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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.18 no.2 São Paulo maio/ 2021

http://dx.doi.org/10.32467/issn.19982-1492v18nesp.p435-453 

ARTIGO

 

Trocas na selva: uma experiência com grupo de fotoexpressão em meio ao distúrbio psicossomático

 

Exchanges in the jungle: a photoexpression group experience amid psychosomatic disorder

 

Cambios en la selva: una experiencia con grupo de fotoexpresión en medio al disturbio psicosomático

 

 

Thais Duarte Luna MachadoI; Alfredo Naffah NettoII; Cristiane Curi AbudIII; Maria Lúcia da SilvaIV

IPsicanalista, Mestranda do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP. E-mail: thaisdlm@hotmail.com
IIPsicanalista, Professor Titular na PUC-SP, no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica.
IIIProfessora do Curso de Psicossomática do Instituto Sedes Sapientiae. Coordenadora do Programa de Atendimento e Estudos de Somatização - UNIFESP.
IVPsicanalista, Diretora-Presidente do Instituto AMMA - Psique e Negritude.

 

 


RESUMO

Este trabalho é mobilizado pela experiência institucional em um serviço de saúde publica que acolhe pacientes cuja problemática da somatização forma essencialmente seu quadro clínico. No sofrimento que circula no distúrbio psicossomático a incerteza do alojamento da psique no soma é a questão central. Todavia, esta clínica apresenta especificidades que desafiam as constantes de um enquadre psicanalítico tradicional. A técnica da Fotoexpressão como objeto mediador, utilizada em grupos, é observada como uma estratégia bastante apropriada no manejo destes pacientes. A situação clínica que este recurso suscita busca restabelecer a área de jogo e mediante uma zona intermediária, tenta abrir caminhos para processos elementares da experiência. Por meio de um recorte clínico buscamos problematizar a dimensão corporal e o elemento da violência diante do recurso da Fotoexpressão, analisando seus efeitos e possibilidades de deslocamentos.

Palavras-chave: Distúrbio Psicossomático; Zona Intermediária; Experiência; Fotoexpressão; Violência.


ABSTRACT

This work is mobilized by an institutional experience in a public health service that welcomes patients whose somatization problem essentially forms their clinical picture. In the suffering that circulates in the psychosomatic disturbance the uncertainty of the psyche's accommodation in the soma is the central issue. However, this clinic has specificities that defy the constants of a traditional psychoanalytic framework. The technique of Photoexpression as a mediator object, used in groups, is observed as a very appropriate strategy in the management of these patients. The clinical situation that this resource raises seeks to reestablish the playing area and through an intermediate zone, tries to open the way for elementary processes of experience. Through a clinical outline we seek to problematize the body dimension and the element of violence in the face of the Photoexpression resource, analyzing its effects and possibilities of displacement.

Keywords: Psychosomatic Disorder; Intermediate Zone; Experience; Photoexpression; Violence.


RESUMEN

Este trabajo es movilizado por la experiencia institucional en un servicio de salud pública que acoge pacientes cuya problemática de la somatización forma esencialmente su cuadro clínico. En el sufrimiento que circula en el disturbio psicosomático la incertidumbre del alojamiento de la psique en suma es la cuestión central. Todavía, esta clínica presenta especificidades que desafian las constantes de un encuadre psicoanalítico tradicional. La técnica de la Fotoexpresión como objeto mediador, utilizada en grupos, es observada como una estrategia bastante apropiada en el manejo de estos pacientes. La situación clínica que este recurso suscita busca restablecer la área del juego y mediante una zona intermediaria, intenta abrir caminos para procesos elementares de experiencia. Por medio de un recorte clínico buscamos problematizar la dimensión corporal y el elemento de la violencia ante al recurso de la Fotoexpresión analizando sus efectos y posibilidades de desplazamientos.

Palabras-claves: Disturbio Psicosomático; Zona Intermediaria; Experiencia; Fotoexpresión; Violencia.


 

 

O trabalho em instituições de saúde aponta que a prática médica apresenta-se cada vez mais fragmentada, dividida em especialidades e sub-especialidades, com uma tendência a separar o sujeito em físico e psíquico. Todavia, estar diante do quadro clínico essencialmente composto pela problemática da somatização traz uma dose extra a esta questão, que, de certa forma, reforça a cisão psicossomática destes pacientes, colaborando para seu estado de desintegração.

A atividade do psicanalista diante deste contexto é revelada por muitos desafios, sobretudo quando este é um dos membros do serviço da saúde pública. A implicação com uma psicanálise atenta à intersubjetividade e aos sujeitos dos vínculos é imprescindível, todavia isto não quer dizer que se trate de uma clínica exclusivamente voltada para à situação de grupo, mas sim à grupalidade psíquica que atravessa qualquer sujeito. Porém, em uma realidade institucional que lida com um grande número de pacientes, o profissional pode se ver coagido a não refletir sobre as reais indicações para tratamento em/de grupo. Este ponto, frequentemente observado, pode corroborar uma dissociação perigosa e velada, a que separa a clínica individual como a de excelência e a grupal como a de menor valia.

Diante destes apontamentos iniciais, visamos problematizar o distúrbio psicossomático e o manejo de tratamento que esta clínica exige, apresentando o recurso do objeto mediador da Fotoexpressão - utilizado em situação de grupo - como uma estratégia de cuidado implicada com a especificidade de tais pacientes. Para tal, se fará necessário contextualizar o quadro clínico para que posteriormente sejam apresentados os manejos de cuidado. Os tópicos a seguir buscam oferecer bases para a provocação clínica apresentada na terceira parte deste artigo.

 

O distúrbio psicossomático

A psicossomática é um campo bastante explorado pela psicanálise e diversas são as correntes que se debruçaram nesta problemática. Aqui faremos a escolha de apontar a visão winnicottiana, que compreende o ser como essencialmente psicossomático.

Em Freud a noção do corpo não se confunde com a do organismo biológico da visão médica, para ele o corpo é onde se apresentam as expressões do psíquico e do somático, é onde o conjunto das funções orgânicas se desenrola e também é o lugar de realizações de desejos inconscientes (Fernandes, 2003). Todavia, Winnicott deixa claro que pensar o corpo como lugar de inscrição do psíquico e do somático não significa dizer que a parceria psicossomática já está dada: ela é fruto de uma construção ao longo do processo de amadurecimento e nem sempre é alcançada. Nesta construção, mesmo tendo sido alcançada, pode ainda ser perdida, inclusive na saúde.

Winnicott entende que na condição humana existe uma tendência inata à criatividade, de proposição universal, relacionada ao estar vivo (Winnicott, 1971). Desta maneira, também pressupõe uma tendência inata à integração psicossomática, porém é importante frisar que o autor fala de tendências, ou seja, seu alcance dependerá da qualidade relacional com o ambiente facilitador.

Em A Natureza Humana, apesar de reconhecer uma tendência biológica à integração, considera que seu alcance é multifatorial e através de um processo em consonância com o ambiente. Postula que no começo (considerando inclusive a vida intra-uterina) existe um estado de não-integração, onde há uma "ausência de globalidade, tanto no espaço, quanto no tempo" (Winnicott, 1988, p.136). A partir daí, por breves períodos ou pequenos momentos, se produz a integração e só gradativamente um estado geral de integração pode se efetivar.

A partir dos cuidados ambientais, oferecidos de forma suficientemente boa, o pequeno sujeito pode realizar o seu trabalho de elaborar imaginativamente as sensações e funções corporais. A instância da psique emerge da elaboração imaginativa das funções corporais de todos os tipos, podendo a partir dela ligar o passado, o presente e o futuro e, por fim, falar em nome próprio, dando "sentido ao sentimento do eu, e justifica nossa percepção de que dentro daquele corpo existe um indivíduo" (Winnicott, 1988, p. 46). Neste sentido, falar de integração para o autor não significa pensar em um sujeito acabado, com fronteiras rígidas, afinal momentos de não-integração ao longo da vida fazem parte da saúde e para descrever o negativo da integração prefere o termo desintegração.

Fazendo referência à observação de Winnicott, que aponta a natureza humana não como uma questão de corpo e mente, mas sim uma questão de psique e soma, sendo a mente uma instância de funcionamento intelectual, à parte desta última inter-relação, Loparic (2000) nos esclarece que a psicanálise winnicottiana não se prende ao lado mental, mais precisamente representacional, mas sim coloca a existência humana "diante da tarefa primordial de 'elaborar' o corpo, e 'elaborar' não significa originariamente 'simbolizar', mas 'alojar-se' no corpo fazendo dele a nossa primeira morada neste mundo" (Loparic, 2000, p. 360).

Mas e quando o trabalho da elaboração imaginativa do que se passa no corpo é prejudicado? Neste processo, falhas ambientais na sustentação e/ou no manejo podem provocar uma personalização precária. Podemos lançar o exemplo de uma paciente1 que se queixava de fortes dores nos dedos e no braço e, mesmo tendo passado por diversos especialistas, nenhum diagnóstico fora encontrado. A paciente atribuía o início de sua dor da seguinte maneira: "Fui dormir e acordei assim". Aqui o dormir não conotava nenhum sentido metafórico ligado a ausência, relaxamento ou sonho. Estava no ato concreto e nenhum tipo de associação psíquica era realizado, seja referente ao início das dores ou sobre seu desgaste em busca de resposta médica.

Tal paciente que, praticamente toda semana procurava um pronto-socorro diferente, parecia estar em busca de algo, que afinal ela não encontrava nunca. O trabalho de elaboração imaginativa corpóreo é retido, sendo a psique mantida em estado de alerta, "mentalizada". Winnicott (1966) enfatiza que ocorre uma cisão patológica, como defesa organizada, mantendo separada a disfunção patológica e o conflito da psique.

A função ambiental de segurança possibilita a conquista de integração psicossomática, mas na dissociação psicossomática o significado de "eu" e "eu sou" é alterado. Desta forma, quando ocorre o fracasso no processo de integração, o sujeito cai na "incerteza da 'morada', ou conduz à despersonalização" (Winnicott, 1966, p. 89). Neste ponto o que está em jogo é a ameaça constante da perda da coesão psicossomática, mas Winnicott destaca um valor positivo, de saúde, neste distúrbio, entendendo-o como uma defesa que "implica uma cisão na personalidade do indivíduo, com debilidade na vinculação entre psique e soma, ou uma cisão organizada na mente, em defesa contra a perseguição generalizada do mundo repudiado" (Winnicott, 1966, p. 90).

As falhas ambientais traumáticas têm como resposta a ruptura da linha do ser e para não ser mais atingido, o sujeito se defende em um estado cindido, não podendo ser encontrado em lugar nenhum.

Podemos traduzir esse estado de coisas, também, dizendo que essa cisão na personalidade paralisa o processo de elaboração imaginativa das funções corporais - na medida em que isola e encapsula o self verdadeiro, dificultando ou mesmo impedindo a sua alocação e articulação com o corpo. Ou seja, um conjunto de sensações e emoções, sediado no corpo, não podendo mais passar pela experiência - devido à cisão -, não pode ser elaborado e não desenvolve qualquer sentido psíquico. Sendo assim, não pode ser reconhecido como próprio, sendo percebido como se "corpos estranhos" invadissem ou atacassem o soma, gerando sintomas hipocondríacos.

Mas, na defesa inerente ao verdadeiro distúrbio psicossomático também pode estar em jogo um outro tipo de etiologia, que é o padrão de cuidado dissociado: "Ao deixar de apresentar o corpo à pessoa e a pessoa ao corpo, o cuidador não facilita ou mesmo obstrui as interações entre o funcionamento somático e a personalidade, constituindo uma base para futuras cisões" (Laurentiis, 2016, p.362).

A partir deste ponto Laurentiis (2016) diz que os prejuízos nas bases da ligação entre soma e psique "se passaram mesmo antes do bebê conquistar uma identidade unitária. As ansiedades subjacentes à defesa são, pois, psicóticas (e não depressivas ou neuróticas), relacionadas ao aniquilamento" (Laurentiis, 2016, p.362).

Estamos diante de uma clínica das fragilidades, onde o despedaçamento aparece em carne viva, no corpo. A problemática que nos cerca não diz respeito à sintomatologia da "doença" em si, mas ao vão que existe entre a psique e o soma, ao corpo não habitado e ao vácuo de experiências. Neste sentido Naffah (2005) lembra que a proposta analítica Winnicottiana visa uma "relação terapêutica de suporte", sendo:

[...] um processo eminentemente experiencial, no qual a questão primeira não é ligar nada, nem simbolizar nada, pelo ao menos por princípio. Trata-se -volto a repetir- de fazer passar pela área da experiência -portanto da criatividade originária- acontecimentos fundamentais ao processo de amadurecimento, que dela ficaram cindidos por falhas ambientais (Naffah, 2005, p.18).

É neste ponto que estamos diante do manejo clínico: afinal no que concerne ao campo do distúrbio psicossomático, como a psicanálise pode fazer-se presente para além dos métodos clássicos? De fato, as demandas destes pacientes convocam uma clínica própria e como nos lembra Abud (2014), "seu funcionamento psíquico apresenta especificidades que desafiam as constantes de um enquadre psicanalítico tradicional, quais sejam a associação livre, a transferência e a interpretação" (Abud, 2014, p.327).

No campo da associação livre, a prática permite observar que no caso destes pacientes há um discurso concreto, com dificuldades de realizar duplos sentidos, metáforas e metonímias, apresentando muitas vezes um impedimento na sua cadeia associativa.

Já a respeito da relação transferencial, tais pacientes também apresentam especificidades. Na clínica individual muitas vezes ocorre no analista uma sensação de cristalização. Vacheret (2015) tenta problematizar o fenômeno utilizando o termo transferência por depósito para pensar o analista como "depositário inconsciente de uma parte indizível e irrepresentável da história ou da experiência precoce do sujeito" (Vacheret, 2015, p.82).

Chegando na esfera da interpretação, a clínica do distúrbio psicossomático, definitivamente, nos ensina que os modelos tradicionais, onde se interpretam defesas reprimidas pode não só ser ineficaz, como pode produzir prejuízos. A utilização do dispositivo psicanalítico grupal com objetos mediadores surge como uma estratégia criativa e bastante apropriada. Inúmeros podem ser os recursos de mediação e aqui destacaremos a fotografia, elemento que evoca potências de movimento, afinal ela está entre o mais além e o mais aquém das palavras.

 

A Fotoexpressão como estratégia clínica

O recurso da Fotoexpressão2 como objeto de mediação é um instrumento baseado na técnica da Fotolinguagem©. Esta foi criada no ano de 1965 em Lyon, França, por psicólogos e psicossociólogos que, de maneira intuitiva, propuseram a utilização de fotos para servir de suporte à fala em um grupo de adolescentes com dificuldades, observando que a partir daí as trocas se desenvolviam. Em seguida a idéia foi aplicada ao domínio da formação de adultos, em empresas e no campo social. Mas foi fora deste campo, que a partir da década de 1990, Claudine Vacheret e demais psicanalistas lioneses, passaram a utilizar a Fotolinguagem© na esfera do cuidado. (VACHERET, 2008).

O método é constituído por um grande número de fotos com temáticas diversas, além de regras precisas. O jogo se divide em dois momentos. No primeiro o analista provoca o grupo com uma pergunta. Esta deve ser simples e objetiva e normalmente é formulada previamente a partir da sessão anterior. Os participantes, em silencio e individualmente, devem escolher com o olhar uma das fotos que responda a tal pergunta. O "código" sinalizador de que a foto foi escolhida é se dirigir para sua cadeira. Quando todos, no seu tempo, já tiverem escolhido a foto, o analista convida o grupo a pegar a foto eleita e conduzila para a roda. Caso a mesma imagem seja escolhida por mais de um participante, o analista esclarece que não há problema, pois na roda cada membro pode se apropriar da foto escolhida.

No segundo momento da brincadeira quando todos, inclusive o analista, já estão em roda e com a foto escolhida nas mãos, o grupo é convidado a um espaço de trocas. O analista provoca o grupo, perguntando quem pode começar falando sobre a foto escolhida e em seguida, a partir do que foi falado pelo "autor" da foto, todos podem comentar o que viram de semelhante e de diferente. Cada membro do grupo fala quando assim desejar e nenhuma interpretação -no sentido psicanalítico do termo - é feita pelo analista, que "apenas" participa do jogo.

A Fotoexpressão se propõe a ser um desencadeante de processos associativos, que por meio do espaço de jogo pode oferecer um caminho que conduz da imagem à palavra. Na técnica o grupo é um elemento fundamental, pois ele oferece ao sujeito todas as possibilidades de identificações. Ao falar de sua foto, o sujeito delega ao grupo um trabalho psíquico de transformação, que só é possível pela pluralidade de imaginários postos em cena e de transferências colaterais.

Voltamos a lembrar que o método é proposto à pacientes difíceis, cujo sofrimento circula nos "inundamentos indizíveis da violência interna" (Kaës, 2014, p.16) e a mediação supõe:

[...] uma disjunção ou uma desunião, e é sobre a natureza (quiçá a causa) desta desunião ou desta não união que se produz a eficácia do processo de mediação. Não é o meio, o objeto em si, que é mediador, mas sim a função mediadora que o meio realiza" (Kaës, 2014, p. 12. Tradução livre).

Na Fotoexpressão ocorre uma multiplicidade de lugares de jogo e Vacheret (2014) destaca que há uma brecha entre as imagens interiores, cujo portador é o sujeito, e as imagens exteriores, que são as fotos, objetos de suas eleições. Também aponta o lugar de jogo entre as imagens de si, percebidas subjetivamente, e as imagens reenviadas em espelhos pelo grupo.

Apoiada em Winnicott, a mesma autora recorda que o espaço intermediário facilitado pelo objeto transicional possibilita trabalhos psíquicos onde a criança pode pensar-se diferente do outro e, no entanto, se assemelhar a ele, assim como pensar a relação eu-objeto. (Vacheret, 2014). Desta forma, dando um salto ao método, não é aleatória a provocação que o analista traz ao grupo: falar o que viu de semelhante e de diferente na foto de cada participante, construindo elementos para o acesso ao campo da ambivalência. As fotos são objetos culturais comuns a todos e podem oferecer a experiência de criação de sentidos, mobilizando o imaginário do sujeito e do grupo, abrindo acesso a uma função de transicionalidade.

Os grupos de mediação indicam um trabalho psíquico de ligadura, prévio a toda tomada de consciência simbolizante que possa ser autenticamente investida. [...] Construir a trama associativa não é um fim em si mesmo, mas estas experiências tendem a mobilizar o sujeito em direção a descoberta de suas competências lúdicas e criativas (Vacheret, 2014, p. 263. Tradução livre).

O trabalho terapêutico da Fotoexpressão e suas condições especiais de setting, através da criação de uma zona intermediária, visa oferecer um ambiente para que aquilo que não foi experienciado possa o ser. Em Winnicott (1987) a capacidade para a experiência está relacionada à espontaneidade, à criatividade originária e à raiz do si-mesmo verdadeiro. Para tal é necessário que o analista esteja pronto a "garantir o ambiente", favorecendo a "sinergia" que ocorre entre os processos psíquicos trazidos pelo grupo e pelo objeto mediador (Vacheret, 2015, p.103).

O manejo de cuidado não se dá pela via da interpretação, mas sim pela dinâmica que a brincadeira instaura, onde o analista e o grupo podem transformar os conteúdos das imagens. Além disto, a foto sobrevive aos ataques destrutivos dirigidos a ela e em seguida pode sofrer metamorfoses de sentidos a partir das trocas em grupo.

Vale retomar que durante a conquista da identidade psicossomática, nos instantes de integração, o bebê destrói ativamente a mãe subjetiva e a não sobrevivência a tais ataques potencializa o terror associado à integração, tornando a posição alcançada insustentável, persecutória, ligada ao aniquilamento. Aqui se apresenta a delicadeza da Fotoexpressão aplicada a pacientes cujo sofrimento circula no campo do distúrbio psicossomático, afinal o que está em questão é a possibilidade de tornar real o caráter psicossomático da existência, para que a psique possa habitar no corpo, tornando-o sua morada. No campo do jogo, o movimento de criação e sobrevivência do objeto mediador favorece o trabalho psíquico e pela via da experiência, busca caminhar para a autoria do si-mesmo e do próprio corpo.

 

Trocas na selva

A partir das articulações apresentadas até agora traremos uma vinheta clínica de uma sessão de Fotoexpressão realizada no Programa de Atendimento e Estudos de Somatização (PAES), vinculado ao Departamento de Psiquiatra da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). O PAES acolhe pacientes cuja problemática do distúrbio psicossomático é o elemento essencial do seu quadro clínico e, a partir da psicanálise, busca estar atento às singularidades, reconhecendo necessidades diferenciadas para as modalidades de atendimento.

Esta se tratava de uma das primeiras sessões do grupo, que fora constituído dois meses antes em freqüência semanal. Além de duas terapeutas (Thais e Lúcia) o grupo era composto por cinco pacientes mulheres, mas nesta sessão apenas duas participantes compareceram (Diná e Ângela)3.

Antes do início da sessão uma cena inusitada atravessou o grupo. Diná, 62 anos, chegou acompanhada de sua filha, que estava inquieta e insistiu para entrar, afirmando ter "muitas coisas para contar". Esta se queixava da mãe falando das constantes idas ao médico e denunciou que ela se envolveu em uma séria confusão. Logo em seguida, as terapeutas solicitaram que a filha aguardasse do lado de fora e o grupo deu início.

Após a saída da filha, Diná inicia uma longa fala sobre as dores que sente nos dedos, braço e ombro. Conta que naquela semana estava no ônibus, voltando de mais uma ida ao pronto socorro, em uma busca incansável por diagnósticos, quando deparou-se com uma situação de muito estresse. Uma moça pisou no seu pé e mesmo pedindo desculpas, Diná não perdoou, iniciando uma discussão calorosa entre as duas. Xingamentos animalescos são trazidos à tona e Diná a ofende de "macaca". Relata detalhes da briga, mas como se a sua fala não tivesse valor, quase tira a blusa para provar as marcas dos arranhões. A fala da paciente também parecia desconsiderar o fato de uma das terapeutas, Lúcia, e a paciente presente, Ângela, serem negras. Diná não entendeu o motivo de a moça ter ficado incomodada: "Eu não sou racista, não sei por que ela se ofendeu. Acho que ela ficou pensando que era um macaco, mas como é? Que sabe que é gente!".

O impacto do conteúdo trazido atingiu diretamente a analista Lúcia, que tomada por sentimentos contratransferenciais tentou interpretar: "Parece que você também pisou no pé dela quando a chamou de Macaca!". Todavia, a paciente não consegue acessar a metáfora e se defende retomando a história, reafirmando que foi a moça quem pisou no seu pé.

Ângela, 51 anos, ouvia atenta e com olhar assustado. Falou não saber lidar com brigas, ficando anestesiada. Contou ter presenciado uma grande confusão em seu trabalho: "Eu me sinto bem na selva. Sinto na obrigação de me manter viva. Policio-me a toda hora para não dizer algo, para não manifestar nada com minha feição, para não ser agredida. Eu não sei qual seria minha reação se eu fosse agredida". Este estado de paralisia nos remete à sua alopecia (doença inflamatória que provoca a queda de cabelos), que segundo ela gerou uma "cicatriz capilar", impossibilitando o nascimento de novos fios.

Com a fala de Ângela percebemos o funcionamento psíquico grupal em operação, pois o relato de sua experiência estava em conexão direta com o episódio trazido por Diná. No entanto, esta última interrompe a fala de Ângela como se não a estivesse ouvindo e diz: "Aqui dói demais. Sobe para o braço. Ainda mais, com o soco que ela me deu, tem noites que eu nem durmo". Havia em Diná uma impossibilidade de ouvir qualquer tentativa que buscasse provocar uma implicação subjetiva referente à agressão realizada. Estava colada na sua dor.

A selva estava por todos os lados: Ângela se sente bem na selva, Diná parece estar entre bichos, confundindo-se com eles. O corpo está operante. Diante deste quadro inicialmente surgido no grupo o recurso da Fotoexpressão foi proposto a partir da pergunta "o que é se proteger?" e em seguida o grupo foi convidado a escolher as fotos.

A brincadeira com as fotos foi recebida com curiosidade pelas pacientes, que rapidamente entraram no jogo. Ângela escolheu uma foto em preto e branco em que aparece uma praça vazia, algumas árvores e ao fundo uma grande fachada de igreja. Ela é a primeira a apresentar ao grupo. A paciente intitula a foto de "meu santuário". Fala que se proteger é estar em paz com suas atitudes, não desejando e não fazendo aquilo que não quer que façam com ela. Sua fala parece ser dirigida à situação exposta por Diná. Esta última comenta sobre a foto de modo distanciado, dizendo: "Proteção em Deus. A fé da pessoa e confiança".

A terapeuta Thais aponta que vê a igreja como um lugar de proteção, mas ao mesmo tempo percebe que ela está muito longe: "Vejo um lugar muito vazio e me parece que a igreja está com as portas fechadas". Podemos pensar esta colocação ligando-se à fala inicial de Ângela, que na busca de evitar conflitos se paralisa, mantendo-se encapsulada.

Já a foto escolhida por Diná, também em preto e branco, revela tons bastante sombreados. Trata-se de um casal negro de idosos sentados em um banco. Sobre as pernas da mulher encontra-se deitada uma criança de aproximadamente dois anos de idade. O homem e a criança olham para a câmara, mas a mulher apresenta um olhar distante. Com certa dificuldade Diná apresenta sua foto: "Ser amigo, ter confiança no outro, um ajudar o outro a viver com as pessoas e ter paz". Com a escolha do casal negro, estaria Diná tentando reparar algo?

Ângela logo comenta: "Essa foto me lembra família. Isso. Proteção na família, que pra mim é onde começa tudo, onde a gente se sente protegido, onde nada vai acontecer. Pai e mãe, sagrados".

Percebemos o grupo colado no ideal de família, em uma posição ilusória. Logo em seguida, a terapeuta Thais comenta sobre a mesma foto: "Estou surpresa! Só agora estou percebendo que tem uma criança nos braços desta senhora". Diná e Ângela se contorcem na busca de olhar atentamente para a imagem e a partir daí também passam a ver o bebê, mas Diná demora um pouco mais para encontrar. A terapeuta dá seqüência à sua fala dizendo que percebeu o bebê mal colocado, como se estivesse caindo, tendo a impressão de que nesta família da foto não vê a proteção esperada. Através do incômodo gerado nas pacientes ao perceberem o bebê caindo, observamos a potência do objeto mediador, que através do deslocamento de sentidos falou das brechas existentes nos espaços da família.

A próxima foto foi apresentada pela terapeuta Lúcia, que escolheu uma imagem colorida e vibrante, onde o destaque é dado para uma cobra que mostra sua língua. Lúcia diz: "Quando penso em proteção, penso em atenção, por isso a cobra. Ela é sorrateira. Nem sempre a gente vê, é como aquelas coisas silenciosas...".

Com a escolha desta foto, a terapeuta, de alguma forma, devolveu ao grupo o tema da violência, que, até aquele momento, parecia negar seus atravessamentos. A mesma imagem causou um enorme incômodo em Diná, que diz: "Morro de medo de cobra!". A partir deste espanto, lembrou de uma imagem onírica ocorrida há vinte anos, pouco antes do seu pai morrer. No sonho lavava roupa no rio com sua mãe, quando viu garças matando uma sucuri e, muito assustada, consegue fugir com a mãe. No grupo, Diná diz que o sonho foi um "aviso" sobre a morte do pai, tendo adquirido medo de cobra a partir deste evento. A fantasia de um funcionamento mágico do sonho pode aqui ser pensada como o mecanismo encontrado para se adaptar ao ambiente e não ficar vulnerável a imprevistos intrusivos ou traumáticos, mantendo a mente ativada de forma excessiva e defensiva.

Diná apresenta uma enorme dificuldade de associar livremente e só a partir da foto esta lembrança pôde ser acionada. No entanto, apesar do elemento onírico, a paciente estava colada na concretude do animal ameaçador (cobra), ainda não podendo realizar metáforas, como por exemplo, a do pai como uma cobra. Entendemos que a foto da cobra não só traz de volta ao grupo a cena inicial da sessão, que no início flutuava sem possibilidade de penetração pela via da palavra, mas também denuncia a violência fundamental que atravessa o processo de amadurecimento destas pacientes e lentamente, de forma tangencial, vem podendo ser tocada pela via das fotos.

Ainda fazendo referência à mesma foto, Ângela comenta que enxerga surpresa: "Tão sorrateira, que você nem percebe o bote". Aqui, mais uma vez, observamos a denúncia de um perigo que está por toda parte e neste momento, a terapeuta Thais fala: "Olho para esta cobra e me perguntando se ela é venenos ou não. Muitas histórias com cobras são trágicas, mas nem toda cobra mata ou oferece perigo". Diná afirma, com convicção, que se trata de uma sucuri, portanto muito perigosa. A fala da terapeuta buscava acionar a ambivalência, mas Diná ainda não conseguia entrar neste campo.

Diná, através da última foto, expressa seu funcionamento. Ao ter o pé pisado no ônibus, reage como se estivesse diante de uma cobra venenosa, mas ao mesmo tempo também é o animal. Seu estado de despersonalização só encontra a via do corpo e da dor para marcar a existência. Parece o bebê da foto, caída nos braços da mãe, gritando para poder ser vista. Lembramos sua fala inicial, quando relatava o episódio do ônibus, afirmando não entender o motivo de a moça ter se sentido ofendida: "Acho que ela ficou pensando que era um macaco, mas como é? Que sabe que é gente!". A mesma frase, tendo as vírgulas e entonações alteradas pode nos dizer: Mas como é que sabe que é gente? Talvez esta tenha sido a verdadeira questão que Diná colocou ao grupo.

A última foto foi apresentada pela terapeuta Thais. Tratava-se de uma imagem em preto e branco de cinco pessoas utilizando a mesma máscara: "Nesta foto eles podem estar se protegendo, mas também pode ser a maneira que eles encontraram de esconder algo". Ângela completa e diz: "O quão difícil é se desfazer de algo que te remete à proteção. Será que eu largo, será que eu não largo?". O grupo funciona de modo dinâmico e logo Diná comenta: "Eles estão protegendo só o rosto, né?". A terapeuta Lúcia concorda: "Isto! E o resto do corpo está desprotegido!".

Na foto havia cinco mascarados, exatamente a mesma quantidade de pacientes do grupo. Através do objeto de mediação a terapeuta ofereceu um espaço de sustentação, incluindo os outros membros, mesmo ausentes na sessão, e construiu um ambiente de confiança, reconhecendo como legítimo os recursos de proteção de cada um.

Com a imagem do corpo vulnerável o grupo encerrou a sessão. As máscaras disfuncionais nos remetem à dissociação mente e corpo, onde a coesão psicossomática está enfraquecida ou inexistente, estabelecendo-se uma oposição entre a psique e o soma, havendo o domínio da mente.

Foi através do recurso grupal e do uso do objeto mediador que esta sessão pôde desenvolver-se para além do episódio violento trazido pela paciente Diná. O impacto inicial provocado pela temática racista convidava colocar Diná apenas no lugar de agressora, mas a selva estava viva e presente em todos. Ao trazer a foto da cobra foi possível devolver com sutileza ao grupo a violência que parecia estar escondida no ideal divino de proteção (foto da igreja) e na família perfeita (foto do casal com o bebê).

A delicadeza do recurso da Fotoexpressão vem nos oferecendo anteparo diante de uma clínica onde os corpos estão em carne viva e a selva enigmática sempre está presente. Aos poucos as pacientes estão podendo vivenciar algum deslocamento figurado que abre caminho para novas construções de experiências, pois, segundo Winnicott, é somente a partir das experiências - e em especial das experiências lúdicas-, que podem advir processos de simbolização. A Fotoexpressão, ao criar um ambiente de jogo, propicia isso ao grupo, transformando a selva real de um ônibus superlotado, com pessoas se digladiando, numa "selva lúdica", por assim dizer. Potência civilizada do brincar.

 

Notas

1 No tópico "Trocas na Selva" esta paciente aparece com o nome fictício de Diná.

2 A Fotoexpressão consiste na mesma técnica da Fotolinguagem©, uma vez que cumpre o rigor metodológico que ela propõe. Porém, na nossa prática institucional utilizamos um conjunto de fotos próprias, baseadas na cultura brasileiras, diferente do dossiê francês, o que não nos autoriza a usar o termo registrado Fotolinguagem©.

3 Os nomes das pacientes foram alterados a fim de preservar suas identidades.

 

Referências

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