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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.18 no.2 São Paulo maio/ 2021

http://dx.doi.org/10.32467/issn.19982-1492v18nesp.p485-498 

ARTIGO

 

A produção do sonho coletivo como mediador de processos grupais

 

The production of the collective dream as a mediator in group processes

 

La producción del sueño colectivo como mediador en procesos grupales

 

 

Solange Aparecida Emílio

Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano (USP); Professora do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu da UNIFIEO; Professora do curso de Psicologia da UMC-Campus Villa Lobos; psicóloga e supervisora clínica; vice-presidente do NESME (gestão 2019-2021). E-mail: solange.emilio@terra.com.br

 

 


RESUMO

A atração pelos sonhos é algo que acompanha os seres humanos há milhares de anos e em diferentes culturas. Nos dias de hoje, a interpretação de sonhos é bastante valorizada pela psicanálise, em especial nos trabalhos clínicos, seja nos atendimentos individuais, nos grupos terapêuticos ou em psicoterapias de casal e família. Mas, em todos estes casos, além do enfoque majoritariamente clínico, trabalha-se, em geral, a partir das associações realizadas e pela interpretação do material sonhado, lembrado e compartilhado por um dos participantes. O presente artigo baseia-se em uma comunicação científica que apresentou um dispositivo desenvolvido para ser utilizado como recurso para intervenções em diferentes grupos, inclusive os com finalidades não psicoterapêuticas: a produção e interpretação, de forma lúdica, de um sonho criado pelo grupo. Tal recurso pode ser aplicado em grupos com as mais variadas finalidades. Será apresentada a fundamentação teórica do dispositivo e apresentadas as etapas de elaboração da atividade, com a discussão de alguns resultados. Espera-se que o referido dispositivo possa ser aproveitado por outros profissionais para a promoção de saúde nos diferentes tipos de grupos.

Palavras-chave: sonho coletivo; objetos mediadores; promoção de saúde em grupos.


ABSTRACT

Humans have showed interest in dream interpretation for thousands of years and in different cultures. In the current time, dream interpretation is highly valued by psychoanalysis, especially in psychotherapy, whether in individual care, therapeutic groups or couple and family psychotherapies. But, in all these cases, in addition to the predominantly clinical approach, they generally work from the associations made and the interpretation of the content dreamed, remembered and shared by one of the participants. Thus, the present work brings a differential, as part of the principles of elaboration and analysis of dreams presented by psychoanalysis, to propose the creation of a collective dream made in a playful way as a resource to enable the reading of group phenomena. This feature can be applied in groups with the most varied purposes. The stages of elaboration of the activity will be presented and some results will be discussed, which can be used by other professionals for health promotion in different types of groups.

Keywords: collective dream; mediating objects; health promotion in groups.


RESUMEN

Los humanos han mostrado interés en la interpretación de los sueños durante miles de años y en diferentes culturas. En la actualidad, la interpretación de los sueños es muy valorada por el psicoanálisis, especialmente en psicoterapia, ya sea en atención individual, grupos terapéuticos o psicoterapias de pareja y familia. Pero, en todos estos casos, además del enfoque predominantemente clínico, generalmente trabajan a partir de las asociaciones realizadas y la interpretación del contenido soñado, recordado y compartido por uno de los participantes. Así, el presente trabajo trae una diferencia, como parte de los principios de elaboración y análisis de los sueños presentados por el psicoanálisis, para proponer la creación de un sueño colectivo hecho de manera lúdica como un recurso para permitir la lectura de fenómenos grupales. Esta característica se puede aplicar en grupos con los más variados propósitos, ya que, por un lado, evidencia contenidos latentes y, por otro, preserva a sus participantes. Se presentarán las etapas de elaboración de la actividad y se discutirán algunos resultados, que pueden ser utilizados por otros profesionales para la promoción de la salud en diferentes tipos de grupos.

Palabras clave: sueño colectivo; objetos mediadores; promoción de la salud en grupos.


 

 

Introdução

A atração pela compreensão dos sonhos e a influência destes nas decisões humanas tem sido percebida em diferentes culturas e registrada ao longo da história. Freud (1900/1987; 1901/1987), em uma obra considerada revolucionária, retoma hipóteses mitológicas, científicas e também o senso comum para abordar a constituição e o significado dos sonhos e chega à conclusão de que é impossível duvidar de que os sonhos sejam produto do psiquismo do sonhador, o que os tornaria uma boa fonte para a investigação psicológica. Nos dias de hoje, os sonhos continuam bastante valorizados por profissionais que realizam trabalhos clínicos com referência na psicanálise. Alguns profissionais da psicanálise vincular, partindo desta concepção, também se beneficiam da interpretação de sonhos em grupos terapêuticos ou em psicoterapias de casal e família para a explicitação e elaboração de conteúdos importantes e que remetem a questões partilhadas.

Há registros da realização de trabalhos, estudos e pesquisas que consideram importante também a compreensão do sentido social dos sonhos. Nos dizeres de Leite (2002), o conteúdo do sonho é marcado pela história na qual se desloca o sujeito e expressa o valor simbólico cultural de sua linguagem. Isso é verificado na proposta do Social Dreaming defendida por Gordon Lawrence (citado por Penna, 2013), que propõe o compartilhamento do sonho individual, em grupo, com vistas a compreender questões sociais, por meio das associações dos participantes do grupo. Mas, em todos estes casos, trabalha-se, em geral, pela interpretação do material sonhado, lembrado e compartilhado por algum dos participantes.

O presente artigo apresenta um dispositivo desenvolvido para ser utilizado como recurso para intervenções em diferentes grupos, inclusive os com finalidades não psicoterapêuticas: a produção do sonho coletivo. A grande diferença desta modalidade é o fato de trabalhar com um sonho inventado por um grupo, que, apesar de trazer os elementos dos sonhos sonhados, preserva os participantes na medida em que conteúdos delicados podem ser trabalhados dentro de um espaço de jogo e de forma lúdica. Como todo brincar, se o compreendermos no sentido dado por Winnicott (1971/1975), permite a criação de uma zona intermediária entre o dentro e o fora e dá possibilidade à integração de aspectos e conteúdos antes dissociados.

 

A história da criação do dispositivo

A autora desta comunicação e do dispositivo tem trabalhado com formação de psicólogos em cursos de graduação em Psicologia e em cursos de aprimoramento em especialização para profissionais que trabalham com grupos, casais e famílias. Algumas disciplinas e aulas dadas demandavam o conhecimento ou a retomada de conceitos básicos da Psicanálise e ficava, em geral, evidenciada a falta de repertório dos estudantes na abordagem a conceitos importantes como o inconsciente, o determinismo psíquico, entre outros. Então, o dispositivo surgiu a princípio como uma estratégia pedagógica que permitia aos participantes identificar e construir alguns conceitos básicos que seriam posteriormente utilizados para compreender os conteúdos mais elaborados que seriam apresentados.

A atividade se dava da seguinte forma: perguntava-se aos participantes quais eram as características dos sonhos e o grupo era ajudado a resgatar o que sabia sobre a constituição dos sonhos, como, por exemplo, a presença de elementos do cotidiano e dos dias anteriores; as contradições, bizarrices; pessoas parecidas com outras ou compostas por junções de uma ou mais pessoas e situações que começavam de um jeito e passavam para outro. Então, cada participante tinha um ou dois minutos para inventar um sonho que envolvesse o curso e a instituição formadora (não podia ser um sonho realmente sonhado, precisaria ser inventado). A partir daí, eram organizados trios ou quartetos para o compartilhamento dos sonhos inventados e identificação de elementos em comum (isso ocorria em uns 10 minutos, pois não podia ser muito demorado). A partir daí, cada subgrupo apresentava aos demais uma parte do sonho e, em conjunto e, por associação, um único sonho coletivo ia sendo criado. Os principais pontos do sonho eram registrados na lousa para, ao final, serem lidos como um único sonho do grupo. O produto costumava parecer totalmente desconectado da realidade, o que gerava muitas risadas. Então, era retomada cada parte do sonho e analisada, com as associações, partindo dos acontecimentos recentes e permitindo associações livres de todos, inclusive da professora, em relação aos elementos presentes. Ao final, em grupo, era realizada uma síntese das associações e perguntava-se o que eles acreditavam que o sonho contava sobre aquele grupo em especial. Invariavelmente, as respostas finais do grupo eram de grande surpresa, pois muitos conteúdos antes implícitos se evidenciavam.

Os alunos admiravam a capacidade de leitura dos fenômenos de grupo que a atividade proporcionava. Em aulas posteriores (e mesmo após alguns semestres ao reencontrarem a professora), era comum que participantes do grupo lembrassem daquele momento como um processo de intervenção no grupo, que havia gerado transformações nas relações interpessoais e efeitos positivos também nas vidas de alguns dos participantes. Mas, apesar de todo o trabalho de elaboração ter sido feito pelo próprio grupo, parecia, também à professora, que a sua experiência clínica aliada à formação em psicanálise vincular eram a grande chave para o sucesso da atividade e seus efeitos para a promoção de saúde nos grupos. Assim, a produção de sonho coletivo era mantida exclusivamente como um recurso pedagógico.

No entanto, duas situações mudaram esta visão. A primeira, foi o compartilhamento da atividade com outra professora do curso de graduação (que lecionava a disciplina de Processos Grupais no terceiro semestre do curso de graduação em Psicologia e tinha formação em teoria sistêmica), que fez o uso da estratégia em aula para introduzir os conceitos básicos de Psicanálise e disse ter obtido os mesmos resultados de importante leitura dos fenômenos grupais, mostrando-se surpresa com eles. A segunda, foi quando um grupo de estagiários do quinto semestre do curso de Psicologia, que haviam conhecido a estratégia em aula no terceiro semestre, resolveu utilizar como um dispositivo de intervenção em um grupo e igualmente obteve resultados muito interessantes. Ficou evidenciado que o sucesso dos resultados estava mais vinculado ao bom uso do dispositivo, respeitando sua fundamentação teórica do que à formação em psicanálise ou mesmo à vasta experiência clínica e na coordenação de grupos. Então, compreendeu-se que, se devidamente explicado e teoricamente fundamentado, este pode ser pensado como um dispositivo de intervenção que utiliza o sonho produzido coletivamente como objeto mediador.

 

Fundamentação teórica

A obra A Interpretação dos Sonhos (Freud, 1900/1987), bastante citada, muitas vezes incompreendida e inequivocamente original, traz em sua abertura uma citação em Latim: "Flectere si nequeo superos, Acheronta Movebo" (p.15). Em nota de rodapé da mesma página, o autor traduz e explica o seu uso: "Se não puder dobrar os deuses de cima, comoverei o Aqueronte". Considerando que o Aqueronte na mitologia é um dos rios do inferno, o autor esclarece que o desejo rejeitado pelas instâncias superiores se faz escutar ao agitar as instâncias inferiores. Assim, o seu texto já apresenta, de entrada, a condição do sonho como espaço de expressão de desejos ocultos e evidencia a importância da relação entre a psicanálise e os sonhos.

Para Susemihl (2017), a investigação para o esclarecimento dos sonhos pode ser concebida como uma marca da constituição do campo psicanalítico para o desvendamento dos processos psíquicos. A autora elaborou uma revisão cuidadosa da obra de Freud com referência aos processos oníricos e apresentou uma interessante síntese dos conceitos, que reproduzo parcialmente, a seguir:

O sonho é composto de um conteúdo manifesto e um conteúdo latente. (...) Durante o estado do sono há um relaxamento da repressão e da censura, assim, os impulsos inconscientes profundamente recalcados, que clamam por vida e satisfação, os "filhos da noite", se agregam aos pensamentos latentes pré-conscientes, e tendo essa dupla base, no amálgama de ambos que se dá no trabalho onírico, produz-se o sonho, apresentando-se com a forma de desejos realizados. O trabalho onírico transforma o conteúdo latente em conteúdo manifesto; não cria nem pensa nada de novo,somente transforma o modo de apresentação dos conteúdos psíquicos inconscientes e pré-conscientes para outra linguagem, aquela dos processos primários. Por meio de um processo intenso de compressão, que se dá pelos mecanismos de deslocamento e condensação, o trabalho onírico apresenta aqueles mesmos conteúdos (latentes) em outra forma, predominantemente de imagens visuais, na mente durante o sonho; nunca se termina ou esgota uma interpretação. (Susemihl 2017, p. 115)

A concepção de Freud abordada acima baseia-se na perspectiva da realidade intrapsíquica do sonhador e busca compreender os conteúdos e o significado de seus processos internos. No entanto, Kaës (2003), apresenta uma outra possibilidade de abordagem, que considera o sonho uma formação interpsíquica, na qual são considerados as condições e os efeitos de mais de um outro na constituição de espaços oníricos. Para isso, em primeiro lugar, distingue os sonhos de grupo dos sonhos em grupo. Os sonhos de grupo são aqueles nos quais o grupo está em lugar de destaque constituindo uma representação dos grupos internos do sujeito. Os sonhos em grupo, no entanto, são os vivenciados por uma ou mais pessoas que têm um vínculo suficientemente permanente, mesmo que por um tempo limitado, como uma viagem, por exemplo. A partir da análise e das associações em grupo podem ser comprovadas as hipóteses da existência de espaços comuns e compartilhados. Para isso, o autor lança mão do conceito de aparelho psíquico grupal, que se apoia em outros dois bem importantes para este trabalho aqui: o do segundo umbigo e o da polifonia dos sonhos.

Para Kaës (2003), o grupo tem o poder de proporcionar o encontro com mais de um outro, o que mobiliza formações e transformações do inconsciente, estimulando, também, a atividade onírica dos sujeitos. O aparelho psíquico grupal é inspirado no conceito freudiano de organização e funcionamento do psiquismo do sujeito, mas traz a ideia da existência de um aparelho psíquico em cada sujeito que é responsável por articular, reunir, ligar e transformar as organizações intrapsíquicas quando o sujeito está em grupo. O aparelho psíquico grupal de cada um afeta e é afetado pelo espaço psíquico grupal, o que inclui o/a analista ou coordenador do grupo.

A ideia do segundo umbigo dos sonhos parte do conceito apresentado originalmente por Freud (1900) de que todo o sonho, por mais analisado e interpretado que seja, guardará o que ele chamou de "umbigo do sonho", ou seja, os conteúdos jamais explicitados, que constituem, portanto, o seu ponto central. Kaës (2003) defende a existência de um segundo umbigo do sonho, que diz respeito ao lugar no qual o sonho mergulha no inconsciente dos laços interpsíquicos e apoia a ideia de polifonia do sonho no conceito de "polifonia do discurso" de Baktin, a partir da qual o sujeito, por ser social, está aprisionado em uma interdiscursividade e é atravessado por uma malha de vozes. O sonho, mesmo que produzido de forma individual, organiza-se como uma combinação de várias vozes, uma polifonia, a partir de dois umbigos do sonho e da formação de um espaço onírico comum e compartilhado. Para o autor, "o sonho se cria nas fronteiras entre o intrapsíquico e o intersubjetivo; (...) é um trabalho de representação, dramatização e simbolização dos distúrbios que se produzem nessas fronteiras" (Kaës 2003, p. 12).

Considerando, assim, a importância dos sonhos para o psiquismo humano e o reconhecimento dos grupos como espaços de transformação, a possibilidade de produção do sonho de forma coletiva, seguida de sua análise e interpretação no e pelo grupo, é apresentada neste artigo como um potente dispositivo para intervenção em diferentes tipos de grupos.

 

O dispositivo - a produção do sonho coletivo

O dispositivo aqui apresentado pode ser realizado com grupos de diferentes tamanhos e em diferentes espaços, mas recomenda-se que tenha pelo menos seis participantes (para garantir uma maior dispersão dos conteúdos). O número máximo de pessoas pode ser bem elevado desde que seja possível promover que todos participem da construção e da análise e interpretação. Como este pode ser utilizado em grupos não terapêuticos (aulas, grupos para promoção de saúde, entre outros), o profissional que irá conduzi-lo será denominado aqui como coordenador. As orientações abaixo dizem respeito ao que se espera de seu papel no manejo do referido grupo.

Inicia-se o trabalho esclarecendo que é uma atividade lúdica, com finalidade de promover alguma compreensão sobre o grupo e que dependerá do envolvimento dos participantes para que os objetivos sejam atingidos.

A seguir, realiza-se um aquecimento breve, sendo promovido um brainstorming sobre como são compostos os sonhos. A partir do que for trazido pelo grupo, deve-se lembrar que os sonhos são compostos por restos diurnos, ou seja, são tomadas emprestadas imagens, acontecimentos e afetos vivenciados em dias que o antecederam; também, que os sonhos podem conter coisas estranhas ou contraditórias; que há elementos que vêm misturados, fora de lugar ou de forma deslocada. Além disso, é importante lembrar que podem mobilizar angústias ou trazer situações prazerosas. Podem ser oferecidos exemplos, caso estes não surjam espontaneamente.

Feito isso, os participantes são orientados a criar, individualmente e com base nessas informações, um sonho que envolva o grupo (e/ou a instituição). Pode haver também um sonho temático, como, por exemplo "meu filho quer conhecer os pais biológicos" para um grupo de pretendentes à adoção ou "um dia horrível na escola" para um grupo de estudantes ou professores. Para esta primeira etapa, é importante que o tempo seja bastante curto, para que não haja muito tempo para racionalizações e censuras. É fundamental que sejam orientados para não trazerem sonhos ou acontecimentos reais.

Então, são organizados subgrupos de três a cinco pessoas, aproximadamente, de forma a permitir a participação de todos nesta etapa, que será a de compartilhar os sonhos criados individualmente para que seja construído um único sonho para cada subgrupo, com os elementos pensados inicialmente por cada participante. Neste momento, pode haver um pouco mais de tempo, para que sejam possíveis as trocas de ideias e a tomada de decisão sobre o sonho a ser construído. Os principais pontos podem ser anotados por um representante.

A última parte da construção do sonho é realizada com todos os participantes do grupo, em conjunto. O coordenador solicita que o representante de cada subgrupo relate o sonho criado, de forma espontânea e por associação. Assim, pergunta como o sonho começa e permite que algum subgrupo se voluntarie a contar o início de seu sonho. Na sequência, pergunta o que ocorre a seguir e coleta as informações de outro subgrupo. Faz isso até que todos os grupos tenham dado a sua contribuição ou demonstrem estar satisfeitos com o conteúdo que apareceu até o momento (é comum os subgrupos apresentarem conteúdos semelhantes). Pergunta como o sonho termina e verifica o que o grupo traz. Durante a produção do sonho, é importante que o coordenador tenha a possibilidade de registrar as principais ideias ou elementos presentes em uma lousa ou em um computador com projetor (de forma a que todos possam ver).

Após a finalização desta etapa, o sonho produzido coletivamente é relido e pergunta-se se todos estão satisfeitos com ele, sendo possível fazer ajustes, se necessário. Então, parte-se para a parte da análise e interpretação.

A análise tem início com a pergunta de quais foram os acontecimentos dos dias anteriores vivenciados pelo grupo que emprestaram elementos à elaboração onírica. Esta resposta fica registrada mentalmente pelo coordenador ou pode ser anotada ao lado do sonho, na lousa ou outro espaço de registro. Então, pergunta-se ao grupo quais são as partes do sonho que chamam a atenção e estas podem ser grifadas ou circuladas no local em que estão registradas. Busca-se a existência de deslocamentos e condensações e isso é também anotado. A seguir, todos os registros são lidos e solicita-se a livre associação de todos, inclusive do coordenador, pois este pode também identificar elementos que contribuem para a compreensão dos processos grupais evidenciados pelo sonho. Tais associações são igualmente anotadas.

Ao final, as pessoas do grupo são convidadas a refletir sobre o que todas as anotações feitas contam a respeito daquele grupo e/ou instituição. O coordenador precisa escutar atentamente as reflexões propostas para articulá-las, considerando o que é conhecido do grupo, mas sem perder o que aparecer nas associações que pode remeter ao desconhecido. Pode organizar as reflexões expressas pelos demais membros do grupo e expor suas próprias hipóteses, caso as considere importantes para o grupo. É importante ressaltar que não há certo ou errado e todas as reflexões promovidas são válidas.

Um importante cuidado a ser tomado é para que não sejam realizadas interpretações direcionadas a algum dos sujeitos ou subgrupos do grupo (tanto pelo coordenador quanto por algum participante) e que não sejam estimuladas neste momento discussões relativas a conflitos vivenciados e não resolvidos por algum subgrupo. Em situações como estas é sugerido que o sonho seja retomado e que o espaço de jogo fique garantido, esclarecendo, se for o caso, a necessidade posterior de retomada em outro contexto dos conflitos evidenciados.

 

Considerações finais

A produção de sonho coletivo funciona como um dispositivo de intervenção para utilização em grupos com diferentes finalidades no qual o sonho funciona como objeto mediador, pois sendo algo inventado, opera no espaço potencial, na área do brincar, como proposto por Winnicott (1975), permitindo o mostrar e o esconder. O processo de elaboração do sonho contém, assim, elementos e contribuições de cada um e de todos, uma vez que o sujeito tanto apresenta os conteúdos como os encontra no sonho elaborado pela colaboração de outros. De modo semelhante ao que é citado por Vacheret (2008) sobre o que ocorre com relação às fotos em uma sessão de Fotolinguagem©, as personagens e imagens colocadas em cena no sonho inventado na cadeia associativa grupal permitem que o sujeito tome a parte que lhe retorna e se aproprie novamente desta, sem que os demais precisem saber. Então, a realização da atividade pode ter efeitos para o grupo, como um todo, mas também para cada indivíduo dele participante. Desta forma, apesar de sua indicação para uso em grupos que não tenham a finalidade psicoterapêutica, podem ser esperados efeitos de transformação dos psiquismos dos sujeitos.

A interpretação de um sonho criado pelo grupo, por um lado, permite e evidencia conteúdos latentes e, por outro, é capaz de preservar seus participantes, uma vez que o sonho analisado é de todos (não sendo especificamente de um dos indivíduos), mas também é de cada um, na medida em que apresenta elementos trazidos por cada participante. A criação e interpretação do sonho coletivo, por ser realizada de forma lúdica, permite o acesso e a elaboração a conteúdos difíceis compartilhados pelo grupo e, desta forma, pode ser uma importante estratégia de promoção de saúde mental.

Para terminar, pode-se compreender que a produção do sonho coletivo é como o poeta que é descrito por Fernando Pessoa, como sendo "um fingidor, [que] finge tão completamente, que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente." (Pessoa, 2007, p. 23)

 

Referências

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