi no grupo que as mulheres puderam encontrar, umas nas outras, o amparo que necessitavam para suportar o doloroso processo de acessar seus conteúdos reprimidos, podendo, assim, elaborá-los. Esse movimento de repetição e elaboração é interpretado pelo terapeuta, e é o que permite que a energia seja investida em outros objetos. Seguir em frente é poder investir a libido em novos projetos, novos relacionamentos e recuperar a capacidade de sonhar.

Pode-se dizer que o Grupo de Mulheres marcou o recomeço da trajetória de suas integrantes. Essa inferência foi possível pela constatação de que o grupo, enquanto trabalho terapêutico, foi um projeto que requereu muito empenho. Sua continuidade dependeu do investimento libidinal de cada uma de suas componentes - a terapeuta estava inclusa nessa tarefa. Essas mulheres foram responsáveis também pelo modo como esse projeto se desenvolveu: os caminhos percorridos foram escolhas feitas por elas. Dessa maneira, o grupo foi o ponto de partida para retomar as rédeas da própria vida, recuperar a possibilidade de acreditar em si e no outro e poder cessar a repetição do fracasso nas relações interpessoais, através da oportunidade de aceitar as falhas de si mesmas e de seus pares.

 

Considerações finais

O trabalho apresentado foi motivado pelas inquietações que surgiram para a terapeuta ao coordenar o Grupo Psicoterapêutico para Mulheres. Cabe recordar que o grupo apresentou dificuldades iniciais. Segundo Anzieu (1993), a situação de grupo gera uma ameaça angustiante de perda do eu. Nesse sentido, a reação de alguns é a intensificação da proteção sobre si mesmo, enquanto outros reagem com uma obstinada reinvindicação do eu. Descobrimos, assim, que estávamos lidando com fantasias transferenciais e necessidades intensas de defesa do eu.

Essa foi a primeira questão obscura que se apresentou, e, para respondê-la, a única possibilidade foi voltar a escuta paciente e cuidadosa para o discurso das mulheres integrantes do grupo. É a escuta que torna possível ao paciente expor seu mundo imaginário por meio de suas associações livres. O paciente escuta a fala do psicanalista, e essa escuta gera uma agitação nos sistemas de pensamento e, depois, uma elaboração dessa agitação (Magtaz & Berlinck, 2012).

A escuta possibilitou perceber que os relatos das histórias de vida das pacientes se assemelhavam pela experiência de perdas e fracassos na capacidade de ressignificação, evidenciada pelo sofrimento psíquico nunca superado. Assim, a direção do trabalho grupal foi construir identificações, confiando que a união entre elas poderia ser capaz de fortalecê-las, o que também se tornou um ideal. No entanto, testemunhamos a dificuldade de manter a unidade do grupo, constantes pioras dos sintomas das pacientes e perda de sentido, o que nos levou a constatar que estávamos lidando com realidades difíceis de transformar.

Para abordar o modo como as questões sociais atravessaram o Grupo de Mulheres, promoveu-se uma reflexão sobre como as políticas de garantia de direitos e reinserção social, que constituem o modo de atenção psicossocial, substitutivo do modelo manicomial, podem engolir o clínico pelo excesso de demanda e pelo afinco em solucionar todos os problemas da vida do paciente. Este artigo vem reforçar que a clínica deve vir antes de qualquer técnica ou ideologia. As intervenções psicossociais devem ser resultado de uma construção que inclui o sujeito, a equipe multidisciplinar, que contribui com seus diversos saberes, e a rede de vínculos do paciente.

A aposta terapêutica do Grupo de Mulheres condisse com a motivação para realização de nossa pesquisa. Isto porque, ao ouvir as histórias das mulheres que o compunham e os significados que elas atribuíam a suas vivências, acreditamos que todo esse conteúdo merecia ser registrado. Assim, este artigo é a possibilidade de registro das histórias vividas no grupo e ao longo da vida de suas participantes.

O caminho reflexivo-teórico proporcionado por esta pesquisa clínica nos permitiu compreender possíveis respostas para as indagações iniciais. Desse modo, percebemos que o potencial terapêutico do Grupo de Mulheres consistiu em proporcionar um lugar para contar e recontar histórias. Nesse espaço, suas participantes puderam compartilhar identificações e agregar com as diferenças. Elas se permitiram falar de suas perdas, dores e estigmas e da relação com o fracasso, podendo, inclusive, vislumbrar um recomeço.

 

Referências

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