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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.18 no.3 São Paulo set./dez. 2021

http://dx.doi.org/10.32467/issn.19982-1492v18nesp.p507-522 

ARTIGO

 

Grupo autoestima: experiência de grupo operativo em CAPS

 

Self-esteem group: CAPS operative group experience

 

Grupo de autoestima: experiencia de grupo operativo en el CAPS

 

 

Vaniele Silva de SousaI; Cintia Regina Macedo OliveiraII

IPsicóloga, CAPS II. Especializanda: Impactos da Violência na Saúde. (Fiocruz) Email cintia.rom83@gmail.com
IIPsicóloga e especialista em saúde mental e equipe multiprofissional pela Universidade Paulista UNIP. CAPSII, adulto São Paulo

 

 


RESUMO

O presente artigo visa a compartilhar uma experiência de trabalho com um grupo operativo que ocorre em um serviço público de saúde mental, a saber, um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Esse grupo é composto por sujeitos que apresentam quadros psicopatológicos considerados graves e que estão em situação de vulnerabilidade social. Partindo disso, pretende-se, neste escrito, realizar uma análise dos aspectos considerados avanços e ganhos conquistados ao longo do desenvolvimento do grupo, bem como abordar os desafios de sustentar um coletivo como esse em uma instituição de saúde da rede pública. Abordar-se-á, assim, as particularidades do processo grupal com os usuários da saúde mental, fomentando uma reflexão sobre as possibilidades de obter alguma melhora, apesar da gravidade dos sintomas. Tal experiência revela a potência que um trabalho grupal tem para resgatar e favorecer singularidades, elevar a autoestima e devolver o direito à voz a sujeitos que, por muito tempo, foram silenciados e escamoteados por diagnósticos de transtorno mental. Grupos operativos enriquecem o cotidiano dos pacientes e fortalecem a união, promovendo identificações e aprendizagens que, por sua vez, possibilitam mudanças e transformações.

Palavras-chave: grupo operativo; autoestima; saúde mental; Centro de Atenção Psicossocial.


ABSTRACT

This article aims to share a work experience with an operative group that takes place in a public mental health service, namely, a Psychosocial Care Center. That group is composed of subjects who have psychopathological conditions considered severe and who are in a situation of social vulnerability. Based on this understanding, it is intended, in this writing, to carry out an analysis of the aspects considered advances and gains achieved during the development of the group, as well as to discuss the challenges of sustaining a collective such as this in a public health institution. Thus, the particularities of the group process with mental health users will be approached, promoting a reflection on the possibilities of obtaining some improvement, despite the severity of the symptoms. Such experience reveals the power that group work has to rescue and favor singularities, raise self-esteem and give back the right to voice to subjects who, for a long time, were silenced and concealed by diagnoses of mental disorder. Operative groups enrich the patients' daily lives and strengthen the union, promoting identifications and learning that, in turn, enable changes and transformations.

Keywords: operative group; self-esteem; mental health; Psychosocial Care Center.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo compartir una experiencia laboral con un grupo operativo que tiene lugar en un servicio público de salud mental, a saber, un Centro de Atención Psicosocial. Ese grupo está compuesto por sujetos que tienen condiciones psicopatológicas consideradas graves y que se encuentran en una situación de vulnerabilidad social. En base a esta comprensión, se pretende, en este escrito, producir un análisis de los aspectos considerados avances y logros alcanzados durante el desarrollo del grupo, así como discutir los desafíos de mantener un colectivo como este en una institución de salud pública. Así, se abordarán las particularidades del proceso grupal con usuarios de salud mental, promoviendo una reflexión sobre las posibilidades de obtener alguna mejora, a pesar de la gravedad de los síntomas. Tal experiencia revela el poder que tiene un trabajo grupal para rescatar y favorecer las singularidades, elevar la autoestima y devolver el derecho de voz a los sujetos que, durante mucho tiempo, fueron silenciados y abrumados por los diagnósticos de trastorno mental. Los grupos operativos enriquecen la vida cotidiana de los pacientes y fortalecen la unión, promoviendo identificaciones y aprendiendo que, a su vez, permiten cambios y transformaciones.

Palabras clave: grupo operativo, autoestima, salud mental, Centro de Atención Psicosocial.


 

 

INTRODUÇÃO

A proposta deste artigo é compartilhar nossa experiência com o grupo Autoestima, que consiste em um trabalho clínico desenvolvido em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Para compreender o sentido desse grupo, é necessário reconhecer o contexto em que ele se insere. A criação dos CAPS foi parte de um intenso movimento social chamado de Reforma Psiquiátrica. Este processo foi iniciado por trabalhadores de saúde mental que buscavam a melhoria da assistência no Brasil. A reivindicação por tratamento digno e humanizado para pessoas com transtornos mentais promoveu a luta pela extinção do modelo manicomial e levou a criação do CAPS, criado para ser o dispositivo de tratamento substitutivo a um modelo organicista e hospitalocêntrico que reduzia sujeitos a organismos, excluía da vida em sociedade, rompia vínculos familiares e anulava identidades Os CAPS surgiram com a função de substituir o modelo hospitalocêntrico pelo modelo psicossocial (Ministério da Saúde, 2004), este que supõe o tratamento em liberdade. Acerca da liberdade como diretriz da Reforma Psiquiátrica, o documento de Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) nos Centros de Atenção Psicossocial aponta que

Cuidar em liberdade é, mais que uma máxima, uma diretriz. É posição que se traduz na prática e em sentidos variados. Inicia-se na supressão das grades, na eliminação dos espaços de isolamento e segregação, ou seja, na substituição da arquitetura da exclusão, para alcançar um ponto subjetivo e cidadão: o consentimento com o tratamento. Para tratar, rigorosamente, é necessário ser livre para decidir quando e porque tratar-se, sendo igualmente importante, para esta clínica, tratar sem trancar, tratar dentro da cidade, buscando os laços sociais, o fortalecimento ou a reconstrução das redes que sustentam a vida de cada usuário. (Conselho Federal de Psicologia, 2013, p. 95)

Os CAPS são hoje equipamentos especializados em saúde mental. Sua proposta de tratamento se baseia no modelo psicossocial, que consiste em cuidar das pessoas em sua integralidade. O objetivo é estimular a inclusão social e familiar e apoiar iniciativas de ganho de autonomia. Seu princípio é promover a integração a um ambiente social e cultural concreto designado como território, que nada mais é do que o espaço da cidade onde se desenrola a vida cotidiana dos usuários e de seus familiares. Os CAPS consistem, dessa forma, na principal estratégia do processo da Reforma Psiquiátrica (Ministério da Saúde, 2004).

Os CAPS oferecem a seus usuários acompanhamento multiprofissional com equipes compostas por psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, enfermeiros, médicos, educadores físicos, entre outros especialistas, além de profissionais de diversas artes, como músicos, artesãos e atores, que têm a função de desenvolver oficinas junto aos usuários. A multiplicidade de olhares permite que o sujeito seja compreendido em sua complexidade biopsicossocial, o que favorece a inclusão social e a capacidade de cuidar de si e dos aspectos de sua vida.

O grupo Autoestima é coordenado por duas psicólogas que compõem a equipe desse CAPS. A experiência com esse grupo torna patente o papel dos psicólogos nesses serviços, que é o de desenvolver estratégias que promovam a valorização da subjetividade, possibilitando mudanças a partir do autoconhecimento e do conhecimento sobre o meio. Por meio, deve-se entender o território, a família, as instituições, o trabalho e as demais relações que o sujeito estabelece com o mundo e que acabam por influenciá-lo direta ou indiretamente.

O Autoestima surgiu a partir da incômoda percepção de que o lugar criado para garantir tratamento em liberdade e resgate da autonomia estava se tornando vetor de cronificação dos quadros psicopatológicos e institucionalização dos sujeitos. Em vista disso, decidimos oferecer um espaço para que os sujeitos usuários do CAPS pudessem encontrar um lugar de fala e escuta. Para estimular esse processo, utilizamos técnicas de grupo associadas a diversos recursos criativos. Nossa base foi o conceito pichon-rivieriano de grupo operativo. Esse tipo de grupo se desenvolve centrado na tarefa, que permite ao usuário a apropriação de sua condição de sujeito, bem como a elaboração de estratégias e táticas que lhe possibilitam intervir nas mais variadas situações (projetos de vida). O enfoque dos grupos operativos é a mobilização de estruturas estereotipadas e dificuldades de aprendizagem e comunicação geradas pelo acúmulo de ansiedades diante da mudança. Assim, o esclarecimento, a comunicação, a aprendizagem e a resolução de tarefas condizem com a cura, criando um novo esquema referencial. Entendemos que a situação grupal privilegia o aprendizado sobre si mesmo e sobre a realidade vivida. Consideramos, pois, que a eficácia para a produção do autoconhecimento está na troca de experiências e significados. Como afirma Pichon-Rivière (2005), "o grupo é o agente da cura, e o terapeuta reflete e devolve as imagens dessa estrutura em contínuo movimento"( Pichon-Rivière 2005 p. 16).

Como desafios para a manutenção do grupo, surgiram algumas limitações institucionais, como as demandas burocráticas, que comumente se sobrepõem à criação de dispositivos clínicos, o investimento limitado, que acarreta escassez de recursos e excesso de atribuições para os técnicos, e a insuficiência e a inadequação do espaço físico. Ademais, pudemos perceber certa resistência de parte da equipe em compreender o grupo, o que levou a aparentes movimentos de boicote em relação à consolidação de nossa proposta.

Este artigo busca, a partir de nossa experiência com o Autoestima, construir uma reflexão acerca da vivência singular em grupo, contribuindo com o trabalho realizado por outros profissionais em outros serviços de saúde e oferecendo insumos aos interessados pela temática grupal.

 

AUTOESTIMA: DA DESCONSTRUÇÃO DA CRONICIDADE À VALORIZAÇÃO DA SINGULARIDADE

A motivação para a criação do grupo Autoestima surgiu a partir do momento em que percebemos que a rotina do CAPS em que atuamos havia se tornado, para alguns usuários, produtora de cronicidade e institucionalização. Pudemos observar que eles ficavam por muito tempo ociosos, principalmente os mais comprometidos pelo adoecimento. A ausência de contato interpessoal e com o espaço nos gerou a incômoda percepção de singularidades invisíveis.

Vale destacar que a rotina dos CAPS, de maneira geral, é bastante dinâmica. Todos os dias são realizadas atividades diversas nesses serviços, como grupos, oficinas internas e externas, atendimentos individuais com usuários e seus familiares, atendimentos médicos, dispensação de medicamentos, consultas de enfermagem, atenção a situações de crise, reuniões de equipe, matriciamento da rede de atenção psicossocial, entre outras práticas e eventos. No entanto, os usuários que observávamos permaneciam nesse espaço destinado a ambiência ou convivência alheios ao que acontecia em seu redor. A fim de ressaltar a contradição que estava exposta, cabe esclarecer que o conceito de ambiência é uma diretriz amplamente abordada nos dispositivos de saúde e abrange os seguintes aspectos: espaço que visa à confortabilidade, favorece os processos terapêuticos ou de trabalho e promove o encontro entre os sujeitos (Ministério da Saúde, 2009). Deparamo-nos, nesse sentido, com um impasse ético, pois reproduzíamos a exclusão dentro de um dispositivo de saúde mental que fora criado com intuito de promover a reinserção social. Não é difícil inferir, com base na abordagem de Bleger (1998) acerca das instituições, que nosso CAPS tinha começado a padecer dos problemas que ele visava a tratar.

Reunimos os usuários com o objetivo de construir um contrato e definir a tarefa de nosso agrupamento. Nos primeiros encontros, tentamos elaborar o enquadre e iniciar, entre eles, uma espécie de apresentação mais consistente, tendo em vista que, embora convivessem no mesmo espaço, não compartilhavam nenhuma experiência emocional. Nosso raciocínio foi similar ao de Svartman e Fernandes (2003), que consideram que a existência de um grupo está intimamente ligada à construção de um vínculo na interação afetiva e comunicacional. Compreende-se que vínculo consiste em: "Uma estrutura complexa que inclui um sujeito, um objeto e sua mútua inter-relação com processos de comunicação e aprendizagem". (Pichon-Rivière, 2005, p.5)

Partindo dessa premissa, nosso objetivo foi, portanto, construir um vínculo com o grupo, mas já sabíamos de antemão que, devido à falta de estímulo e ao agravamento das patologias, a maioria dos usuários tinha dificuldade de se localizar temporalmente, bem como de reconhecer seu projeto terapêutico singular (PTS). O PTS integraliza as propostas terapêuticas articuladas com o paciente, as quais envolvem atividades grupais e individuais dentro do CAPS que também podem ser compartilhadas com os demais equipamentos da rede de atenção e o território. Nos termos da política pública do Ministério da Saúde (2007), "o PTS é um conjunto de propostas de condutas terapêuticas articuladas, para um sujeito individual ou coletivo, resultado da discussão coletiva de uma equipe interdisciplinar, com apoio matricial se necessário" (p. 40).

Os primeiros encontros tiveram como finalidade registrar marcas de reconhecimento e pertencimento ao espaço, de modo que os usuários pudessem estar ali de forma legítima e criativa. Essas marcas foram registradas com a escolha do nome do grupo, com o reconhecimento entre os pares e com o enquadre. Vale enfatizar que o adoecimento psíquico associado aos estigmas da loucura leva os sujeitos à experiência de não pertencimento - em outras palavras, de perda da possibilidade de pertencer aos espaços sociais, de se apropriar de sua história e de ser ouvido.

Em um dos encontros do grupo Autoestima, disparamos uma atividade que tinha como objetivo verificar o que os usuários sabiam sobre a origem de seus nomes e seus respectivos significados. Tal atividade trouxe à tona a ideia de identidade e pertencimento, além de suscitar neles a recordação de seus antepassados, suas crenças, sua espiritualidade, sua terra natal, entre outros elementos que constituem a origem de cada pessoa.

Após os usuários elaborarem a ideia de pertencimento, identidade e fortalecimento do vínculo e da comunicação, vimos que era hora de caminharmos para o segundo passo, que consistia em escolher o nome do grupo. Algumas sessões tiveram como objetivo fazer nascer esse nome. Todos se debruçaram sobre esse propósito. Eles definiram que seria necessária uma votação e, depois, uma explanação deliberativa sobre tal nomeação. Essa atividade foi dando aos participantes a noção de coletividade e foi aproximando-os da tarefa do grupo. Parafraseando os métodos acadêmicos, que dizem que, ao definir o tema do trabalho, há mais clareza sobre a linha de pesquisa a seguir, acreditamos que, com a definição do nome do grupo, tornar-se-ia mais fácil descobrir a tarefa a ser executada. O grupo foi então batizado como AUTOESTIMA. Cabe ao nome o destaque em caixa alta, tendo em vista o processo pelo qual passou para ser gerado. Os usuários disseram que todos eles tinham em comum a "autoestima baixa" e que não acreditavam em si mesmos, sendo necessária ajuda no processo de autoconhecimento e melhora desse aspecto. Entendemos autoestima como a qualidade do sujeito que está satisfeito com sua identidade e que, por isso, valoriza a si mesmo e confia em seu potencial. A autoestima, nesse seguimento, interfere diretamente nas relações que o sujeito estabelece com o outro e consigo mesmo.

A metodologia que utilizamos no grupo consiste de encontros semanais nos quais os usuários se reúnem para discutir e refletir sobre questões trazidas por eles mesmos. Nesses encontros, oportunizamos a circulação da palavra entre os integrantes de modo a aflorar sentidos, indagações e provocações, proporcionando, dessa forma, a aprendizagem e um ato terapêutico entre eles, no sentido de cuidado mútuo que se constrói na relação com o coletivo. Acreditamos, conforme Pereira (2013), que existe um afinamento entre a técnica de intervenção em grupos operativos e os atuais paradigmas de saúde e educação, em que o sujeito se coloca no centro do processo de aprendizagem, como sujeito ativo, e como protagonista na produção de saúde, na construção do conhecimento e dos sentidos que dão significado a sua experiência humana. Frequentemente utilizamos recursos como músicas, textos, poemas, jogos, técnicas de dinâmicas de grupo, escrita, pintura, entre outros. Tais instrumentos têm a função de propiciar o despertar e a elaboração de conteúdos apresentados pelos próprios membros do grupo.

O grupo, como contexto social, oferece a abertura para que os sujeitos, por meio da expressão e da autorização da fluência das palavras, possam produzir significados, construir reflexões e compartilhar experiências. Pereira (2003) faz referência ao conceito de adaptação ativa à realidade de Pichon-Rivière, que concebe o sujeito como transformador da realidade a partir da ação e criação. Tal conceito abrange a ideia de ação humana que impulsiona a mudança e o aprendizado da realidade, sendo desse modo que os grupos fortalecem seus participantes. A autora segue explicando que o conceito de adaptação ativa à realidade só acontece na práxis das comunicações entre o eu e outro e entre o indivíduo e o grupo. Para ela, não há transformação sem diálogo, sem interação, sem troca, sem a palavra do outro construindo sentido junto à do eu, seja na mesma direção, seja em sentidos contraditórios, em um movimento permanente, dialético e em espiral. Acredita-se que esse processo é capaz de conduzir ao pertencimento e à transformação do sujeito em relação ao grupo, à sociedade, à família e a si mesmo.

Na vivência grupal, pudemos sustentar um holding junto aos pacientes. Em outras palavras, foi possível favorecer uma experiência de continuidade, de constância, tanto física quanto psíquica, pois, mediante a presença física e afetiva em uma posição empática, tornou-se possível construir um vínculo com os pacientes e, assim, ajudá-los na integração de seu ser no mundo (Barreto, 1998). Em alguns casos observamos que, a partir do momento em que o sujeito pôde expressar sua história de vida e revelar os significados atribuídos a seu sofrimento, ele se sentiu acolhido e reconhecido pelo grupo. Esse movimento fortaleceu seu pertencimento e surtiu um efeito que se estendeu à sua vinculação ao CAPS e aos profissionais da equipe. Isso foi percebido porque o trânsito dos usuários pelas propostas oferecidas se ampliou, e eles se revelaram mais espontâneos e dispostos a mudanças. Essa abertura para as possibilidades e interações com os outros fez com que a equipe se surpreendesse com a vitalidade que foi surgindo. O desejo da equipe de investir nesses sujeitos facilitou o processo de criação de outras propostas terapêuticas para além dos muros da instituição.

A cada encontro, pudemos notar uma melhora significativa no contato interpessoal entre os membros do grupo, na adesão ao tratamento e na atenuação do sofrimento psíquico, além da ampliação da consciência de si e da condição de adoecimento e dos ganhos no que tange ao autoconhecimento. Ou seja, os usuários foram adquirindo uma melhor compreensão de suas potencialidades e limitações. Tornaram-se mais capazes de criar formas autênticas de lidar com os problemas, pois passaram a se perceber como sujeitos responsáveis por suas escolhas.

É importante abordar o modo como a instituição impôs desafios para a continuidade do grupo. Como já citado, nosso CAPS sofre com a carência de recursos humanos e materiais e excesso de burocracias. Esse contexto interfere diretamente no trabalho clínico, pois é difícil garantir a disponibilidade dos terapeutas e a estabilidade do setting. Além disso, pudemos constatar também a resistência de parte da equipe, que parecia rejeitar a constituição do novo grupo com suas constantes invasões e interferências. Carvalho (2015) esclarece que a excessiva instabilidade do setting é motivo para que muitos grupos fracassem. Dispositivos de trabalho grupal são construídos sob regras claras e inter-relacionadas. O setting, dessa forma, precisa ser combinado e adequadamente pensado. Entretanto, mesmo partindo desses princípios, depois de algum tempo, os dispositivos deixam de funcionar ou funcionam de forma precária, se desorganizam e se desestabilizam. Destacam-se, nesse sentido, a complexidade da relação entre dispositivo clínico-grupal e a instituição demandante do trabalho e a importância de aprofundar a dimensão psicológica entre o que é instituído e o instituinte que o novo grupo representa.

Apontamos inicialmente que o grupo Autoestima foi instituído com o objetivo de proporcionar o resgate das singularidades de sujeitos esquecidos atrás do limitante rótulo da doença mental. No entanto, a anulação do sujeito dito "louco" tem raízes tão profundas, que pode se repetir mesmo dentro de uma instituição criada para substituir esse paradigma. Cabe retomar esse aspecto, pois é necessário compreender que:

Transformações mesmo que desejadas enfrentam resistências profundas e arraigadas que se estruturam em dimensões inconscientes. Deseja consciente e sabota inconsciente. Mobiliza fantasias, gera angústias, estrutura defesas. Contudo, este momento crítico do instituinte é oportunidade para gerar transformações efetivas na instituição, pois resistências são sinalizadores dos caminhos da transformação. (Carvalho, 2015, p. 167)

Nas discussões com a equipe, buscamos ressaltar a potencialidade que emergia nos encontros do grupo. Nas construções de PTS, pontuamos o quanto nos surpreendíamos com o rico relato das histórias de vida, com a capacidade de expressar empatia e com o potencial terapêutico dessa troca. Surgiram, nesse seguimento, outros grupos que também vinham estimular o diálogo e favorecer as singularidades e subjetividades. Percebemos, então, que a experiência do Autoestima contribuiu para mudança do olhar da equipe em relação aos usuários. Nesse sentido, podemos concluir que, embora a sociedade, a doença e a instituição possam oprimir as singularidades e gerar cronicidades, a escuta cuidadosa e a capacidade de estar presente é capaz de resgatar o singular, provocando aprendizagem e dando condição para que os potenciais possam se manifestar.

Descreveremos brevemente, a seguir, dois momentos que se passaram em sessões distintas do grupo Autoestima.

Relato 1

Como recurso mediador, utilizamos um espelho para que os pacientes pudessem dizer o que desejassem a respeito do que viam ou sentiam.

A., de 42 anos, do sexo feminino, paciente do CAPS há quatro anos, com quadro psíquico e social grave avaliado por meio de critérios diagnósticos e vulnerabilidade social devido à falta de suporte familiar, espontaneamente colocou-se diante do espelho. Ao olhar sua imagem refletida, seu semblante mudou. Tocou seu corpo extremamente debilitado pela falta de cuidados, seu rosto e seus cabelos também descuidados. Constatou que estava diferente; rememorou lembranças de seu passado; disse como era bom cear à mesa com seus filhos e seu marido; falou da fartura na mesa e de como era feliz quando estava com sua família.

A. fez parecer que houve uma tomada de consciência e uma organização psíquica surpreendentes para alguém que há muito tempo não demonstrava se conectar com a realidade possível de ser compartilhada. Sua fala aparentemente proporcionou uma espécie de laço afetivo com os demais usuários, pois ficaram todos conectados por essa experiência emocional. Todos eles seguiram realizando a tarefa proposta e relatando momentos importantes de suas vidas, ao passo que se percebiam no presente, podendo projetar desejos para o futuro.

Relato 2

O grupo foi introduzido com a proposta de que os usuários pudessem falar sobre o que considerassem importante acerca de suas vidas.

R., de 25 anos, do sexo masculino, paciente do CAPS há três anos, com interação social limitada, recluso em casa desde a adolescência, quando surgiram os primeiros sintomas da doença, com pouco suporte familiar, autoestima baixa e pouco reconhecimento de si mesmo, sentava-se sempre no mesmo local, com cabeça e ombros sempre inclinados para baixo e olhos amedrontados. Ele parecia se esconder por dentro da camisa de colarinho e mangas largas. Ele tinha dificuldade de se manifestar e, portanto, não havia falado espontaneamente no grupo até então. Entretanto, ele falou, ainda que em volume quase inaudível, narrando sua vida com seu pai e como era diferente quando ele ainda estava vivo. Falou das alucinações auditivas e dos delírios persecutórios que o condenaram a longos anos de solidão no quarto escuro. Mencionou seu tratamento no CAPS como um divisor de águas, pois estava começando a perceber que podia voltar a viver novamente.

Houve uma sintonia entre o grupo e também um envolvimento intenso de nossa parte para captar e valorizar esse momento. Foi necessária uma entrega total, com os corpos se inclinando, os olhos se conectando e a atenção inteiramente se dirigindo ao emissor da fala, no caso, R.

Zimerman (1999) menciona algumas características necessárias à função de grupoterapeuta, que é como nos posicionávamos no Autoestima. Destacamos duas delas que elucidam o que foi supracitado. A primeira é a capacidade de empatia, que consiste em poder se colocar no lugar do outro e, assim, manter uma sintonia afetiva. A outra é a capacidade de comunicação, tanto do ponto de vista do emissor quanto do receptor, com linguagem verbal ou não verbal, preservação de um estilo próprio e um modelo de comunicação adequada para todos os componentes. Nos dois relatos, percebemos o mesmo comportamento do grupo: havia sintonia, respeito, cumplicidade e uma espécie de homogeneidade e, ao mesmo tempo, de diferenciação entre seus componentes. Para nós, ficou a questão: como isso foi possível, ainda mais para sujeitos que demonstram existir de modo tão fragmentado, tão desconectado, tão cindido?

Zimerman (1999) fala sobre vínculos enfatizando um que ele denominou de reconhecimento, pelo qual é possível ao grupoterapeuta perceber o quanto cada indivíduo necessita, de forma vital, ser reconhecido pelos demais membros do grupo como alguém que de fato existe e que é aceito como pertencente ao grupo: é o fenômeno grupal conhecido como pertencência. Da mesma forma, esse vínculo alude à necessidade de que cada um reconheça o outro como alguém que tem o direito de ser diferente e emancipado dele.

O vínculo do reconhecimento aproximou os usuários, fortaleceu os laços de pertença e pôde fazer com que surgisse entre eles o respeito pelo diferente. Por esse aspecto, mais uma vez nos amparamos nos conceitos de Zimerman (1993) para ampliar nossa compreensão acerca dos grupos com pacientes graves. O autor aponta cinco razões para se investir em grupos com psicóticos:

1. A ansiedade pode ficar diluída e é melhor tolerada;

2. Há o desenvolvimento de uma ressocialização, na qual os pacientes cultivam amizades e sentem-se reciprocamente apoiados e respeitados;

3. O próprio grupo funciona como um necessário "continente" que absorve fantasias, angústias e a confusão existencial de cada um;

4. O tratamento em grupo possibilita aos pacientes reconhecer, com mais facilidade, o intenso uso que todos eles, sem exceção, fazem de identificações projetivas patológicas; e

5. A partir desse reconhecimento, começam a se abrir portas para uma melhoria quanto às distorções de percepção em relação ao mundo exterior.

Zimerman (1993) ressalta que, para os pacientes psicóticos, o fator terapêutico mais eficaz é a atitude interna do grupoterapeuta. Ele esclarece, no entanto, que essa atitude não significa ser "bonzinho" ou indulgente e que o terapeuta não deve se afastar da ideia de que o setting instituído deve ser preservado ao máximo.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O grupo Autoestima surgiu a partir de nossas angústias, enquanto psicólogas, ao perceber que alguns usuários do CAPS permaneciam alheios à dinâmica do serviço em que atuamos. Nossa percepção deriva da observação da significativa dificuldade de comunicação e da precária interação entre os pares, a qual fez gerar a suposição de ausência de singularidade. Dessa forma, pudemos perceber que o CAPS, serviço substitutivo ao modelo manicomial, também é capaz de promover cronicidade e institucionalização, caso não esteja atento a seu real objetivo e, assim, não esteja comprometido de fato com uma linha de cuidado que ultrapasse os paradigmas das velhas instituições de saúde mental.

Esse entendimento nos fez manter nosso olhar atento e nossa escuta cuidadosa em relação aos usuários. Pudemos, assim, ver surgir pessoas ávidas por expressar seus interesses, desejos e angústias referentes a problemáticas diversas, como relacionamentos amorosos, conflitos familiares, trabalho, sentimentos de incapacidade e impotência, entre tantas outras coisas. Evidenciou-se, então, que a abertura para palavra, que também tem função mediadora do encontro de corpos, pode promover o surgimento de sujeitos para além da cronicidade e do diagnóstico.

Nesse seguimento, foi construído o Autoestima, um trabalho grupal que oportuniza um espaço de interação e compartilhamento de vivências, que, por sua vez, produz sentido de vida, pois o grupo, quando bem estruturado, pode favorecer a construção de vínculos e aprofundamento de reflexões acerca de questões como doença, tratamento, família, relacionamentos, dificuldades enfrentadas e projetos para o futuro.

Aos terapeutas facilitadores de grupo cabe disponibilidade, abertura e confiança para sustentar conflitos, angústias e tensões que podem surgir em seu desenvolvimento, tendo em vista que essas variáveis são fundamentais para o processo de aprendizagem do grupo. Cada pessoa tem seu lugar e papel no grupo e o transforma e é transformada por ele.

A instituição produz atravessamentos no dispositivo clínico-grupal, pois, ao mesmo tempo que demanda, ou seja, que deseja transformações, provoca resistências arraigadas ao instituído que levam a tentativas de sabotagem. Utilizamos os dispositivos instituídos para manejar a resistência e provocar transformações no setting institucional e na perspectiva da instituição para os usuários do CAPS.

O dispositivo clínico-grupal é essencial na construção de um novo modelo de saúde mental. Todavia, é imprescindível que haja preparo técnico, atitude, conhecimento, capacidade de estar presente e consistência no fazer em grupo. No que tange à instituição, é necessário investimento, colaboração, preservação e consolidação do setting grupal.

A intensidade do sofrimento, dos sintomas psicóticos, ou mesmo a precária assimilação das regras de convívio social não são impeditivos para que ocorram produções de sentido, uma melhora da autoestima, processos de subjetivação e produções de singularidades. Isso, no entanto, requer quebra de paradigmas institucionais, pois não é possível sem coragem para desburocratizar as relações e aceitação da singularidade dos sujeitos em vez de intervenções muitas vezes perversas, que buscam uma certa "normatização de comportamento". Quando as equipes de saúde mental tiverem tempo e disponibilidade interna para se debruçarem sobre o mundo de possibilidades e sentidos que habita cada sujeito, provavelmente deixarão de produzir cronicidade e, em contrapartida, promoverão autonomia e inclusão.

 

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